Num dia que está para vir

Há muito que não se sentia vivo.
Que não percebia para onde tinham ido as coisas que um dia lhe puseram sorrisos nos lábios.
Deixara de se encantar. De querer aproveitar cada segundo para o partilhar com ela.
Tudo lhe parecia sempre igual. Como se fosse um disco num gira-discos estragado.
Em repetição contínua. E com um ruído de fundo irritante.
Não sabia do desejo. Nem lhe sentia a falta.
Adormecido nos copos bebidos entre conversas sem rumo.
Nos tempos em que fugia das rotinas apagadas e sensaboronas daquela vida que nunca pensara.
Acomodou-se, instalou-se sem dar conta a assistir a uma vida que lhe passava ao lado.
E se desgastava a par com ele.
Perdeu as memórias dos toques dos cheiros, sabores e das cumplicidades. Num sitio qualquer.
Vagueou numa vida em que se cumpria atempadamente o que devia cumprir-se.
E só. Nada mais. Porque do mais que havia se tinha perdido o rasto.
Numa curva qualquer da vida.
Viajavam juntos mas cada vez mais distantes. E deixavam-se estar.
Como se tivesse de ser assim. Como se não houvesse outras formas de estar.
E o destino fosse esse. Mais nenhum.
Até um dia. Um dia, ser dia de acordar.
E esbracejar. E perceber que há vida fora da vida que vivia.
E um grito forte a abrir pulmões ecoar. E um coração a abrir em flor. Vermelho intenso.
E andar para lá do horizonte com tudo para descobrir.
Num dia que está para vir!

Estar... não estar

Conhecia-o porque não podia ser doutra forma.
Como se fosse ela própria. Porque se continuava para além de si sem interrupções. Duma forma contínua, num fluir sem esperas. Como num reflexo de si em suaves variações.
Encontrava-se nele a cada instante num espanto que há muito procurava. Tinha tudo sem pedir. Naturalmente. Como se tivesse de ser assim. Sempre e só assim.
E no entanto, fugia dele. Pelo medo de não ser capaz, de não o merecer. Pela responsabilidade que tinha agora. De ser para ele como ele era para ela. Sempre.
E porque nela habitava outro. Ainda. Não sabia por quanto tempo. Nem por que razões.
Não podia ser inteira. E queria sê-lo! Como ele o merecia.

Não podia acreditar no que lhe ouvia. Queria-lhe tanto! Como podia ela dizer-lhe para continuar em frente, para a esquecer? Quem era o homem que sem a amar lha tirava?
Sentia-se morrer. Uma dor sem fim a instalar-se no corpo, a paralisar-lhe os membros. A loucura!
Não a podia perder. Era dele. Tinha de a recuperar. Ou a dor quebrá-lo-ia. Ali, naquele momento. E cada pedaço de si a reclamaria.
Não pensou. Não tinha espaço. Sabia que a amava. Muito! E só a ela.

Olharam-se na ânsia de respostas. Nos olhos as marcas da dor. No corpo o desanimo e o cansaço.Um abraço forte uniu-os na dor que ambos sentiam.
Não sabiam o que fazer do que tinham. As respostas que encontravam sentiam-nas fisicamente. No bater desordenado do coração, nas lágrimas que corriam soltas e em tanta dor que permanecia difusa e incontrolável dentro de peitos pequenos para tanta coisa. As outras, escondiam-se por mais que as procurassem.

Ela veste-lhe agora as memórias e chora-o de tanto o amar!
Ele espera-lhe as respostas até um dia...

Pausa


Projecção durante o Espectáculo Oral Fixation de Shakira .
Director: Jaume de laiguana.
Erik Satie: gymnopedie no 1

Os medos

As perguntas vinham estranhas como sempre. Inesperadas. Vindas não se sabe de que sítios. Sempre para confrontar e medir. Sempre para testar mais. Sempre para ter certezas de dúvidas que cresciam de coisas sem sentido.
Sabia que ele esperava a resposta. Que a exigia. E que tinha de a dar sem hesitação.
A resposta. Porque só havia uma. Só uma o calava e serenava.
Só essa seria a chave da sua paz.
E eram tantas as respostas que lhe ocorriam. Tantas as que tinham significado, que lhe diziam, a ela, alguma coisa...
E perdia-se, e enrolava-se nas palavras tentando adivinhar na expressão do homem que a olhava que estava no caminho certo. Que lhe dava a resposta certa. A que ele queria.
Porque só havia uma!
No peito apertado o coração tinha medo de bater. De se denunciar. E uma dor surda subia até á garganta a calar-lhe a voz. E uma suplica sempre. Um pedido de ajuda que nunca vinha.
Porque as respostas que dava nunca eram as que ele queria.
E vinha a raiva. Já lha conhecia.
E a afronta por ela não saber, nunca!
Por não pensar como ele, por não ser capaz de o sentir e entender. Por não se preocupar. Por estar longe. Por não o amar como devia.
E a súplica abafava o grito da dor quando em desespero ele lhe batia. Por ela não ser capaz!

Instalou-se o medo, companheiro. E muitos medos também.
O medo de perder. O medo de recomeçar. O de não se merecer nada melhor. O de não ser capaz. O medo de simplesmente ser.
Foram tantos medos e tão maiores que encheram a sua vida e não deixaram espaço para a sua libertação.
Porque amava duma forma louca e absurda o carrasco. Duma forma sem sentido e sem explicação.
Porque só queria ser amada como amava. De forma inteira.
Porque estava destruída. Porque não sabia já de si.
Porque se perdera nos sonhos e enredos dum amor que não tem um nome igual aos outros. Porque não o podia ser.

Porque agora que está já á distância. Sabe que há outros amores e desamores.
E muitos medos. Que pode vencer!

Distância

Tudo ia acontecer com a mesma simplicidade.
Da mesma forma como tinha surgido. Sem que nada o pudesse prever ou impedir. Naturalmente.
Sem avisos. Sem esperas. Sem sonhos. Sem promessas. Acontecendo.
Crescendo como as coisas fazem sem saber. Sem perceber.
Como só se vê quando nos afastamos e regressamos mais tarde.
Aí espantamo-nos. Vimos a diferença. Porque saímos de nós. Nos descentramos.

Fugiam na corrida em que se lançavam um para o outro. Fugiam do que não podiam viver. Tinham consciência plena, viva. Sabiam de si e dos outros. Por isso fugiam. Por isso se atraiam.

Chegaram quase ao mesmo tempo, numa incrivel sintonia. Ele viu-a primeiro.
Ela esperou-o. Viu-o chegar. Olhou-o. Trouxe-o a pouco e pouco das suas memórias sensoriais para aquele momento. Identificou-o. Era assim que o imaginava. Era assim que o tinha construído.
Ele parou á sua frente, olhou-a, sorriu-lhe e parou aí. Á procura do que fazer e dizer.

E assim foi. Todo o tempo. Porque fugiam.
E teriam de o fazer sempre. Criar uma distância que nenhum pudesse transpor. Nem que quisesse.
Para que nunca houvesse dores maiores!

Vadio de mim

Porque a bagagem, de tão pesada, ás vezes se arrasta e me arrasta com ela para lugares antigos e sempre iguais.
Porque de mim me canso, de tanta vida e tanta gente e tanta história... De tanta realidade!
Vadio. Para fora de mim e do que tenho.
Deixo tudo. Levo-me só.
Entrego-me ás coisas com tudo o que tenho a cada momento. Se nada tiver, tudo dou desse nada que me enche. Se algo tiver também darei. Nesse tempo em que vadio nada me faz falta.

Preciso de olhar e ver. Nada mais.
Mas ver para fora, para longe, para e até onde a vista se pode estender. Em vadiagem.

Agora vou vadiar! Não sei até quando. Nunca importa até quando.
Serei leve, estarei tranquila pelo tempo que quiser e puder!

No dia em que banirem as memórias

No dia em que banirem as memórias, deixarei de me perder nas saudades do que foi e do que está para vir. Serei eternamente criança porque não saberei crescer. Mas o meu coraçao será puro!
Haverá um Presente enorme do tamanho das nossas vidas. Sem ontem nem amanhã.
Um só Agora constante e fugaz. O Momento da ternura, do riso e da lágrima.
E a inocência pura e eterna cumprida.
Sem memória não se aprenderá a dor que se desconhecerá sempre. E o amor será infindo sobressalto num coração que nada sabe.
Só as marcas da carne perdurarão e não se sonha como foram alguma vez. Tudo será novo sempre.
Tudo será espanto. A mesma mulher outra a cada dia.
Cada amanhecer um presente a desembrulhar na magia do desconhecido e a vida ali na aventura dum dia que se vai nas inscrições que já não se farão.
Cruzar-nos-emos tranquilamente e tudo será sempre novo. Tudo semente e desejo.
Não haverá tempo para esperas. Nem mágoas. Ou anseios.
Ser-se-á!
No Presente como se de um presente se tratasse. Que a cada dia nos será dado. E a cada dia desembrulharemos, devagar ou a rasgar.
Mas um de cada vez. E sempre de novo.

Viagens

Foram muitas. Serão muitas as viagens que fará.
Em encontros e desencontros. Sózinha ou acompanhada. Mesmo que se suponha parada estará em viagem porque o tempo não pára e as paisagens sucedem-se. E a vida acontece.
Cruzar-se-á com outras vidas. Ou resvalará nelas. Será reflexo, reflectir-se-á.
É no trajecto que se constrói.
Não importa o destino, importa a caminhada. Ela definirá os contornos da sua rota, do seu itinerário. As suas escolhas, fá-las-á atempadamente. Escutando os sinais a que estará atenta a cada passo.
É preciso estar alerta. Entender a linguagem que só o coração domina e a razão desconhece.
Nunca será pacífica uma viagem assim. Mas é á paz que conduz.
É na esperança dessa paz que a viagem se faz. Que o sentido se encontra.

Até que tenha forças, viajará!

Nobody knows you when you're down and out


Carla Bruni-Nobody knows you when you're down and out

Pode ser Pedro

Ninguém lhe sabe bem o nome. A memória que lhe têm e curta e imperfeita.
Lembram-no das borras do café que pedia para as suas flores. Das cervejas e dos copos bebidos para apagar recordações que ninguém lhe ouvia. Dum dia quase ter sido engolido na noite por ter caido na estrada e lá ter ficado sem se ter dado conta. De ás vezes se zangar. De ás vezes se perder. De um dia chorar e ter pedido ajuda.

Nela ficaram mais memórias. E uma tristeza enorme. A de nunca lhe ter chegado. Embora tivesse tentado. Ouviu-lhe o pedido. Chamou-o. Conversou com ele.
O Pedro era um preto num mundo de brancos e sentia-se assim. Tinha vindo de Angola há muitos anos. Vira morrer toda a sua família, pai, mãe, irmãos... E o olhar dele perdia-se nas memórias do que vira e emudecia-se. Distanciava-se os olhos rolavam e falava para novos interlocutores, novas conversas, doutros pesares e doutras vidas.
Depois regressava e falava dos seus jardins. E revoltava-se. Gostava do que fazia. Não compreendia como não lhe pagavam. Como achavam que uma bucha lhe pagava o trabalho. Mas iria receber tudo. Ninguém lhe iria ficar a dever! Depois acomodava-se de novo.
Sentia que ninguém o respeitava. Não tinha cor para isso. Até a roseira a que tanto cuidado dedicava... Um dia voltava do trabalho quando deu por ela depenada. Nem uma rosa!
E alheava-se de novo. E buscava novos parceiros, invisiveis, de conversa. E a conversa fluia noutros sentidos que ela não descortinava. Ela olhava-o e esperava-o. Sempre o esperou. Para o apaziguar. Como queria e achava que devia.
O Pedro deixou de aparecer. Deixou de pedir a cerveja de se sentar ao seu lado. Por muito tempo. Um dia mandaram-lhe recado. Encontraram o Pedro morto em casa.
Gelou. Nada tinha sido feito. Nada do que ela tinha planeado para ele.
Agora restava-lhe restituir-lhe as rosas que uma vizinha, um dia á toa, lhe tinha roubado.
Fá-lo-ia!

O sorriso

Veste um sorriso que lhe fica bem. Que lhe faz sobressair as formas e as cores. Ilumina-a com uma luz que lhe desconhecia. Faz-lhe bem. Fica mais linda ainda!
Até o andar é mais ligeiro,os gestos mais fluidos, como se o sorriso, que agora usa, lhe desse asas. E quando fala, não há tristeza que espreite em inveja o sorriso que agora enverga.
Sopra-lhe de dentro. E acomoda-se assim a todos e cantos e recantos do corpo que cobre em alegria. Vestiu a alma em festa, transparece-lhe nos olhos. E espalha-a á sua volta suavemente, sem alarde, mas com um brilho que não engana ninguém.

Sabe-me bem olhá-la. É poder quase acreditar que um dia também vou vestir um sorriso assim. Mas até lá, enquanto não acontecer, vou poder vê-lo. Ter a prova de que existe. Que é possível.
E assim espero calmamente. Porque sei que acontecerá. Um dia...

Have you ever really loved a woman


Bryan Adams - Have you ever really loved a woman
To really love a woman,
To understand her,
You've got to know her deep inside...
Hear every thought,
See every dream,
And give her wings when she wants to fly.
Then when you find yourself lying helpless in her arms...

You know you really love a woman
When you love a woman,
You tell her that she's really wanted.
When you love a woman,
You tell her that she's the one.
She needs somebody, to tell her that it's gonna last forever.
So tell me have you ever really...
really, really ever loved a woman?

To really love a woman,
Let her hold you,
Till you know how she needs to be touched.
You've got to breathe her, really taste her,
Till you can feel her in your blood.
And when you see your unborn children in her eyes...

You've got to give her some faith,
Hold her tight, a little tenderness.
You've got to treat her right.
She will be there for you taking good care of you...
You really gotta love your woman.
And when you find yourself lying helpless in her arms,
You know you really love a woman.
When you love a woman,
You tell her that she's really wanted.

When you love a woman,
You tell her that she's the one.
She needs somebody, to tell her that it's gonna last forever.
So tell me have you ever really...
really, really ever loved a woman?

Onde foi que nos perdemos?

Foto da Margarida
Onde foi que nos perdemos?

Algures na história que teimámos em construir?
Nos silêncios, que sabíamos abertos?
Nos parágrafos incompletos?
Na pressa de encontrar-nos?
Onde?

Sinto agora que não te conheço. Que me desconheces. Que nunca me soubeste. Que te suspeitei, só. Que te sonhei.

Que o amor que sentimos e ainda sinto, era o que precisávamos de sentir. E vinha ligeiro e enchia-nos o peito a par com o espanto duma coisa assim. Como se fossemos adolescentes oura vez. E não pensássemos. Só sentissemos. E a razão não tivesse sentido. E só o coração mandasse. E era tolice e sabíamos. E abandonámo-nos. E deixámo-nos ir. Corremos um para o outro.

E veio a distância. E a tua tristeza. E os silêncios. E as dores. Quis entender.
Embrulhei-me no teu silêncio e doeu mais ainda. Tive medo. Esses silêncios, essas dores, essas ausências, não me eram estranhas. Companheiros antigos traziam-me memórias em que não me queria afundar nunca mais. E já estava lá, de novo!

A dor maior é a de não ter havido tempo para entendimentos. De te ter perdido sem te encontrar. De me falares, como se falasses com outra. Que não sou eu. Perdeste-me em algum lado. Quem procuravas tu?

Ter sem ter

Um dia, cansada de tudo e de tanto calar, disse-lhe.
Sabes? A minha dor maior é saber que o tenho sem o ter. É saber que ele existe.
Que está presente para todos e ausente para mim.
É precisar de lhe sentir o aperto do abraço, de lhe ver o sorriso, de o ouvir até zangado... De sentir de novo, que me exige mais e sempre. Que marque horas e me espere quando saio. Que até nem goste de quem eu gosto. Até disso. Das coisas que só doíam eu sinto falta.
E sei-o lá. Vivo. Presente.
Comigo, já não está mais. Quase que queria sabê-lo doutra forma. Entendes?

Entendeu. Não podia deixar de o fazer. Sentia a par com ela, desde sempre.
Quiz ser tudo!
Apeteceu-lhe ser pai e mãe num só. Ou ser só pai, e estar ali. Presente. E ser tudo, e dar-lhe tudo, o que ela queria , precisava, merecia... Tudo o que lhe faltava.
E teve raiva de ser só ela. De ser tão pouco. De lhe ter dado um pai assim. De ser só mãe.
Teria sido ventre e tê-la-ia embalado de novo em si. Não metafóricamente mas duma forma real. Estaria protegida, trataria dela, poupá-la-ia.
Só lhes restava o abraço. E a certeza de que a amaria com a força de mil pais.
E a certeza dorida de que nunca seria capaz. Mas essa guardou-a para si.
E era uma dor a duas. Uma dor presa na alma a bater forte no coração, a pedir alívio. Uma dor que penosamente ela entendia tão bem!

E só podia dizer-lhe que a amava. E que ele também, só a podia amar. Á sua maneira. Duma maneira que nenhuma entendia. Mas era impossível não a amar.
Um dia, ele aprenderia a dizê-lo, a mostrá-lo, a estar presente.

Até lá prometeram. Seriam as maiores, as melhores, as mais lindas, porque mereciam!

Estrangeiros

Ás vezes parecemos forasteiros dentro das nossas casas.
Sentimo-nos assim.
Ás vezes pior ainda. Estrangeiros com linguagens que ninguém nunca aprendeu.
E o que dizemos, só nós sentimos. E o que ouvimos não faz eco em nós.
Porque se desconhece. Pelas ausências que fazemos em procuras sem rumos e com destinos desconhecidos.
Pela estranheza que se cria quando tudo é novo e desigual do que se sonha dentro de nós. Porque á nossa volta tudo gira mesmo que teimemos em ficar parados.
Um dia rasará outro forasteiro como nós,por nós, falando a mesma lingua, usando os mesmos gestos, habitando os mesmos sonhos.
Nem que seja por um segundo. Fá-lo-á. Talvez se fique e demore.
E juntos quem sabe, sejamos completos.
Ou não!

Saber que existe, já vai valer a pena!

Não sei

Não sei. Não sei se é medo.
Não sei se é conformismo. Ou alienação.
E, depois, para quê dar nomes ás coisas que não se explicam em nós?
Ás coisas que sabemos claramente, doridamente, mas não vemos reflectidas, embora só isso possam ser.
Cobardia? Seremos nós maiores? Mais capazes de viver e enfrentar as coisas sem rodeios inventados e desculpas desencantadas na pressa da fuga?

Tens razão. A tua realidade não é a dos outros. Porque tu a olhas de frente. Enfrenta-la, amparas-lhe os ventos e segues em frente. Tens a força de querer viver. A ousadia de te afirmares. A audácia de ser quem és contra correntes e marés.

Porque avançamos nós e os outros se ficam? Porque corremos riscos enquanto todos se defendem? Seremos loucos?
Não sei que nos move. Não sei o que trava os outros.

Sei como é!

Sei como é. Já lá morei. Nesse tempo. No tempo de todas as tristezas. Em que as noites não têm estrelas e os sonhos não as habitam porque os olhos não reconhecem a fadiga.
São as sombras que as povoam. Tudo é escuridão e dor. Os gestos fazem-se no esforço da sobrevivência. A lonjura é aconchego. O toque doi, o abraço arrepia e incomoda. o sorriso estranha-se e é esgar. A lágrima usa-se até secar. E fica o nó. E um deserto árido no peito a queimar.
Não há caminhos para lá entrar. Não há caminhos para de lá sair.
E vai-se cada vez mais fundo e mais escuro. Com mais dor e menos limite. Os olhos baixam-se, o corpo curva-se. O cansaço apossa-se dos restos que ficam em pedaços.
Não se conhece o fim, não se percebe o princípio. As palavras não servem de roteiro. Os sentimentos atropelam-se em velocidades desconhecidas. E no peito, onde repousa a memória dos afectos, travam-se batalhas em descompasso.
Ninguém entende a imensidão deste tempo. E a devastação que deixa. Ninguém lhe dá espaço ou sentido. Ninguém adivinha um tempo assim!
Só quem lá viveu. Ou quem por lá ficou.
Preso na ilha que fez de si, sem pontes, sem barcas. Porque não as há!

Mas só nesse tempo. Porque há outros tempos. Em que também já morei. Conheço-os quase assim de cor. São os tempos de viver. Dia a dia. Passo a passo.
E de parar. E olhar á volta. E dar quantos passos forem precisos, na direcção que decidirmos escolher. Porque os caminhos, afinal, fazemo-los nós!

A Jardineira

Tem no Jardim, Flores que o seu Coração escolheu. Trata delas, como doutras, embora ausentes. Dá-lhe pena ver seu Coração triste. Chora com ele também. Sabe que escolhe sem razões. Sabe que escolhe porque sim. Então, rega, ajeita e cuida com muita ternura. Um dia talvez peguem e floresçam. Talvez o seu aroma se faça sentir.
O seu Coração tem um calor bom, um carinho grande, um colo do tamanho do mundo. Está sempre aberto e límpido. E ás vezes fica triste, pequenino, não sabe que lhe faça. Sabe que sente a falta das Flores que ama e escolheu para o Jardim que ela trata. Sabe que as quer ver e sentir. Mas ela nada pode fazer. E essa impotência deixa-a sem sentido no Jardim que tem, tão grande, com tanta alfaia, tanta vontade e tempo de o tratar...

Ás vezes chega a pensar ser uma fraca Jardineira e não merecer um Coração assim.
Pensa desistir e não aceitar as razões daquele imenso Coração...

É à noite, quando o sol se deita e a luz com ele, que a tristeza cai devagar no coração.
Olha as Flores que cuidou com mil cuidados. Com todas passou tempo.
Há uma que sabe especialmente angustiada e distante. A essa reservou um lugar especial. Visita-a quase em segredo. De longe. Fala-lhe numa linguagem que só o amor entende. Resguarda-a de tudo. Até de si. Não lhe conta quanto lhe quer. E quer-lhe muito!
Só para não lhe pesar. Não lhe faz sombra para além da sua para não a carregar. Queria ser bálsamo para a sua dor e sorriso para lho pôr.
É só paciência que sabe ser.
E o sofrimento que não consegue conter deve-o ao Coraçao que lhe dá vida e abrigo e nunca lhe faltou nas horas más. E sempre lutou por ela.
E sempre a defendeu com a mesma força com que escolhe as Flores para o seu Jardim. E com as mesmas razões. Razões que só ele conhece.
Por isso não desiste. E trata delas com afinco. E sofre por elas com o seu Coração. Afinal ela é a sua única Jardineira. Ele é o seu único Coração.

Like a Star


Just like a star across my sky,
Just like an angel off the page,
You have appeared to my life,
Feel like I'll never be the same,
Just like a song in my heart,
Just like oil on my hands,
Honour to love you
Still I wonder why it is,
I don't argue like this,
With anyone but you,
We do it all the time,
Blowing out my mind,
You've got this look
I can't describe,
You make me feel like
I'm alive,
When everything else is au fait,
Without a doubt you're on my side,
Heaven has been away too long,
Can't find the words to write this song,
Oh...
Your love,
Now I have come to understand,
The way it is,
It's not a secret anymore,
'cause we've been through that before,
From tonight
I know that you're the only one,
I've been confused and in the dark,
Now I understand

Corinne Bailey Rae - Like A Star

Tenho saudades de ti

Tenho saudades de ti
Calou-se. Porquê saudades, depois do que lhe ouvira?

Fora sempre a sua fonte. Saciara-lhe sempre a sua sede. Sabia-a também faminta de si. Mas eram as conversas, os toques, as carícias, a cumplicidade dos encontros, os segredos trocados em presentes sem futuro nem passado que os ligavam assim.
Conhecia-lhe as suas fronteiras. Sabia os seus medos. Porque os partilhava. Viviam no mesmo mundo. Ela pedira-lhe para ele não se apaixonar. Ele pedira-lhe amizade eterna. Selaram acordo. Trocaram os sonhos. Viajaram neles.
Quando ela ela lhe lhe disse que se tinha apaixonado de novo, retirou-se. Deu-lhe espaço. Disse-lhe que estava feliz por ela. Quiz senti-lo.
Sentiu-lhe sede. E ela fome. Da paz que sentia com ele. Da falta do Aqui e Agora. Da ausência de momentos eternos que se bastavam por si. Por isso lho disse.

Compreendeu por fim. Abraçou-a dentro do silêncio.

Crazy


The closest thing to crazy - Katie Melua

Dimensões paralelas

Telefonou-lhe. Ela atendeu. Reconheceu-lhe a voz, porque o número tinha-o apagado há muito da sua lista.
Convidou-a para jantar. Aceitas?
Ela não hesitou. Que sim, porque não? De alguma forma sentia curiosidade em saber coisas dele. Tinha já feito parte da vida dela. Por algum tempo. De forma intensa. Algumas vezes sofrida.
E depois, seria um reencontro de amigos. Como ele, afinal, lhe pedira quando acabaram tudo. Um reencontro tardio, cheio de ausências propositadas. Mas necessárias.
Não houve tempo para grandes antecipações. Continuava da mesma forma. Em cima da hora, avançava. Nunca dava tempo. Como se as coisas obedecessem a impulsos e só depois acalmassem. Reconheceu-o aí. De novo.
Deu-lhe um toque. Ela desceu. Foram ao mesmo restaurante de sempre. No caminho uma conversa parda de quem não sabe o que dizer.
Só no restaurante, frente a frente, com o mesmo empregado que tantas vezes os serviu, a conversa começou envergonhada a crescer. O mesmo sorriso e as mesmas perguntas sem intenção de resposta. Fê-las todas com o mesmo ar de sempre. Como quem a tinha visto na véspera e não ao tempo que era real.
Para ele, o tempo tivera sempre outra dimensão. Estranho, pensou ela, como ainda hoje lhe vejo as mesmas coisas. Como o sinto tão igual.
Conversaram pairando sobre cada um. Avaliavam-se mútuamente. Procuravam-se. Reconheciam-se. A conversa ficava sózinha enquanto eles se olhavam, observando cada gesto, cada olhar, á procura de coisas novas. Era tudo como dantes.
Saíram á procura de ar fresco e de um sítio calmo para acabar a noite. Um barzinho.
Aí veio a surpresa. Porque não voltamos a estar juntos? Foi tudo tão bom!
Ela calou-se. De espanto. Voltou-lhe á ideia o pensamento de que ele vivia noutra dimensão. E acreditou nisso. Teve a certeza.
Antes que ela respondesse levantou-se do lugar, levantou-a, agarrou-a pela cintura e apertou-lhe os lábios contra os seus, numa tentativa forçada de beijo.
Subiu-lhe um grito que reteve. Afirmou-se a certeza.
Ele percebeu-o.
Porquê? Interrogou-a de seguida.

Ainda hoje ela se questiona como podem duas pessoas, viverem as mesmas coisas e sentirem coisas tão diferentes.
De duas vidas iguais haver memórias tão díspares?
Como num se desgasta o que noutro sempre cresce!
Como vivem duas pessoas juntas, em linhas paralelas, sem nunca se cruzarem?
Não lho pergunta a ele, sabe que não terá resposta. As longas conversas que tiveram nunca passaram de monólogos centrados em umbigos demasiado importantes para daí se deslocarem.

Leva-a a casa. Pergunta-lhe ainda. Subo?

Frágil

Durante muito tempo não tivera nada. Mas sentira que tivera tudo a que tinha direito. A nada. Era o que sempre tivera afinal. E chegava-lhe. A sua forma natural de estar e ser era assim. Despojada e sózinha. Apartada de tudo e de todos. Visitava as pessoas e as coisas de forma fortuita sem incomodar. Pelo tempo necessário, indispensável. Afastava-se logo.

De repente, tinha tudo e demais. Assoberbada, queria e temia. Porque descobria que lhe sabia bem. Mas vinha-lhe ligeiro o medo de perder. E todos os sentimentos que vêm quando se tem quem e o quê amar. E não gostava deles, de os sentir. Eram-lhe estranhos e faziam-lhe mal. Incomodavam-na. Adoeciam-na. Queria amar e ser amada. Só.
Sem os outros atavios que sempre adornam os amores. A saudade, a ansiedade, o ciúme, a dúvida, a angústia...
Queria amar sem mais nada.
E não era capaz. Não sabia.

Vivera como num barco em mares de marés calmas, onde os sentires deslizavam ao sabor dos ventos que nunca lhe enfunavam as velas em demasia.
Agora a tempestade formava-se. As ondas eram altas de mais. Não se lembrava já de navegar assim. Perdera-lhe já o feitio. Sentia-se agora frágil.
De muitos naufrágios, já. De muitas vezes ter já visto o fundo do mar. E ás vezes ter querido lá ficar. No escurinho. Muito quieta. Enroladinha.

Voltar.
A contar as suas histórias a outros navegantes e partir.
A partilhar e avançar.
A aceitar naturalmente e a dar sem pensar no que fazia, porque era assim que deveria ser.
Como quem abre os olhos com a luz da manhã e os fecha ao anoitecer com o cansaço.

Vou esconder


I'll never let you see
The way my broken heart is hurting me
I've got my pride and I know I'll do hide
All my sorrow and pain
I'll do my crying in the rain

If I wait for stormy skies
You won't know the rain from the tears in my eyes
You'll never know that I still love you so
Though the heartaches remain
I'll do my crying in the rain

Raindrops falling from heaven
Could never take away my misery
But since we're not together
I pray for stormy weather
To hide these tears I hope you'll never see

Some day when my cryin's done
I'm gonna wear a smile and walk in the sun
I may be a fool
But till then, darling, you'll, never see me complain
I'll do my crying in the rain

A-ha - Crying In The Rain

Não me apetecem despedidas

E dançámos, rodopiámos, ao som dos sonhos que construímos nas noites que devorámos sem sonos nem cansaços.
Era a última das danças em toques esperados em desespero. Depois eram as partidas. Os sonhos divididos. De cá, a vontade e o medo de partir. E o oceano tão grande pelo meio. Lá, o sonho a cumprir-se. E, pelo meio, um amor que se sentia da imensidão do oceano que nos separava.
Um abraço mais forte, na volta apertada, traz-nos de regresso. A este tempo. A ouvir a mesma música, ao mesmo tempo e a dançá-la, num passo certo, como quem sempre a dançou e nunca outra coisa tivesse feito.
Como a dançaremos estando tão longe? E as ausências dos toques que se anseiam?
As vozes, os risos, os olhares cruzados em camaras de video de má imagem, as músicas, podemos mantê-las.
Mas... E tudo o resto?
Dançámos, dançámos até que o cansaço marcasse em nossos corpos o amor, de forma tão visivel que, só isso, bastasse para vivermos assim. Essa dor manteria viva a esperança. Um dia descobriríamos qual.
Até lá, continuariamos a partilhar as mesmas canções em sonhos e continentes divididos.

Paragem obrigatória

A lágrima que espreita teimosa, instalada á beira da queda, não está aí por teimosia.
Não está aí por não ter espaço onde devia. Não está assim por ser gentia.
Está pelos sinais que pressente.
E deixa-se cair, dando lugar a outra que também os sente.
Aproxima-se o tempo de todos os limites. Em que tudo se vive no limiar. Da gargalhada á lágrima. Onde a tranquilidade não tem sentido. Um sorriso é sempre um prenúncio duma lágrima. Emoção simples. Emoção. Ternura a doer.
Como se nunca houvesse caminho. Só partida e chegada.
Pior. Só chegada e partida.
Como se tudo se tivesse e tudo se perdesse, sem o tempo de se ter tido, verdadeiramente.
Como se nós e as coisas tivessemos velocidades diferentes.
E quando as queremos agarrar, conservar na memoria afectiva, lhes perdessemos o rasto, de tão distantes estarmos.
Porque tudo e tanto acontece em simultâneo. E não há tempo, para tanto tempo que queremos viver.
Ainda agora chegamos e já fazemos as malas para partir.
E a lágrima teima em ficar-se no desequilibrio, instalada á beira da queda...

O tempo da planura

Não sei se te canso de tanto me ouvires falar. Olhas-me em espera.
Iluminas-me, respondo. Dás-me o espaço que preciso. A voz que não ouço quando me escuto. A distância que não tenho quando me afasto de mim. Fica comigo assim. Continua.
Tranquilizo-me. Respondes e acalmas.

Olho-me agora. Sim. As outras vidas, todas, cruzam-se na minha.
Nos sorrisos, nas lágrimas, nas esperanças, nos sonhos, nas vitórias e nas derrotas.
Em todas as medidas. Em todos os sentidos. Em momentos e circunstâncias diferentes.
Nas molduras que cada um constrói, as mesmas paisagens. Outros actores. As mesmas cores. Outras nuances. Pinceladas com raiva ou com doçura. E...
Ecos, sempre.
Que nunca temos tempo para ouvir.
Agora ouço e reconheço-me em todos os que ouço. E conheço-os com uma nitidez que me perturba, porque a julgava impossível. Porque para mim era tudo pouco claro. Muito confuso. Pouco explícito. Demasiado difícil. E doloroso.
Agora percebo.
Ainda me questiono. Ainda me sobe a náusea. Ainda me perturbo.
Mas entendo porquê. E aceito.
Porque vivo o tempo da planura. Onde tudo se espraia em liberdade e calma.
E as coisas são lisas, macias, suaves. Como devem ser com o passar dos tempos e das ideias.

Praça das Vaidades

Não te receio.
Embora saiba que não me possa descuidar. Não posso perder o ritmo. Nunca. Na Praça das Vaidades não há lugar para os que se acomodam. Desafio-te a estares melhor e a seres mais cobiçada. Quantos e quantas, já hoje, se voltaram para te observar? Quantas, hoje, quiseram ser como tu? E não cabem nas tuas medidas?
Sou de papel, eu sei! Fui retocada, manipulada, mas sou o sonho feito isto que tu vês. Tenho o sorriso desenhado, planeado, também não o desminto. Mas é assim que gostam de mim. É assim que querem ser todas. É assim que todos gostariam de as ter junto deles. Sou a visão que anseiam. O objectivo em mente quando se entra no ginásio, na loja dos cosméticos, no cabeleireiro. Na luta desesperada das dietas. Porque não se pode perder o ritmo. Porque ninguém se pode descuidar.
Não fiques calada, especada, na desculpa estúpida, de seres únicamente um manequim articulado, numa montra duma loja qualquer, montada numa vulgar Praça de Vaidades. Levanta os braços, baixa os braços.
Faz qualquer coisa. Reage!