Podia ser por acaso...

Podia ser por acaso. Ou acontecer uma só vez na vida. E parar aí.
Ser ponto final.
Nem virgula, nem reticência, muito menos, ponto de admiração.
Um só descontrole ocasional. Uma borbulha a mais, num nariz já acostumado.
Mas não. Acontecia sempre, da mesma forma como se fosse vital.
Como se fosse mágico e também raro. E, era-o!
Sentia-o assim. Fazia-a sentir-se assim. Uma caixinha poderosa, dum valor incalculável.

Tinha a prova disso consigo.
Um sorriso enorme cresceu-lhe na cara que brilhou pelo dia fora...

Uma flor especial a desabrochar em alturas de dor e perda. Algo que nasce quando algo se vai.
Como se nunca pudesse haver lugar para ausências.
E a semente estivesse sempre pronta a germinar. Especialmente nessas alturas.
Sempre que perdia alguém, acontecia.

O filho era prova disso. Fora a "troca" do irmão perdido. Nove meses depois e em honra do santo que na altura se celebrava, dava fruto a magia que transportava em si, a quem deu o nome de António.

O que a principio parecia um acaso, provou ser um facto assumido.
Acontecia sempre. Duma forma precisa, agora já esperada e saboreadoa como se duma graça se tratasse.
E era-o!

Quando...

Quando não sei de ti e te procuro em desespero.
Quando os meus sentidos alerta nada deixam escapar e mesmo assim não te sinto...
Imagino-te num lugar que desconheço mas sei cheio de perigos e medos que lá guardo para não os ver nem viver.

E sei de coisas que ninguém inventou.
E crescem histórias feitas de palavras com raízes de pavores que só nos pesadelos se enfrentam.
A minha vida deixa de o ser aqui e transforma-se presença num reino onde só o mal existe.

Temo por ti.

Vêem-me à memória as mensagens que me deixas. Os bilhetes que encontro dobrados entre a roupa que procuro para vestir ou debaixo da almofada onde deito a cabeça cansada ao fim do dia.
E os sorrisos que vêm com as memórias vão-se na água que as lágrimas quando caem sem cessar apagam sem piedade.

Temo por nós. Pela inevitabilidade de mundos assim, num tempo qualquer.

Um sorriso na ponta da lágrima

Estava triste.
Podia estar doutra forma tambem.
Deixou no entanto que lhe caisse uma lágrima.

Ele pressentiu-o. Estás bem?

Esboçou um leve sorriso.
Não estremeças, tenho um sorriso na ponta das lágrimas,
lembraste?

Das tuas palavras nascem versos.
Apetecem-me poemas feitos de ti.

Um dia fê-lo.

Na ponta das lágrimas, cresceu-lhe um sorriso maior.

A nódoa

Caiu-lhe pesada numa forma irregular.
De tão forte, estragava o feitio que se perdia na prega agora torcida. A flor no jardim que lhe bordava a saia perdia o brilho e as pétalas sufocavam escondidas num remendo sem cor ali plantado abruptamente.

Virou-se rapidamente, tentou esconder o rubor que lhe subiu á cara e a vergonha que se plantara na saia.

Um olhar, fora só isso. Conhecia-o de algum lado.

Às vezes eram os gestos que lhe chamavam a atenção. Outras a voz.
Podia ser uma palavra, numa frase qualquer. Ou um cheiro. Sim, uma nesga de aroma numa memória olfactiva a espreguiçar-se.
Qualquer uma dessas coisas a podia despertar dos passados.

Mas fora o olhar. De espanto.
Não contava com ela ali. Por isso se embrulhou e tropeçou nos gestos. Por isso lhe dançou o copo de forma abrupta lançando-se em queda, amparada só pela saia rodada que ela trazia.

Procurou uma casa de banho, um sítio onde pudesse apagar a mancha e dar vida á flor que murchava escondida. Atrás dela, um braço estendido pedia-lhe que parasse e em surdina dizia, desculpa.

Da saboneteira tirou um resto que ainda havia, misturou-o com alguma água, levantou a saia, deixando as pernas desnudadas e tentou, esfregando com alguma suavidade retirar aquela coisa incómoda. Tentou uma, duas, três vezes. Sem sucesso.
Permanecia intacta como se não quisesse deixar de ser vista nunca mais.
Secou a saia no secador de mãos. Ajeitou as pregas.
No jardim, havia agora uma flor com memória. De cor diferente.

Do lado de fora, ele esperava-a com outra flor retirada á pressa dum arranjo de mesa, uma rosa vermelha e um sorriso envergonhado.

Aceitou-lhe as desculpas. Colheram memórias juntos.

E, se fosse...

E, se fosse…

E, se fosse eu noutro qualquer, quem seria eu, afinal?
E, em quem te reconheceria?

E, se fosse outra boca, não a tua, que eu beijasse, como sentiria eu?

O arrepio, a alegria, certeza de ser sintonia e onda do mesmo mar…
Onde andariam a navegar?

Se abrisse os olhos e não te visse, saberia que te procurava?

E, se fosse a Lua ali pendurada e mil estrelas a brilhar, em vez do Sol que sinto?
Era a noite e não o dia a acontecer. Mais um a madrugar e não a adormecer.

Teriam, as noites, esta Lua vigilante? Os dias, este Sol em que banho as tuas carícias?

E, se fosse…

Às vezes, sabes? Às vezes tenho medo de acordar e defrontar-me com tudo ás avessas.
Com o oposto das coisas. Ficar no escuro e saber as luzes acesas.
E, não saber ligar o interruptor, nem mesmo encontrá-lo.

E, se fosse tudo diferente…

O pedido

Desenrolou-se do abraço de mansinho para não o acordar.
Espreitou-lhe o sono que pressentiu leve.
Encolheu-se, fez-se mais pequenina, esgueirou-se por entre os lençóis e escorreu cama abaixo.
Pé ante pé, abafou os ruídos surdos dos pés descalços no chão de madeira e foi até ao chuveiro.

Vigiavam-na os olhos semicerrados dele.
Cada movimento seu era sombra de si. Como se fosse parte sua.
Seguiu-a num ímpeto.

Apanhou o cabelo e entrou preparada para refrescar. Ouviu-o. Virou-se.

Olhou-a. Despiu-a de toda a nudez.
Agarrou-lhe os olhos, entrou-lhe na alma e perguntou-lhe: Namoras comigo?

Ela sorriu. Quase riu. Se já o fazia…!
Que sim. Acenou afirmativamente. E com a voz confirmou.

Sorriram os dois.

Ela virou-se. Teve todas as certezas.
Soube que ele faria as coisas que deveria fazer no tempo certo.
Deixou que a água lhe corresse pelo corpo e levasse as dúvidas que alguma vez tivera, se as tivera.