I'm willing to give it a try


You only stay with me in the morning
You only hold me when I sleep
I was meant to tread the water
But now I've gotten in too deep
For every piece of me that wants you
Another piece backs away
You only waited up for hours
Just to spend a little time alone with me
And I can say I've never bought you flowers
I can't work out what they mean
I never thought that I'd love someone
That was someone else's dream
You give me something
That makes me scared alright

This could be nothing
But I'm willing to give it a try

Please give me something
Because someday I might call you from my heart
But it might be a second too late

And the words that I could never say
Are gonna come out anyway

Música e letra de James Morrison

Ensaio

Ensaio o gesto. Para evitar a dor.
Assim eu pudesse fazer na vida!

Magia

Falava-me um amigo dum kit de Magia que, um dia, tinha dado ao filho.
Ele adorava mágicos e truques, e pombas e capas... Esbugalhava os olhos nos espectáculos que devorava.
Quando o recebeu, correu para um canto e apressou-se a experimentá-lo. Ia finalmente realizar o seu sonho de tirar coelhos de chapéus.
Ia... Porque não o conseguiu.
A varinha não funcionava!
Vem direito ao pai, zangado, derrotado, infeliz e pede.
Pai, devolve, a varinha. Está estragada! Não funciona, não faz magia!

Lembrei-me, por isso, do que para mim é mágico quando ainda não desvendo, mas ainda me deslumbra. As vozes que ouço e me acariciam os ouvidos. As palavras que leio e parecem entender-me. As imagens que vejo, e sei retocadas, mas tocam a alma... As pessoas que invento pelo que vou sabendo.
Depois, e ás vezes, confrontada com a realidade, tocando, cheirando, sentindo, vendo, a magia vai-se.
E apetece-me também devolver.
Voltar ao estado de deslumbramento que me fazia sonhar.
Ou então, confesso, ficar á espera de pouco ou coisa nenhuma. Sempre de alguma varinha estragada.

Mas quando ela funciona...
Cresço, cresço muito, porque sou ainda pequenina e, talvez por isso, acredito em Magia.

Shiu...!

As palavras deslizam,
apressam-se em torrentes loucas.
E perdem-se.
E perco-as.
Escapam-se-me.
E fico-me á espera que voltem...
Em sossego.

Não me voltem a fugir
pelo susto dos gestos
inadvertidos...

Visito o Futuro


Para não alimentar a saudade visito o futuro, que sonho, assim de brincadeira.

Rodrigo Leão e Beth Gibbons - "Lonely Carousel" com imagens do filme " Love Actually" (vídeo não oficial em My Fly Away)

A vida dos traços

(pesquisa na net) arte levantina

Espanto-me com a vida dos traços. Como crescem. Tomam formas. Definham e morrem quando os desenhamos. Ou por vezes, rebolam e saltam nas linhas, se a alegria nos transborda.
Fazem de nós o retrato do que sentimos.
Lembro ainda, de forma terna e com nitidez, o meu querido professor de História, de que tanto gostei, quando me dizia:"Rosa Maria, hoje não estava nos seus dias, a sua letra redondinha, como os vinhedos do Douro, estava desconcentrada!"
Desconcentrada... Como se as letras se desconcentrassem por si!
Era um sábio aquele homem. E as letras que eu desenhava, umas delatoras!
São-no sempre. Não fossem agora os meios que usamos e denunciarnos-iamos a cada palavra escrita.
Transparentes no olhar, no gesto e no traço, seríamos violados no espaço interior que cremos protegido. É o traço também espelho da alma. Conta também histórias que nem supomos. E quando nos debruçamos a lê-las, descobrimos outros mundos, outros tempos, outras vidas.
Pelos traços que deixamos seja da forma que for.
E pelos tempos que forem.
As marcas permanecerão, mesmo que indeléveis.

Não são poesia

Conheceram-se sempre desta maneira. Viram sempre as mesmas coisas. Olharam-se sempre. A Natureza deu-lhes as mesmas formas. Domou-as. Deixou-as. Ali.
Acordam olhando o mesmo mar do alto da mesma serra. Todos os dias. Todos os anos.
Sempre juntas. Sempre sós.
Espelharam-se.

Como tanta gente que conheço e sinto assim!
Iguais, porque moldadas pelo passar dos anos. Semelhantes como se fossem feitas para serem pares, acomodam-se e ficam -se como se não tivessem ,mais, pés para andar, sonhos para viver.
Ou então, são árvores...
Sim. São árvores!
E correm-lhe pelas veias, seiva em vez de sangue.
E o fogo que as consome é real. E são cinza no sentido literal. Não metafórico.
Não são poesia. São gente. Isso!
Pode tudo consumir-se á sua volta. Permanecem impunes.
Pode haver dor. Sorriem.
Aridez. Florescem.
Noite. Amanhecem.
São. Simplesmente.
Como tudo é. Ou não é.

Porque há quem morra de pé. Como as árvores.

As nossas conversas

Usávamos as conversas com o mesmo á vontade com que vestiamos as roupas, com o feitio que o corpo lhes tinha já dado. Como se sempre tivessem existido, e não tivessem tido outro propósito senão, o de terem tido sido sempre nossas. Tinham as nossas medidas, os nossos sonhos, as nossas dúvidas e os nossos anseios. Cabiam e mexiam-se aí como em casa própria e usada rotineiramente mesmo que, por espaços , vazia.
Fantasiavamos, brincavamos. Fingiamos que eramos outros e viviamos outras vidas nas nossas. E as conversas fluiam, mesmo assim. Mesmo nas roupas que outros vestiam e que nós ensaiavamos, vestindo também. Tão bem!
Chorávamos e ríamos. Quantas vezes! E abraçados no fim, amávamo-nos. Sempre, como nunca. Sempre como na primeira vez. Era só a que sabíamos. E era sempre ao que nos sabia. De tão intenso e poderoso. De tão puro e inocente. De tanto descobrir ainda.
E as conversas não paravam. Eram um vício que nos transportava a outros tantos. Ás descobertas de outros mundos em nós. E tinhamos tantos... Que nunca os descobrimos todos.
Por isso temos ainda vontades de conversas por tempos que ainda estão para vir.
Porque se enrolam em nós. Porque crescem sem parar as vontades sem destino. Porque não lhes falta o alimento que lhes cresce no ar que respiramos, nas coisas que abraçamos com os olhos e sentimos com a alma.
Porque somos dois, ainda.
Mesmo longe. Mesmo ausentes
Porque as conversas não precisam de corpos.

Porque o mar lhe metia medo

Naquele dia o areal estava submerso por leve camada de água. Como se tudo fosse mar. Como se nada o fosse. Era sereno, transparente e convidava a caminhar. Enterrava os pés e arrastava-os construindo caminhos de água em direcção a mares profundos que tardavam. Caminharia. Com a certeza e a segurança que a limpidez das águas lhe traziam. Sabia que a dada altura , lá muito ao fundo, o mar se alargava e esticava em precípicios. Era uma linha distinta. Uma fronteira visivel. Que não ultrapassaria. Porque o mar lhe metia medo.
Aqui deixar-se-ia lamber pela água salgada. Estava-lhe já na pele a marca que o calor do sol fizera secar. Do sal. Que via agora branco áspero.
Ao longe o marulhar das ondas.
Recordações de conversas nocturnas, quando empoleirada em rochedos as lágrimas salgadas lhe corriam da cara em direcção ao mar que lhe embalava as dores. E as sepultava.
Agora e para já caminharia até poder. Porque o mar lhe metia medo.

O anel de pensar claro e certo

Para os outros era mais um adereço. Para ela, por ironia, era arma de defesa. Porque agressivo nas formas. Porque incisivo nas memórias.
Tinha nascido dum desejo formulado sem intenção. Não tendo como resultado final as imagens que lhe deram forma, tornou-se um fiel companheiro. Trazia-lhe ao presente, tempos que não queria voltar a viver. Espicaçava-a para novas vidas. Lembrava-a e forçava-a a andar em frente. Com força e determinação. Olhar para trás, serviria para se certificar que nada voltaria a ser como dantes. Só.
Agora era ver na amplitude que o olhar lhe permitia. E viver aí em cada instante e pedaço. Sem a pressa de chegar. Com a alegria de viajar. E com a fome e a sede saciadas sem limites e em prazer. Tudo a enternecia duma forma que desconhecera até agora. Tudo tinha um brilho mais intenso, uma importância maior. A vida sabia-lhe ao que era.
Finalmente o anel que era de outros tempos, turvos, pesados... Trazia-lhe a leveza e a claridade que nunca sonhara.
Era um anel de pensar claro e certo.

A tesourinha

A alcunha nascera-lhe quando ela o fizera. E ficou-lhe pelos tempos que vieram.
A história que lhe deu nome começou de forma inesperada e tornou-se insólita. Por tanto de estranheza e de acumular de coincidências. Por isso me atrevo a contá-la. Coisas que acontecem e não se repetem jamais.
Estava a mãe já com filhos crescidos e sem projectos de mais, em periodo de menopausa, quando um dia, por se sentir mal, decidiu ir ao médico. Há algum tempo que sentia a barriga crescer e algum desconforto de que não suspeitava a causa. Era um "mioma", diagnosticou o médico. Estava a crescer e em algumas situações esse estado podia até assemelhar-se a uma gravidez. Como já estava muito grande o melhor seria retirar. Assim ficou combinado.
Deu entrada na sala de operações, para se aliviar e despojar dos orgãos, que tinham já dado algumas vidas, a par com o "mioma" que, a atormentava e crescera de forma desmedida.
A surpresa veio, quando ao abri-la, o cirurgião se deparou com um feto já em franco desenvolvimento. Fechada á pressa é deixada á sua sorte no corredor.
O marido que, por um acaso, teve de ser socorrido nesse hospital no mesmo dia e enquanto isto se passava, foi ter com ela. Encontra-a em sofrimento e dá-se conta que a sutura que lhe tinha sido feita se encontra em rotura. Alerta o pessoal médico que rápidamente a socorre e trata, desta feita, convenientemente.
Carrega agora, durante mais dois meses, a gravidez que não sonhara, mas acalenta com ternura e mil cuidados. Chegado o tempo que bastava a uma e a outra, nasce a criança que embalara em si.
Ao pulso da bébé vem presa uma tesoura. Tinha sido deixada por desleixo e pressas carregadas de culpa, dentro da mãe, aquando da intervenção.
Sem o saberem, mãe e filha cuidaram uma da outra. Tudo agora ficara reparado pelo nascimento.
Foi daí que veio a alcunha carinhosa de tesourinha, pela qual ainda hoje é conhecida.
Já mãe lembra ainda como tudo poderia ter sido negativo para ambas. E como ás vezes ainda há milagres!
(O médico ficou proibido de exercer medicina em hospitais públicos, continuou no entanto a exercer em clinica privada. Resoluções doutros tempos!)

Em segredo

Visito-te em segredo. Sempre que a saudade mo faz de viva voz.
Não te bato á porta de propósito. Vou descalça em surdina.
Que ninguém pressinta, nem mesmo tu.
Fico quieta a olhar-te. Como me sabe tão bem fazer. Ouço-te o riso, enquanto o teu cheiro me envolve. Fico-me neste abraço que te roubo. E pairo, leve, leve.
E deixo-me ficar.
Como quem vê alguém dormir e respira de mansinho a procurar sintonia.
Como gosto de te sentir dormir.
Aquieto-me um pouco, aqui neste cantinho onde tu não suspeitas que te olho. E sonho-te.
Como barco sem remos deixo-me ir á deriva pelos pensamentos que nascem por ti.
Sabem-me a tardes frescas em tempo de calor. Assim sacio a sede que tenho de ti.
Agora vou. Voltarei. Sei que sim.

Coisas minhas

A Helena anda pelos blogues como eu. Encontrei-a há dias em desabafos de vontades esquecidas. No prazer da redescoberta da escrita. E de como lhe sabem as palavras que têm cheiros e sons doutros tempos. Contava como se levantava a meio da noite para as satisfazer, a essas vontades. E de como escrever à mão pode estar já tão longe. Falava da estranheza de escrever com a caneta que apanhou á mão e na saudade dos traços que quase desconhecia.
Achei curioso. Talvez por me rever nalguns gestos.
Porque essas urgências me são familiares. E cumpro-as, não vá a memória trair-me. Porque as palavras que tomam corpo no caderninho onde as desenho têm a cor da minha alma e o sabor sentido do bater do coração. São magia pura. Confesso a paixão que lhes tenho e o prazer infindo de as fazer brotar. Coisas minhas... pensava eu.
Coisas de tanta gente!

No dia da maré estranha

"Foi no dia da maré estranha que a minha Deusa partiu.
Durante toda o dia, debaixo de um céu opaco e turvo, as águas foram aumentando, chegando a alturas jamais vistas. As ondas rebentavam serpenteando-se pela areia queimada que anos a fio somemte pouca chuva humedecera e morriam nas bases das dunas. O casco amortalhado do "Principe das Marés", jazia encalhado no fundo do mar há já tanto tempo que ninguem de nós se lembrava quando terá pensado que ia ser de novo lançado ao mar.
Após esse dia, não mais voltei a nadar.
As gaivotas e outras aves marinhas grasnavam , subiam e desciam como doidas, como que excitadas pelo espectáculo daquele enorme amontoado de água de uma cor estranha e de brilho funebro... Nesse dia, essas aves pareciam estranhamente brancas como se tivessem barriga de peixe. As vagas ao rebentarem, deixavam uma fina espuma suja e amaraleda ao longo da linha da costa. Ninguem via uma vela de barco no distante horizonte.
Não mais, não mais voltei a nadar.
Mas o passado, pulsa dentro de mim como um segundo coração. A minha Deusa partiu ao amanhecer.
Para dizer a verdade, eu não estava lá quando aconteceu. Tinha ido até ao mar para respirar o ar lustroso da manhã. E naquele momento tão calmo e melancólico, recordei um outro momento, há já algum tempo atrás, neste mar. Tinha ido ao mar, não me lembro porquê. O céu estava enovoado e nem uma brisa agitava a sua superficie, as ondas pequenas desfaziam-se languidamente na orla da água, continuamente, como uma bainha interminavelmente pespontada por uma costureira ensonada. Eu estava de pé com a água até à cintura. A água era perfeitamente transparente pelo que podia ver nitidamente a areia ondulada no seu leito pequeninas conchas e pedacinhos de tenazes partidas de caranguejos, e os meus pés lividos e estranhos, como espécimes exibidos em redomas de vidro. Enquanto estava ali parado, de repente, não, não foi de repente, mas antes numa espécie de encapelamento progressivo, o mar engrossou, não era bem uma vaga, mas um ondular lento e suave que parecia vir das profundezas como se qualquer coisa imensa se tivesse agitado lá no fundo e senti-me levantado por breves instantes e arrastado para o areal e em seguida voltei a pousar tal como antes, como se nada tivesse acontecido. E, de facto, nada tinha acontecido, uma ninharia sem importância, apenas mais um encolher de ombros indiferente deste vasto mundo.
Depois, alguem me veio chamar. Virei-me e segui a minha Deusa como se estivesse a caminhar pelo mar dentro."


Apesar de anónimo reconheço-lhe a voz. E a vontade enorme de partilhar alguém assim, leva-me a trazê-lo da sombra e ter a audácia de o fazer caminhar a meu lado. Bem haja por ser quem é!

Ainda não


Esperava-a. Abriu-lhe a porta para não o voltar a fazer. Não se deu conta que a recebia em despedida. Não o pressentiu. No entanto era a ultima vez que estariam assim.
Nas conversas que cresciam fáceis e próximas falou-lhe do filme "Les choristes". Nesse momento, ela, decidiu guardá-lo. Ali. Na memória das memórias que nele viviam.
Sabia, numa certeza que construíra ali naquele momento, que esta seria a última noite. E esta, era a forma que teria para o viver, quando as memórias o chamassem.
Tinha-lhe dado tudo. Desvendara-se já. Demasiado nua, porque se mostrara inteira, sabia que nada mais poderia dar. E que nada mais deveria receber.
Guardou-lhe a memória como se dela fosse. Apressou-se a aprisioná-la. Porque, a ele, não o prenderia nunca.
Nas lágrimas que lhe subiam á garganta buscou a força para um sorriso. Era tudo o que ainda lhe restava para partilhar. A certeza duma paz que ele nunca a quiz fazer perder.
Queria-lhe muito. De tanto lhe querer, tinha de o deixar. Não seria nunca seu. Sabia-o.

Não o deixou olhar para dentro de si naquele tempo. Seria só dela a decisão. Só dela o que houvesse para chorar. Isto não seria a dois. Era o único segredo que em si deixava. O unico pedaço de si que ele nunca visitaria e de que nunca se daria conta. Um espaço e um tempo só seu.

Não queria nunca ser assim de alguém. Ainda não.

Corrente

Tocou o telefone. Atendeu. Do outro lado uma voz alheia diz-lhe que o irmão mais velho tinha morrido. Parou. Disse-o para si. Irmão. O meu irmão.

Chamou as lembranças que dele tinha embora poucas vezes o tivesse visto. Nunca o conhecera bem. Era uma peça que sabia ser parte sua. Porque lho disseram, não porque o vivesse.
Conhecia-o das histórias que lhe contaram. De como tinha sido rebelde. Do fio de linha com que lhe uniam os pés para não se mexer. Da sua fuga para outras vidas.

A voz de lá pertencia a uma sobrinha que nunca conhecera. Perguntou. Quando? Como? Sim, vou aí ter!

Naquele instante deu-se conta da perda. Nunca o tivera e perdera-o para sempre. Sentiu dentro de si, estalar o elo duma corrente que nunca imaginara. Como se ela estivesse, daquela forma, ligada a ele. Por uma corrente de sangue. A que sentiu era de metal. Viu-a abrir-se soltar-se e desaparecer. Sentiu-lhe a falta e o vazio. Com uma dor que nunca antecipara.

O irmão tinha morrido e a corrente, da qual ignorava a existência, quebrara-se.

A desconfiança

Nunca entendi a desconfiança como uma forma de vida e de nos relacionarmos com os outros. Talvez seja da natureza um pouco ingénua dos carneiros e da sua caracteristica impulsividade.
Aprendi, isso sim, a não esperar demais dos outros, mas nunca deixei que o preconceito me afastasse deles. Parto para quem me rodeia de mente aberta e predisposta á descoberta. Porquê? Nem sei. Mas gosto de o fazer assim.
Se me desiludo? Se me surpreendo? Porque nada espero, dificil será desiludir-me.
Confesso que ás vezes me entristeço e então quase me arrependo de ser como sou. Prometo sempre ter mais cuidado com o que dou de mim.
Impossível!
Porque sem estas caracteristicas, não sou eu. E recuso-me a não o ser. Porque a teimosia própria de todos os carneiros também é a minha condição.

Confio sim, até prova em contrário.

O sapateiro

Na minha rua, depois da igreja, tenho uma taberna e uma mercearia escura dum lado. Do outro, mais á frente, quase ao fim, fica um sapateiro. Ocupa a entrada, daquilo que julgo ter sido, um pátio onde as alfaias ou os cavalos ficavam. Tem um sobrado de ripas grossas comidas já pelo tempo. Por isso, de lá, espreitam raios de luz dum qualquer buraco no telhado. O espaço está dividido em duas partes: a dos fregueses e outra. Essa serve-lhe de refúgio e descanso.

Por muito tempo aquelas portas não se abriram. Pesadas, enormes, faziam sentir a sua ausência de forma viva, enquanto ele quase morria. Cada dia que passava acrescentava tristeza à ausência. Tornara-se já, para todos que por ali passam, necessário. Faziam falta as conversas e sobretudo o bem estar na vida que ele transmitia.

Voltou mais magro e pálido. Os olhos vivos de rato tinham perdido cor. Mas dentro dele permanecia a força que sempre nos mostrara. A pouco e pouco foi dando um ar da graça que lhe conhecíamos. Ainda está connosco e vai continuar. Fico-me agora pelo aceno que ele atira ou pela graça que tem sempre á mão.

Para que fique sempre e para quando fizer falta, pedi-lhe uma fotografia. Ó dona, só se for para a SIC. Atirou ele. Respondia-lhe que era para mim. Porquê? Olhe, gosto de si!

Um puzzle

Um dia pensou em si, como se de um puzzle se tratasse.
Tudo seria muito mais simples se a sua vida e o que ele era, fosse a mera construção dum imenso puzzle. Seria só necessário procurar e encaixar as peças. Procurar ou deixar que aparecessem. Bastaria estar alerta.
Assim o fez. Construiu-se e por muito tempo sentiu-se um puzzle completo onde todas as peças encaixavam na perfeição. Julgou-se pleno e feliz.
Um dia algumas peças desajustaram-se e deram lugar a vazios que julgou irreparáveis.
Descobriu, então, que mesmo sendo o puzzle que se sonhara estaria muitas vezes incompleto. Que teria de se reparar e reconstruir a cada passo.
Ajustou-se então, na medida dos espaços que tinha vagos e por encher.

Penso que agora já concluiu que o seu puzzle nunca estará terminado. Não terá mesmo, peças com lados rectos. Porque ele e a vida não terão limites.
Penso também que agora não perseguirá a plenitude com data marcada num futuro qualquer.
Terá descoberto que a felicidade se encontra em cada peça que vai encaixando.
Pressinto-o quando o vejo.

Ah! o puzzle? Está em franca construção.

Há coisas assim

Saíram ao mesmo tempo, cada um de seu carro. Dirigiram-se ao mesmo Café em frente ao mar. Ele cedeu-lhe a passagem. Ela agradeceu sorrindo. Ela dirigiu-se aos lavabos. Ele também. Tinha as mãos sujas por causa do volante, ela, por outro motivo qualquer, também precisava de as lavar. Cruzaram o olhar no espelho. Ele arriscou. Bebe qualquer coisa comigo? Novo sorriso. Porque não? Vinha mesmo para o fazer. Faço-o consigo.
Sentaram-se na esplanada virados para a praia. Pediram as bebidas e imediatamente se perderam em conversas. Como se se conhecessem de há muito. As palavras fluiam, as histórias de cada um entrelaçavam-se a propósito sem o terem.

Entardeceu sem disso se darem conta. Era a hora de cada um ir para seu lado.
Ela agradece. Muito obrigada pela companhia. Gostei muito.
Ele não resistiu, arriscou de novo. E se jantássemos?


Mais tarde, confessou-lhe a vontade louca que tivera em agarrar-lhe as mãos. Senti-las e guardá-las para conservar aquele momento de forma eterna. Pediu-lhe então, delicadamente, licença para o fazer.


Por muito tempo ele a guardou. Como quem guarda um tesouro, intocável.
Ela deixou-se guardar.

O sabor das palavras

Estranho como as palavras têm sabor. E se alteram quando alguém as fala. Como se fossem alheias ao que lhes é comum. E tomassem sentidos que rumassem a pontos diferentes.
Estranho como a boca de quem lhes dá vida lhes tira ou dá alma nova.
Como se perde o sentido que pensamos estar dentro delas. E como nos dói quando as ouvimos e desconhecemos.
Mesmo que procuremos a nascente não descobrimos os caminhos que percorre. Percebemos que algures, a meio do percurso, se fizeram diferentes pelo uso que lhes deram.
Apunhalada, a palavra, perde a pureza da inocência. Ganha cores e sabores de quem as navega. De quem as usa. E a mesma palavra, a mesma conjunção de letras adquire mil significados. E as palavras que amo, traiem-me. Porque usadas por outros têm às vezes sabor amargo.
Como Liberdade, como Democracia.

Letras

Aprendera cedo a devorar as letras. A descobrir as histórias que as palavras lhe contavam.
Lembra-se ainda do jornal que partilhava lá em casa com ele. Na parte que era sua liam-se aventuras de Príncipes Valentes, heróicos e cavalheirescos. Primeiro foram os desenhos depois as legendas. Sabia que a cada domingo, na mesa do café onde o compravam e depois se instalavam, qualquer coisa de novo podia ter acontecido as personagens que conhecia. Cuidava delas com carinho. Vivia com elas as tristezas, as alegrias e os anseios.
De vez em quando alguém se sentava e perguntava. Então rapariga, já sabes ler?
Sabe, sabe, quer ver? Olha, lê lá isto!
Descia das aventuras do seu príncipe dos domingos e lia um artigo qualquer sobre coisas que lhe eram estranhas.
Acabava de ler e voltava de novo ao que deixara em espera.
Muito bem! Rapariga desempenada. E é novita, ainda!
Pois é! Respondia ele com orgulho.

O Pequeno Principe


Antoine de St Exupery

Axel

Ao Axel porque já não caminha connosco.
Apetecia-me bater-te.
De tanta raiva.
Era único. Conquistou-me sem demoras. Um bébé grande e pesado.
Revelava em ti partes que não assumias. Na forma especial de estares com ele. Na maneira como brincavam e se entendiam.
Como o conseguiste fazer?
Doi-me porque não entendo.
Doi-me como se tivesse sido meu. Porque o foi também um pouco.
Tive longas conversas com ele. Soube mais de mim do que algum dia tu saberás.
E mimava-me com aquele olhar doce tão peculiar.
Era sem dúvida a parte melhor de ti.
E ... nem o consigo dizer. Porque me parece impossivel.
Como foste capaz?

Choro-o.
Sei que o vou chorar por algum tempo. Pelo tempo da lembrança.
Que raiva que eu sinto de ti!

Axel grande e doce, amigão! Companheiro.
Que dor por ter sido assim. Por não ter chegado ainda o teu tempo.
Nunca pensei chorar-te. Nunca o tinha feito apesar da distância.
Faço-o agora com a náusea de saber como foi.

O ritual

Debruça-se sobre ela e percorre-lhe, com os lábios, o corpo. Pouco a pouco. Pedaço a pedaço.
Um beijo leve, na testa, com vagar. Depois um olho e outro olho. Em cada toque a legenda.
Uma orelha, um queixo, o pescoço.... e desce em ternura.
Na barriga interrompe-se. Prepara no umbigo o momento inevitável. Enche as bochechas e fá-las explodir em contacto com a pele dela.
A gargalhada irrompe.
Levanta a cabeça, olha-a.
Os bracitos no ar, os olhos brilhantes de riso, fazem-na rir também.
Felizes relaxam. Em abraço.
Mãe e filha cumpriram o ritual.

Quase perfeito


Quase perfeito- Donna Maria

Sabe bem ter-te por perto
Sabe bem tudo tão certo
Sabe bem quando te espero
Sabe bem beber quem quero

Quase que não chegava
A tempo de me deliciar
Quase que não chegava
A horas de te abraçar
Quase que não recebia
A prenda prometida
Quase que não devia
Existir tal companhia

Não me lembras o céu
Nem nada que se pareça
Não me lembras a lua
Nem nada que se escureça
Se um dia me sinto nua
Tomara que a terra estremeça
Que a minha boca na tua
Eu confesso não sai da cabeça

Se um beijo é quase perfeito
Perdidos num rio sem leito
Que dirá se o tempo nos der
O tempo a que temos direito
Se um dia um anjo fizer
A seta bater-te no peito
Se um dia o diabo quiser
Faremos o crime perfeito

Falar, declarar...

Teve de falar nisso. Antes de fazer a viagem. Declarou os sentimentos que transportava. Fê-lo abertamente com a urgência e a necessidade de quem tem de revelar tudo. De se mostrar. Ser assim, olhada por outros e, melhor ainda por si.
Arruma agora cuidadosamente na prateleira. Sem receio. Viaja com tudo mas já não o carrega. Está seguro, catalogado, encontrou o seu lugar.
Segue em frente, tranquila de novo. Aquietada por saber melhor. Por tudo agora ser mais claro e visivel.
Sabe a direcção a tomar. Olha em frente. Sente o rumo.

Depois do Jantar

Era sempre depois do jantar. Ainda na cozinha se lavavam os pratos, já ela se esgueirava e empoleirava no sofá onde ele ficava quando via as notícias. Aproximava-se sorrateira e a pouco e pouco conquistava o terreno que a separava dele. Sem que ele, disso, desse conta apossava-se do colo que ela queria só para si. Aninhada, segue com atenção e sossego as coisas que ele ouve e vê.
É só dela naquele momento. Por muitos momentos e noites.
Até que um dia não o encontra lá. A pouco e pouco deixa de sentir o ninho a que ele a habituara.

Pudera, estavas sempre em cima dele! Nunca o deixavas sossegado!

A culpa era dela e não o sabia. Tinha-o perdido de tanto o querer.
Aprende, ainda pequena, que só conserva se não se servir. Se mantiver a distância mesmo que lhe apeteça o toque, o conforto.
Saberá que nunca vai voltar a pedir. Aceitará o que lhe derem. Com a sofreguidão que se tem, quando nada é nosso. Para poder ter.

Verdes Anos

Carlos Paredes

Casulo

Á sua frente sobe para a cama. Vê-a encostar-se a um canto, junto á parede. Como o faz quase sempre. Tudo lhe parece desproporcional e a intimida. Aí enrola-se nela. Pequenina, quase desaparece.
Olha-a com ternura. Quer pô-la dentro de si para que repouse segura. Como num casulo.

A lista

Caminha sem rumo. Alheia-se. Uma pena perdida na areia, chama-lhe a atenção. Trá-la de volta. Lembra-lhe escrita doutros tempos. Aparo que foi voo. E o descreve nas folhas que preenche. Para. Estende o olhar até onde ele alcança. Fecha os olhos.

A lista veio-lhe á memória. Nunca a fizera.
Ele tinha-lha pedido. Sim, tinha-o feito. Concordara em escrevê-la mas no fundo sabia que tal não aconteceria.
Não lhe entendia o propósito. Porque se quereria, ele, ver através de si? O que procurava?
Não. Nunca a faria. Amava-o com a calma de saber todas as coisas nele. De as saber parte integrante. Era um todo que encaixava sem nada sobressair em particular. Bastava-lhe isso.
Quando ele lhe estendeu uma que tinha feito, não soube que dizer. Achara que fora só um capricho, um exercício fútil.
No entanto quando se olhou na lista, que ele fizera de si, reconheceu-se de tal forma que lhe doeu a alma. Como podia ele sabê-la tão bem. E sabendo-a detalhe a detalhe como a amava ele tanto!
Talvez ela nunca conseguisse amar assim.
Por isso se escusava a tais pedidos.
Por ter medo de não encontrar razões que a mantivessem nesse estado de encanto.
Porque afinal, não amava. Deixava-se amar.

Abre os olhos que mantivera fechados e distantes. Avançou.

O desejo

Interrogava-me a propósito do desejo.
Se a espera pelo inesperado e pela surpresa me bastavam. Como arrumaria eu, o desejo? Respondi que o adormecia porque tinha consciência de que existia.
Adormecer? Interroga de novo e espera.
Não, não falava dum desejo que morre ou morreu. Tranquilizo. Era do desejo que embalava enquanto dormia para viver em planura.
Claro que acorda muitas vezes esse desejo. Volto a aninhá-lo. Quando chegar a altura vem em descanso com nova energia. Renova-se e cumpre-se. Sem dores.
Compreendo agora. Respondeu
Penso que acalmou também. Porque uma vida sem desejo, não a imaginava ele.

L'étonnement

Não. Não estava á espera.

Confesso mesmo que já não espero nada há muito tempo. Faço-o quase por obrigação.
Apetece-me mais o espanto. A surpresa. A admiração.
Com isso não conto e sabe sempre bem.
O inesperado. Em vez do desejado. Porque pelo facto de ser só desejo não é nunca futuro. Amanhã.
Sê-lo-á de quando em vez. Mas já sofrido. Vivido.
Recuso-me a fazê-lo. Para meu bem. E tranquilidade.

Por isso me comovi. Por isso mexeu dentro de mim. Apesar da tristeza que o acompanhou. Apesar disso.
L'étonnement.

Em borboletas

Prestável e atento disse-lhe, deixa, respira fundo. E olha. Pensa em borboletas...
Borboletas? Ridiculo!
Franze o sobrolho. Porquê borboletas? De que cores, de que feitios, de que tamanhos?
Como se lhe apetecessem borboletas!
Ridiculo!
Ele insiste. Verdade, não te deixes ir abaixo. Borboletas, lembra-te.
De novo?
Está bem. Borboletas...
De muitas formas. Isso, borboletas com muitas, diversas formas. Asas grandes, pequenas.
Muitas. A voar. Em pausa...
Sente-lhe os olhos. Os olhos grandes de ver mundo. Nítido. E um sorriso. Em borboleta. Sim borboleta!
Via-as agora claramente. Suaves, tranquilas...
Resultara. Nada estranho afinal.
Com as borboletas, voaram os pensamentos que a afligiam.
Agora, sempre que precisar, vai pensar em borboletas.
E virá o sorriso. E verá também com olhos de ver claro. O que interessa ver.

Como quem ata uma fita na perna duma cadeira e lhe dá três nós, recitando a cantilena mágica. Apareça, apareça o diabo sem cabeça.
Ou como quem conta carneiros até que o sono caia.

Pensar em borboletas. Deixar-se ir.