Aqueles olhos!

Lembro-me dos olhos dele. De sentir o que ele sentiu.

A vergonha de viver assim. De ter tão pouco e tanta miséria. De querer tapar o bébé que trazia ao colo nu, sujo, com uma manta que perdera a cor nas nódoas que a cobriam.
Em pé, atrás do portão que nos abria, de costas para um pátio onde algumas galinhas debicavam no meio de estrume espalhado pelo chão,olhava para nós sem saber o que fazer.
Ao fundo nas velhas capoeiras desocupadas, viam-se o que agora eram os quartos dos outros membros da familia.

Viviam ali naquele pátio, desde que há anos o pai "enganara" a mãe e a engravidara.
Ela era a "tolinha" da terra, rapariga forte, roliça, engraçada. Ele tentou-se. Depois sentiu-se responsável. Tomou conta dela e da prole que dali veio.
Protege-a como se cuidasse da penitência atribuida á culpa do que fez. Fá-lo-á sempre. Até ao fim. Sem um queixume. É a sua cruz. Ninguém o desviará dos seus propósitos. Ninguém fará mal aos seus. Será o seu fiel guardião. Sempre. Com todo o amor que tiver para dar.

Tem mais dois irmãos ambos com deficiência mental. Só ele sabe o que é viver assim.
Só ele conhece a dor. Só ele vê a diferença e sente a vontade de ir para além do que vive ali. E não carrega a culpa. Porque não a tem. Tem os sonhos da idade dele e o desespero duma vida assim.

Sente a vergonha que lhe vejo nos olhos e o desconforto de se ver assim e querer ser outro noutro lado qualquer!

1 comentário:

  1. Quase poderiamos falar de um sentir português, mas não seria verdade. universalidade trespassa este belo texto. Quantos de nós já sentiram este desenrolar de emoções, mas gastamos infindáveis quantidades de energia tentando aparentar um outro estado de espírito, solar e dourado, o que por si só, é uma maneira muito portuguesa de ser...

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