A morada

A morada, se faz favor!

Morada!? Para que diabo, queria ele a morada? Algum dia tivera morada?
Talvez… Quando vivera com a mãe naquela casa herdada dos avós com cheiro a segredos ocultos de geração em geração cheia de regras e obrigações que o levaram a ter medos e vontades de sair cedo.
Foi a Lúcia, uma rapariga cheia de borbulhas e cabelo espigado que o fez sonhar com amor e uma cabana nas águas furtadas, bafientas, forradas a papel de parede debotado a descolar-se teimosamente apesar da maior ou menor quantidade de cola de farinha que se lhe pusesse.
Acordaram um dia enredados num manto de papel empastelado. Foi o primeiro e o ultimo. Separaram-se. Era Verão.
Encontrou a Joana, sardenta de tranças vermelhas. Lembrava-a sempre de biquíni ás bolas cor-de-rosa gigantes. Vivia numa casa de madeira na praia de que cuidava primorosamente. Limpa os pés, não tragas areia para dentro de casa, não te deites assim no sofá, vai tomar banho.
Deixou o amor quente de Verão arrefecer com os primeiros ventos frios do Outono e foi viver para um apartamento pequeno perto do emprego. A Teresa não o incomodava. A princípio achava tudo um pouco desarrumado mas achou que era assim porque o espaço era apertado. Deixou-se ficar.
Precisava duma camisa, tinha-a ela vestida. Procurava uma gravata, usava-a ela como cinto. O pior foi quando procurou as bolachas preferidas e só encontrou as migalhas dentro do pacote escancarado.
No dia seguinte a Teresa nem encontrou o pacote nem o encontrou a ele.
Mudou-se para um hotel. Sim, para um hotel. Tinha tudo o que queria, sempre que queria: cama, mesa e roupa lavada. A companhia procurava-a, comprava e usava como e quando queria.
O emprego não lhe cobriu as despesas. O cartão não lhe cobriu quanto esbanjou. O hotel não o aturou mais. Um dia encontrou a porta fechada e as malas feitas. Foi até ao último bar que ainda o servia. Bebeu até lhe fecharem também a porta.

A morada, senhor polícia?
Pode ser esta?

Dos olhos

Era dos olhos que ela se lembrava mais. Uns olhos que diziam mais que quaisquer palavras.
Estavam agora calados. Deixara de os ouvir.

Tantas promessas lhes ouvira e tantas vezes neles embarcara. Viagens para não mais esquecer.

É na sua ausência que os recorda melhor. Como uma qualquer luz no corredor dum passado ainda presente.

Agora fecha os seus para não deixar fugir quanto lembra.

Confesso

Não, não penses que é de ti que falo. Não te enganes com as palavras que brotam de mim. Sou todas as mulheres que já conheceste e ainda estás para um dia conhecer.
Em mim navega a voz das que escuto e sei por aí.

Entre tantas coisas que sinto, escolho falar do que poderia ter sido. Construir um mundo para lá de mim. Imaginar os caminhos que decidi não trilhar.
E ouvindo as palavras que abandono ao som das teclas num ecrã que se vai pintando devagarinho de emoções, julgo ás vezes ser o que sinto então.

Acabada a musica que componho num teclado sempre igual, regresso ao que sou. A mim própria.
Despida das fantasias e da melodia que cantei baixinho até ao final que deixo acontecer. Sou então eu. E não me mostro.
Porque tenho ainda algum pudor.

Por isso te digo que não é de mim que falo. Nem de ti. Muito menos de nós.

O que será...



Simone- O que será.

Rodeou-lhe a cintura num gesto de auxílio. Com suavidade. Ela sentiu-se segura. Sentiu o olhar dele na sua nuca. Semicerrou os olhos e absorveu o momento numa tremura que lhe invadiu o corpo.
Deixou-a e voltou ao que fazia.
Ela ficou a observá-lo. Aquele homem tocava-a. Ainda não sabia porquê. Despertava-lhe os sentidos duma forma doce cheia de carinho. Não a incomodavam os gestos que noutra pessoa podiam parecer ofensivos. Dele pareciam vir com naturalidade e sinceros. Ficava a sonhar.

Cruzavam-se e tocavam-se de vez em quando. Com a vontade de mais a crescer. Até ao abraço que finalmente se fez. E o beijo trocado na ânsia de sedes anunciadas. Olharam-se como se se conhecessem de há muito. E se reencontrassem. Ali, naquele momento.

Prolongaram o tempo que tinham em ninharias inventadas. Até ser tarde.
E terem de se afastar. Ouviram uma música que seria a deles. Dum cd e duma faixa qualquer. Leva-o. Ouve até quereres. A nossa música.

Ouviu durante dias. Sempre o mesmo.
Prolongava assim o que não podia prolongar doutra forma. Até não o ouvir mais.

Descobriu-o agora de novo. Vieram-lhe á memória os sonhos. Acarinhou-os e em voz baixa embalou-os para os adormecer e devolver ao tempo a que pertenciam. E lá ficaram. Em pousio.
Há sonhos que não se devem alimentar. Mesmo que tragam boas memórias. Serão sempre só isso.

Falta de espaço

Ás vezes o espaço faltava. E nem se percebia muito bem porquê. As pessoas eram as mesmas. Ninguém tinha mudado de vida. O rumo dos dias era o de sempre.
Mas as coisas pareciam sobrar e os espaços minguar.
Era o tempo de revirar as coisas. Arranjar novos espaços. Por de lado ou dar o que já não servia e redefinir os lugares que agora restavam.
Limpezas. Tirar o mofo antigo, arejar-lhe os caminhos e abri-los a coisas de agora. Coisas que agora ainda valiam a pena serem guardadas. Porque nem tudo se renova ou troca. Nem tudo se tira das prateleiras a que ainda damos uso.
Descobrem-se as histórias que em tempos se calaram no fundo duma gaveta. E o tempo esgota-se no meio das papeladas que já há muito não se viam. Ou nas fotografias que julgávamos perdidas. Ou naquele anel que um dia causou sensação e sem quê nem para quê se deixou de ver. O que se pensou então… E afinal estivera sempre ali, num lugar que agora parece ser o mais óbvio. Na altura não o foi.
E a poeira que em tempos assentara levanta-se agora devagarinho mostrando o que tínhamos deixado longe da vista. Duma forma mais clara.

Agora parece que tudo volta ao normal. Tudo respira mais tranquilo no espaço renovado. Parece até haver espaço de sobra e tudo parece mais leve.
É tempo de fazer novas viagens e armazenar outros souvenirs.

Um dia far-se-ão novas arrumações. Sempre que for necessário. E não será preciso outro espaço. Caberá tudo mais uma vez.