Esta noite

Foram saindo, um a um, sem pressas.
A sala que ainda há pouco estava cheia de vida, foi ficando vazia.
Aqui e ali, coisas fora do lugar davam conta da presença de todos.

Ela ficou sozinha. Deixou-se cair no sofá e fechou os olhos.
Não queria ainda deitar-se. Procurava reter todos os momentos, com cuidado.
Ficou sozinha mas não se sentia assim. Nessa noite tinha percebido que nunca se sentiria assim. Mesmo que as ausências se fizessem.

Abriu os olhos e passeou-os á sua volta. Os sorrisos e as conversas ainda lhe soavam. Sentia-se bem.
Levantou-se e apanhou a caixa das fotografias que lhe tinham revolvido.
Começou a arrumá-las lentamente. De vez em quando parava. Fixava-se como se quisesse voltar ali.
Uma lágrima escorregou-lhe dos olhos. De alegria.

Apesar de tanta coisa, sentia que valia a pena. Tudo.
E eram maiores as vitórias que a derrotas… Tinha-se inteira.

Secou a lágrima. Tapou a caixa. Levantou-se.
Olhou uma vez mais para a sala. Apagou a luz.

No escuro, sem testemunhas, sorriu tranquila. Sentiu-se tola.
Adormeceu, ainda assim.

A porta

Devagarinho a porta fechou-se atrás dela.

A luz do sol cegou-a. Virou a cabeça, baixando-a e fechou os olhos.
Abriu-os depois quase a medo.
Não estava habituada a tanta luz. De onde vinha desabituara-se duma claridade assim. Franca, aberta, decidida.
No entanto desejara-a. Porque tanto se quer o que não se tem!

A escuridão alojara-se dentro dela, húmida com cheiro a noite. Há muito, demasiado tempo. Esquecera como era estar doutra forma.
E as memórias foram sonhos, tantas vezes! Nem assim bastaram para o que agora aí vinha.

Avançou num passo incerto. Sentiu o calor a arejar-lhe as noites que nela tinham pousado. Sacudiu-as.

Ficaram na sombra que agora se fazia de si. Apesar da luz não a deixaram.
Memória do que era no chão que agora pisava.

Nem ele...

Ninguém adivinhara o que lhe aconteceu. De tão inesperado.

É sabido que há coisas que não têm data ou hora marcada. Acontecem do nada.
Por não se estar prevenido cai-se desamparado. E levam-se atrás, em dominó, todos quantos estão á volta. Seja no que for.

E foi assim também com ele.
Já chorara tantas mortes e tantas desventuras… Tantas que lhes perdera a conta. E já consolara muitos mais. Como só ele o sabia fazer. De forma espontânea e afável. Sempre no tempo certo e na medida necessária.
Era o ombro de cada um de nós.
E que franzina, era a figura! E que força tão desmedida!

Soube-se que levara com ele o sorriso porque a morte não teve tempo de lho tirar. O mesmo que distribuía a todos sem escolha.
Agora ali as lágrimas de quem o chorava ficavam penduradas no arco do sorriso que não podiam evitar… De tantas memórias que deixara dentro de cada um.

Ninguém adivinhara. Nem ele o pressentiu.

Escreverei

Hei-de escrever e as palavras que desenhar não serão traição de mim.
Serão de outros as coisas que contarei. Se nelas me vir, aprender-me-ei.
Só isso, nada mais.
Porque já basta de tanto despejar do que sou.
Basta de tanto me ver.

Que as palavras não sejam espelho nem eco do que me sinto.
Sejam só o que são.
Um aglutinado de letras, jogo inócuo, sons para sempre mudos em folhas de papel.

Escreverei até que as palavras me faltem e o desejo de o fazer se escoe.

E há tanta coisa para ser dita!
Até lá escreverei.

Ele

Tinha o hábito dos pequenos gestos. Das coisas simples.

Ás vezes, de muro em muro, apanhava flores silvestres e fazia com elas um raminho. Oferecia-lho, a ela. Sempre sorrindo.

Outras vezes o cheiro do café fresco entrava-lhe pelas narinas, acordando-a. E lá estava ele pronto a dar-lhe o primeiro beijo.

Na gaveta, em qualquer gaveta, dobrado a um canto encontrava sempre pedaços das coisas que ele sentia. Em bilhetes com a sua letra desenhada. Amor, só.

Estás bem? Mesmo estando. Só para a ouvir e confirmar. Queria-lhe muito.

Compunha-lhe a gola, desviava-lhe a franja, pegava-lhe nas mãos e beijava-as. Um dedo após outro.

E o abraço no corpo cansado a reconfortá-la.

Via-a adormecer e julgava-se pequeno para tanto que lhe queria dar.
Ajeitava-lhe a roupa. Antecipava-lhe os movimentos. Deixava-a encaixar no seu colo.
Ao ouvido, no silêncio da noite, dizia-lhe outra vez que a amava.
Aconchegava-a e deixava-a sonhar.

Um dia, ele, partiu sem aviso.
Sem o mais pequeno gesto. Da forma mais simples que encontrou.

Enquanto

Enquanto tu não estás sento-me, aqui, neste lugar onde tu e eu já fomos alguma coisa além do que somos agora.
Deixo o olhar e os pensamentos vaguear. Frame a frame, desenrola-se o filme. Sem legendas. Sem história para contar.

Despeço-me de mim porque, hoje, não é do que sou ou sinto que falo.
Não quero olhar os outros para me encontrar a mim. Não me procuro.
Afasto-me de tudo, lentamente.
Deixo-me absorver pelo passar do tempo sem me dar conta disso. Não o quero fazer.

Acordam-me gritos de crianças. Sorrio.
Deixo este lugar para quem vier.
Parto.

Cheiro sem nome

Os cheiros rodopiavam á sua volta e ficava-lhe a cabeça tonta. Perdia a memória de cada um como se ficassem perdidos em neblina.

Volátil, difusa, inquietante era a impressão que ficava.

Procurava voltar ao sítio que os emanava. Percebê-los e dar-lhes nome.
A embriaguez que sentia não lho permitia.

Desistiu por fim.
Ficou-se mergulhada por não conseguir submergir.

E os nomes bailaram, então, dentro de si até se deixar ir.

Talvez

Era, talvez, impossível saber tudo das coisas.
Mesmo que fossem tocadas e sentidas ao longo do caminho percorrido. Mesmo, até, se fossem de novo vividas. E nem o privilégio de as ter já conhecido faria adivinhar o seu futuro.
De recomeço em recomeço tudo se fazia novo, inexplorado.

A aventura por terrenos que outros habitaram deixava perdido quem por lá passava.
Porque os mapas se reconstruíam por quem os desenhasse. Eternamente inacabados.

Os sinais apesar de tudo não deixavam nunca de existir.
Era o rumo que a vontade tomava que os sabia lá.
Sempre doutra forma. Na medida do que se era então.
Por isso era tudo sempre novo e impossível de conhecer.

Absorver e integrar era a constante.
Descobrir, a vontade.
Aprendiz, a condição.
Viver a tempo inteiro, o mote.
Do tão pouco que se sabe, construir

Feliz

Sabiam-lhe bem aqueles momentos. E mesmo pequenos sabiam-lhe a muito.
Aprendera a sorver cada instante e a deixá-lo desfazer-se lentamente dentro de si. Degustava-os de sentidos apurados.

Punham-lhe um brilho nos olhos e uma cor nas faces que permaneciam sem pressas. Instalavam-se na curva do sorriso que lhe nascia e não deixava de crescer.

Sentia-se feliz.

Cansaço

Cansaço. De estar longe de mim.
E nem assim, na distância em que me foco, me enxergo.

Perdi-me entre tudo e nada. Sem horizonte, vagueio.

Pudera eu descansar!

Agora, vou

Hoje parei aqui. Decidida a ficar.
Por breves instantes, eu sei.

O tempo de me saber ainda neste lugar.

Não me atrevo a ver tudo em que já toquei. O medo de acordar vontades adormecidas há muito, paralisa-me.
Fico quieta, encostada á porta do tempo que passou.
Deixo que as memórias se passeiem em mim mas não lhes dou guarida.
Tenho já tanto, dentro de mim!

Os cheiros e as cores despertam o que de mim ficou. De ti também.
Somos do tempo que já se foi.

Agora, vou.

Aqui

Aqui estou entre tanto que preciso de dizer e calar.

E a distância entre uma coisa e outra não pode nem ser medida de tão ínfima ser.
Apetecem-me outras vozes e outras palavras.
Palavras que não encontro por todas dizerem mais ou menos do que quero.
Vozes que não distingo entre tantas que em mim se atropelam.

(Mergulhar bem fundo. Sem luz, sem ruído.
E ficar. Mesmo que subir seja a vontade.)

Ausentar-me do que sou e sinto.
Perder-me de mim.

Aqui. Pelo tempo que desconheço ainda.

Estranhamente

Estranhamente não a deixava para trás. Não conseguia fazê-lo.
E era tudo tão diferente do que tinha planeado!

Mesmo a forma de estar a que sempre se habituara. Á ligeireza com que chegava aos outros de forma inteira. Sem medos ou subterfúgios.

Com ela esbarrava nas coisas mais simples. Como se houvesse muros invisíveis a separá-los. Como se falassem línguas diferentes.
No entanto sabia que se encontrariam e não desistia.

Qualquer coisa de que ainda não sabia o nome impelia-o a ficar.
Talvez a sede de descobertas maiores. Dum segredo seu a revelar-se nela.
A vontade de se ver desvendado por quem não conseguia adivinhar.
Ver-se por olhos que normalmente não olhariam para ele.
Talvez tudo isso.

Estranhamente. Plantava-se na sua frente e não desistia de se deixar ser.
Crescia em terreno alheio e sem aviso.
Bastava-lhe que ela lá estivesse. Mesmo não estando.
Apesar da diferença e do desconforto.

Entregava-se apesar da luta eminente.
Para saber de si. Da sua força. Do que era capaz ou não.
Estranhamente…

Primeiro Dia

Sérgio Godinho

A principio é simples, anda-se sózinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no borborinho
bebe-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado, que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que se leva a peito
bebe-se, come-se e alguém nos diz: bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso, por curto que seja
apagam-se dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar, sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vazia
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.

Cada vez mais longe

Sentia–se cada vez mais longe…
Porque estava perto.

Em nada se encontrava por mais esforço que fizesse.
Às vezes lembravam-lhe as semelhanças que tinha. As físicas. Dessas não se podia distanciar. Mas só dessas.
Em tantas outras a distância alongava-se.

Onde se sentia melhor era afastada. Não tinha de se fazer igual.
Era mais autêntica.

Das raízes não sentia a falta talvez porque as criara em chão alheio.
Sem pátria, construíra um mundo só seu.
Aí albergava quem queria. Quem podia pertencer-lhe inteiramente.
Fosse pelo tempo que fosse.

Dos outros que lhe puseram o sangue a correr nas veias, desses, estava cada vez mais afastada. E era assim, naturalmente. Sem dor ou abandono.

Era feliz onde vivia. No espaço que criara sozinha.

Silêncio...

Pediu-lhe resposta. Queria perceber o que ia dentro dela.
Aquele silêncio incomodou-o. Como se ela se afastasse ou fugisse e entre eles se cavasse um fosso profundo.

Depois de tudo o que lhe havia dito, não percebia o que estava a acontecer.
Podia ter pena, demonstrar alguma simpatia, indignar-se… Mas não fez nada disso. Calou-se.

Não sabia porque contava aquelas coisas. Mas tinha necessidade de o fazer fosse a quem fosse.
Apesar de tudo o que lhe acontecera não sabia bem o que esperar.

E sentia-se tão injustiçado…Pela vida.

No caminho que encontrara para sobreviver deveriam estar todas as respostas.
Em troca do amor que lhe foi negado, daria amor.
Dessa capacidade, de dar, não tinha sido destituído.
Seria a sua vingança.
Um amor distribuído a quem o quisesse receber ou a quem dele precisasse.

Ela sentiu-lhe a amargura. E só conseguiu ver isso.
Calava-se por lha começar a sentir também.

É preciso

Olhar o outro para perceber quem somos e como somos. Sem julgar.
Para colher, unicamente. O que há para dar.

Deixarmo-nos tocar por quem passa por nós pelas suas histórias.
Que são vida e são reais.
Depois olhar para dentro e ver quão pequenos somos. Perceber que afinal somos bem mais felizes do que alguma vez julgámos.

Olhar para reflectir, para verdadeiramente ver.
E aprender a ser maior. Cada vez mais.

Devolver, tudo quanto se absorveu a quem nos deu, embrulhado em carinho, de sorriso e coração aberto.

Podemos, devemos… iuken um conceito


Em tempos áridos as miragens são alimento para a alma. Avança-se no seu encalço para satisfazer a sede que nos abrasa.
Por uma vez, não é só uma miragem que nos espera. O oásis desejado está lá.

Por isso, de todas as vezes vale a pena tentar. Mesmo que as forças faltem. Desistir afunda-nos no desespero. Tentar é o que há a fazer.

Até porque nós conseguimos. Basta alimentar o querer.

A iuken é uma aposta a não ignorar. Um projecto a abraçar. Matar a sede, porque é preciso e afinal “you can”. ( http://iuken.com/ )

Não tivemos tempo

Não tivemos tempo para estarmos juntas. Para uma última conversa e um último afago.
Falei contigo sem a certeza de me saber ouvida e prometi-te isso.
O tempo foi-se e não o pudemos fazer. Quando me dei conta já tu tinhas partido.
Sabes como então as coisas se precipitam. Ninguém dá tempo a ninguém.
Todos querem estar lá, pela última vez.
Esqueceram-se de nós, de tanta coisa que havia ainda a dizer.

Esta noite vieste ter comigo. Não te esperava. Chamaste o meu nome e eu reconheci-te a voz. Procurei-te com o olhar e lá estavas tu. Diferente. Não te conhecia as olheiras. Tão profundas que estão!
Tropeçaste quando vinhas ao meu encontro. Amparei-te. Abracei-te. Por muito tempo.
Soube-me tão bem abraçar-te. Foi como se tudo ficasse dito e soubéssemos, enfim quanto gostávamos uma da outra.

Hoje que descobri o lugar onde me podes visitar, sinto-me mais completa.
Vou esperar por ti, aí. Volta quando quiseres.

Para já...

Escuto ainda as vozes que ecoam por aí.
Não as colho, abandono-as ao destino do vento.
Para que sejam histórias plantadas no coração de quem as sentir.

Para já, basta-me saber que posso ouvi-las.

Castigo

O pano desceu já. Todos saíram. As cadeiras ficaram vazias.
A pouco e pouco as luzes apagam-se e defronto-me entre o escuro que em mim plantaste e a luz que sonhei.
Deixo que uma a uma, as lágrimas, verta.
Recordo as falas, os gestos, o teu rosto, o teu jeito de ser. Tudo o que há para lembrar.

Levanto-me e saio agora. Mesmo que queira ficar.
Levo-te comigo mesmo que te queira deixar.

Ter-te sabido é meu castigo.

One Last Dance

Nada mais

Nada mais se disse. Nem naquele nem noutro dia.

Tijolo a tijolo construiu-se o muro que se levantou entre eles.
Calaram-se as palavras feitas argamassa do que então ficou por dizer.

Era assim que tinha de ser.