Suspensa

Suspensa
entre tudo e coisa nenhuma.
Num não lugar.
Onde o tempo não seja medida.
E o espaço,
seja o contorno alargado dos sonhos
da alma prisioneira que carrego
no corpo usado e cansado.

E aí flutuar,
liberta do peso da poeira da vida.

É quanto quero,
agora.

Ás vezes

Ás vezes perdemo-nos do mundo dos afectos. Das memórias em nós, dos amores que um dia nos fizeram felizes e nos deram o rumo que nos trouxeram ao lugar que pisamos.
Aí vagueia-se entre os dias e as noites, num suceder sem destino. Em desencontro.
Num sem saber de quê.

Ás vezes é um amor a coisas longinquas que nos planta a esperança no vazio instalado. Tudo parece mais fácil e próximo mesmo distante. Recomeçar tem o sabor da subida ao ventre da terra mãe. Volta o aconchego, o sonho e o sorriso cresce nos lábios. As palavras desenham histórias que se partilham.

Ás vezes, há quem as escute porque as procure também. Sedento, procure oásis num deserto que deixou crescer. E nesse encontro se desenhem anéis em crescendo.

Ás vezes um tem medo, mas vontade. Está preso, mas livre. Entre um lado e outro abraça sequioso e atento. Embalam-se no encanto das viagens que sonham e quase tudo é real. Os olhos brilham. A voz exalta. A vontade cresce.

Onde a esperança fora plantada outra semente é lançada.

Ás vezes não basta semear. Nem cuidar. É preciso que haja vontades. Mais do que uma.
Ás vezes há quem só semeie ventos de paz e acalmia num coração cansado de tempestades. Há quem tenha um coração em pousio.

E a semente não cresce. Hiberna.

Ás vezes, no desenho do futuro, alguém acrescenta um traço que o altera como rabanada de vento, na sementeira que se faz.

Ás vezes só nos resta guardar a semente dentro de nós. Alimentá-la, aninhá-la como se fosse só nossa.
Preservá-la na memória dos sentires que ás vezes se perdem e não se sabem.
Ter a certeza que vai acontecer de novo.

Alma enorme

Sentiu-lhe na voz a alma dum tamanho que não conseguia medir.
Chegava-lhe em ondas de frescura misturada com palavras de poetas a ilustrar as músicas que ele lhe dava a ouvir.
E eram torrente as palavras e rios as conversas.
E neste caudal imenso desembarcava em si toda a ternura e sabedoria que não conseguia conter.
Assim feita mar de ondas serenas, deixava-se abraçar pela luz da lua namoradeira que a enfeitava em prata. Embalada na memória dourada do sol quando nela se deitava. Viajava e deixava-se atravessar por quem por lá navegava.
Hospedou-lhe a alma na tranquilidade escondida entre algas e corais. Deixou-o espraiar-se.

Os sons que chegam á beira-mar vêm-lhe das profundezas.
Do mesmo sitio, onde há muito ele se deixou ficar. Escuta-o aí quando lhe sente a falta.
E renasce!

Inventores de histórias

Lembro-me da estranheza de não viver da mesma forma com as mesmas pessoas, como toda a gente.
De inventar razões e criar histórias que fossem o suporte dum viver assim.
Todas as crianças com quem me cruzava, tinham um pai e uma mãe. Eu tinha uma tia e um tio.
Todas choravam e riam ao colo duma mãe. Eu fazia-o ao colo duma criada.
E muitas vezes até um dia ele se cansar e ausentar ao colo de meu tio.
Mas soube-o, apesar de tudo presente.
Todas as crianças faziam férias de vez em quando em casa dum parente qualquer.
Eu fazia em casa duma mãe que descobria a par de 3 irmãs que disfrutava a correr. Porque afinal tinha mãe e irmãs. Também tinha pai. Mal o via. Sabia de mais 2 irmãos que não conhecia.

Ah a minha mãe e as minhas irmãs! Eram o meu Natal em qualquer altura do ano.
Lembro-me de chorar ao chegar. De alegria.
De chorar ao partir. De tristeza.
E aqueles tempos ali, de descoberta e partilha. De risos e gargalhadas. De pão repartido. De cama dividida e velas consumidas até á exaustão. As bonecas feitas com papoilas. As casas na eira. As corridas aos ninhos. As incursões ao sótão e as leituras da bd dos irmãos que eu não conhecia.
E a mãe que eu não tinha. Ali a falar connosco. Do que queriamos saber. Do que era preciso saber para crescer. E as conversas imparáveis porque tudo tinha de ser dito num tempo que tinha um prazo sempre curto. Cada vez mais curto.
Porque tinha de voltar ao meu destino. Como dizia minha mãe, a um destino melhor.
E voltava. Sem mãe.

Ainda hoje mal a conheço. Penso que mal conheci e mal amei afinal. Não o soube fazer.
Não o sei fazer. E queria tanto saber como é!
Nas histórias que inventava para apaziguar a dor as coisas tomavam sentido. Agora que cresci, sei que não há invenção que lho dê.

Aprendi uma coisa só. A amar ferozmente os meus filhos.
Não os prendo. Mas não abdico deles.
Não os quero inventores de histórias.

Os olhos não pensam

Dizia-lhe quem fazia amor com as palavras que escrevia que os olhos não pensam.
Vêm coisas a cru. Lêm a preto e branco deixando as cores para uma razão ás vezes ocupada em coisas que não valem a pena.

Fugiam-lhe assim da mira pequenas grandes coisas que se perdiam para não mais encontrar.
Sinais, avisos, indicações, roteiros do mapa da vida em que se movia de forma insegura.

Via ás vezes com outros olhos que escondia no peito. Os da emoção. Os do sentir.
E arriscava sem temer. De se perder nunca tivera medo.
O tempo que tinha era o da vida que era sua. Todo seu.
Encontrar-se-ia no tempo devido.
Até lá e entretanto no percalço e no desconhecido enfrentaria a descoberta.
Seria maior. Cresceria mais forte. Aumentaria a bagagem.

Foi com esses olhos que o fitou e lhe pediu um beijo. E contra esse peito que o apertou.
Foram os sinais que sentira em si que a fizeram partir nessa viagem.
Uma viagem que não iria fazer sózinha. Soube-o então.

Como um girassol

Não queria ainda acreditar. Começava no entanto a senti-lo. Mais que das outras vezes. Mais do que nunca quisera ou pressentira.
Conhecia-lhe já os afastamentos. Dizia-lhe, ela, que se resguardava. Que se escudava na distância e no silêncio por não suportar o dele.
E ele já nem sabia porque o fazia. Nem se dava conta de tal. Perdera-se há muito num espaço para que fora atirado pelos desencontros de amores há muito perdidos.
Quando a conhecera, fora a sua alegria que o fizera por a cabeça de fora e ter vontade de aí ficar. Agarrava-se ás palavras, ao riso, ao encanto que dela emanava e sentia de novo força dentro de si.
Gostava de tudo nela. Era a mulher que ele sonhara em todas as que tivera.
E disse-lho. Muitas vezes.
Foi mágico e surpreendente o que sentiram. Dum tamanho que ele não abarcava. E teve medo.
Assim como se abriu, assim se fechou. Deu-se e escondeu-se. De novo.
E ela afastava-se também. Dando-lhe o espaço que ele temia perder. E perdia-o.
Porque ele se aninhava na aridez que reconhecia como sua morada.
E sabia que a amava. Que a queria. Que um dia renasceria e a iria procurar. Faria tudo para a ter de novo em si.
Ela só tinha de o amar sabendo que ele não estaria com ela. Como se não existisse e no entanto lá estivesse. E fê-lo. Amou-o além doutros amores. Que a mereciam.
Até ser possível. Até ele deixar de ser sombra nela.

Agora ele sentia-a longe para lá dele e da esperança a que não dera alimento.
Perdia-a de vez. Esgotara o tempo, as esperas... Escondia-se no deserto que fizera de si. Fazia-se sombra e noite só.
Do outro lado via-a virar-se como um girassol para a luz doutro amor que lhe punha os sorrisos que o fizeram amá-la.

The reason why


Rachel Yamagata- The reason why
Think about how it might have been
We'd spend out days travelin'
It's not that I don't understand you
It's not that I don't want to be with you
But you only wanted me
The way you wanted me
So, I will head out alone, hope for the best
And we hang our heads down As we skip the goodbyes
And you can tell the world what you want them to hear
I've got nothing left to lose, my dear
So, I'm up for the little white lies

But you and I know the reason why
I'm gone, and you're still there
I'm gone, and you're still there
I'm gone, and you're still there

I'll buy a magazine searching for your face
From coast to coast, or where ever
I find my place
I'll track you on the radio, and
I'll find your list in a different name
But as close as I get to you
It's not the same
So, I will head out alone, hope for the best
We can pat ourselves on the back
As say that we tried
And if one of us makes it big
We can spill our regrets
And talk about how the love never dies

But you and I know the reason why
I'm gone, you're still there
I'm gone, you're still there
I'm gone, and you're still there

So, steal the show, and do your best
To cover the tracks that I have left
I wish you well and hope you find
Whatever you're looking for
The way I might've changed my mind,
But you only showed me the door
So, I will head out alone, hope for the best
We can pat ourselves on the back
And say that we tried
And if one of us makes it big
We can spill our regrets
And talk about how the love never dies
But you and I, you and I, you and I know the reason why.

Coração imperfeito

O coração que carrego no meu peito, não é perfeito.
Sempre o soube. É um coração de gente ainda a crescer.
Fala uma língua de afectos que a razão desconhece. E, ora, fica mudo na dor de não ser entendido. Ou exuberante, na traquinice da irreverência que lhe sinto

Tem o tamanho de todos os outros corações que conhece. A forma é também a mesma.
Quem o vê não suspeita das ventanias que o correm. E ele não as sabe contar.
São por vezes carícias que o amolecem. Suaves e quentes.
Doutras, rabanadas estonteantes que o deixam em desnorte.
E quando se cruzam os ventos, encolhe-se em refúgios apertados, longe das portas que tem abertas para o mundo.
Tem medos a povoá-lo. Sombras, fantasmas que pressente e não reconhece.
Mas não os mostra a ninguém.
Muitas vezes, sem aviso, ergue-se com força insuspeita. Enfrenta os vendavais. Olha-os de frente sem raivas. E deixa-se atravessar pelo que a vida lhe traz.
Sabendo ainda tão pouco!

Não quer crescer este meu coração!
E deixa-me perdida em sentires que se contradizem. Desorientada entre a lágrima e o riso.
Algures entre a alegria e a tristeza. Em revoltas que a calma não embala.
Mesmo que o mande ser grande, do tamanho que lhe sonho, recusa-se e bate forte num barulho ensurdecedor.
E faz coisas que não lhe entendo, este coração sem dono.

Coisas de gente imperfeita.
E reconheço-o então!

Passos

Ligou-me um dia, já tarde. Precisava muito de falar comigo. Num sítio calmo e sem que a filha soubesse. Por favor! E tratava-me carinhosamente pelo diminutivo que nunca usei.
Vasculhei um espaço com tempo livre e marquei um sítio.
Sentia que já sabia o que me ia dizer. Coisas que eu já conhecia. Todos já sabiam e ninguém se atrevia a dizer-lhe. Vesti-lhe a dor que suspeitava. E dentro dela tentei respirar devagar. Para a conhecer inteira, sentindo-lhe cada canto. Talvez assim vestida a pudesse confortar melhor.

Pediu-me que falássemos noutro lugar, mesmo dentro do carro. Senti-lhe um desconforto que nunca lhe tinha visto. Tive a certeza de que já sabia.
Falou de coisas triviais e do orgulho que tinha de eu ter conseguido ser o que era.
Falou da pena enorme da filha não o ter sido. Calou-se por algum tempo.
Vi pelo canto do olho que limpava uma lágrima teimosa. Parei o carro.

Sabe? E de novo o carinho no diminutivo. Não sei que fazer... E deixou-se esvaziar ficando sem ar dentro dela que a sustentasse inteira.
Penso que a minha filha desistiu de tudo. Nem vergonha já tem.
Lembra-se como a encontrou. Sabe como ela era. E o que ela foi. O marido deixou-a. Levou-lhe a filha em troca dum filho que só nos dá problemas, com que não sabemos lidar...
Fica um pouco em silêncio, á procura de alento para continuar.
Fez de tudo como sabe. Trabalhou tanto! E a vida nunca lhe sorriu. Correu-lhe tudo mal.

Tentei acalmá-la agarrando-lhe as mãos que não sabiam que fazer. Fiz-lhe entender que sabia o que ia dentro dela. Porque o sabia. E mesmo que não quisesse, também a mim me doía.
Por nada poder alterar. Pela incapacidade de ir para além da realidade. De fazer mais, doutra forma.
Olhar a dor daquela mãe, da idade da minha, a pedir-me ajuda e conforto. E ser mais pequenina tentando ser maior. Á medida do que esperava de mim. E poder ser só o ouvido e o ombro ali.

Sabia já o que ela me ia contar. A filha já mo tinha dito.
Ganhava agora o dinheiro que trazia para casa á custa do próprio corpo. Perdera tudo o que podia perder. Agora, tinha de cuidar dos seus da única forma que a vida lhe tinha deixado. Mais baixo não desceria. Porque chegara ao fundo. E tentara tudo.
E todos testemunharam. Eu também.
Nada nem ninguém fez o que poderia ou deveria ter sido feito. Portas fechadas sem prazos. Numa vida que não tem tempo para adiamentos.

A minha filha, agora, vende-se para nos sustentar...
Um choro compulsivo subiu-lhe no peito que agarrei contra o meu. No abraço em que ficámos deixámos as lágrimas rolarem.
Porque ás escondidas, não me contive, chorei!

Vidas...

Lembro-me bem da primeira vez que a vi. Ia á procura dum nome que ainda não tinha rosto.
Estava de costas para mim, inclinada sobre um tanque, onde lavava toalhas dum restaurante. A primeira coisa em que reparei, foi na forma como as pernas de tão inchadas pareciam defeituosas. Corridas por varizes que saltavam e se mostravam azuis e vivas á flor da pele. Só quando ela se voltou lhe vi a barriga enorme. Uma gravidez no fim.
A cara cansada, os olhos baços não me deixavam ver quem era. Porque afinal já a conhecia.
Foi ela que se deu conta. E um sorriso bailou-lhe entre as lágrimas que não podia evitar, ao trazer-me as memórias de quando eramos pequenas.
Incrédula, esqueci-me que era o trabalho que me levava ali. Por momentos fomos de novo colegas de escola e de traquinices.
Tinha já um filho, que lhe dava problemas, não sabia o que tinha. Esperava outro.
O pai? Pela cidade grande, esquecido da família que visitava de vez em quando. Era polícia, pessoa de bem. Mas o dinheiro nunca chegava...

Tudo se tinha desmoronado depois que o pai morrera. O negócio de família foi a pouco e pouco caíndo. A mãe doente não tinha forças para garantir o sustento dos filhos ja crescidos.
Ficara a casa e a memória de tempos de trabalho mas de alegria e conforto.
Ela casara com um bom homem, de boa formação. Pensara toda a familia.
Tudo se resolveria. Ajudaria a mãe e continuariam a viver para melhores dias.
Foi com o nascimento do primeiro filho e o destacamento do pai para longe que tudo voltou de novo á tristeza que julgavam passada.

Eu estava ali para lhe falar do filho. Para a tentar ajudar e saber como o fazer. O filho que lhe dava problemas. Que ela fechava no quarto para não fugir. E que a pouco e pouco lhe arrancava os tacos do chão. De fora ouviam-se os sons estranhos e o barulho que ele fazia a bater com eles na parede. Passava assim dias, sem parar.
Estava perdida, não sabia o que fazer. O marido dizia que a culpa era dela. Não o sabia educar. Não obedecia, não falava, não olhava direito para ninguém. Nem um sorriso sabia dar. Só aqueles "urros" ou "grunhidos" que ninguém lhe entendia.
Culpa dela que o deixava fechado em casa para ir procurar o sustento que lhe faltava. Isso ele pretendia não saber.
Por isso o tinha posto numa "escolinha". E agora tambem de lá vinham os problemas.
Falta de dinheiro para os pagamentos. E as suspeitas de que alguma coisa estava errada com o filho a crescerem.

Estava para falar. Fiquei-me a ouvir.

Tinhamos a mesma idade, andámos na mesma escola. Corremos nas mesmas ruas e conhecemos as mesmas pessoas. As nossas familias e as nossas vidas tinham-se cruzado.
Poderia ser a minha história.

Nunca

Nunca, era uma palavra atitude que a perturbava.
Palavra final. Prisão. Inexpugnável.
Onde tudo acabava e nada mais acontecia para além do que se tinha garantido.
Como se Nunca fosse fosso e muralha. Ou o Dragão de fogo a guardar mundos por desbravar.
E tudo tivesse de ser sempre assim.

E ficava triste de a perder.

Porque todas as palavras têm um propósito. E vários sentidos.
E nós temos a força, a vontade e o saber para lhes darmos os que melhor nos traduzem.
Todas as palavras são úteis e necessárias. E precisamos delas para ir além de nós, viajar nos outros.

E descobriu-lhe outros sentidos.

O da força. O da perenidade. O da constância.
Era uma palavra de guerra. De quem vai por onde sabe. De quem conquista território a pulso. Com garra e alma. De quem não perde de vista os caminhos a seguir.
De quem Nunca desiste.

Nunca digas Nunca, ri-se da rasteira. Dos sentidos no sentido aqui exposto.
E apesar de tudo prefere, nem Sempre, nem Nunca.
Onde não há afirmações que o não são.
Porque o Povo, de há muito que sabe brincar com as palavras. E lhes sabe o lugar.

Pés nos pés

Pés nos pés e uma música no ar.
Momentos a dois em sincronia. Mais uma vez e outra e outra num rodopio que a põe tonta mas não quer parar.
Dos braços ainda pequenos, um abraço, enorme, enlaça as pernas do homem pai que a protege e guia.

Quando for grande caso contigo. Estaremos sempre os dois juntos. Só tu e eu. Pensa Maria.

E cresce assim, nos sonhos que dançam também com eles. A par com o homem que a transporta nos pés.
Vêm á baila as viagens, nas cantigas que entoa em voz tremida por culpa dos paralelos das estradas, em que são companheiros.
E os sorrisos. Cúmplices. Sente-se já mulher.

Surpreende-o no sofá, deixa tudo e atira-se para o colo. Ninho e aconchego. Casa!
Um dia a música pára. O sofá está vazio.
Maria perdeu o homem pai.
E não entende porquê. Culpam-na da ausência.
Cansara o homem a quem amava de tanto lhe querer.
Com ele o primeiro amor criança vai também. Em troca recebe a culpa que se aninha e instala para não mais sair.
Nunca mais amará como e quanto quer. Com medo de perder!

Sono vadio

Os papos nos olhos que lhos faziam pequenos, denunciavam a inquietação das noites.
O ar cansado mas calmo dizia que tudo não passava dum capricho de sono.
Um sono vadio, como ele lhe chamava.
Cansado da rotina das noites que já não lhe traziam nada de novo, ausentava-se por paragens que ele não lhe conhecia.
A principio, procurava-o por entre as páginas dum livro entre os muitos que andavam pela casa.
Tentou pressenti-lo nas músicas doutros tempos. Talvez andasse a vasculhar memórias.
Deixava-se ficar debaixo do chuveiro, de olhos fechados, a sentir o calor da água aquecer-lhe cada pedaço de pele até ficar engelhada. E via o sono a brincar nas nuvens de vapor.
Colava-se ao espelho e pedia-lhe legendas nas adivinhas que lhe segredava.
Acabava com uma amálgama de palavras e imagens que não sabia de onde vinham. Apagava-as com a toalha. E de repente, mirava-se e pedia ao sono que deixasse de se esconder.
Derrotado pelo cansaço caia em cima da cama ainda fria. Secava as últimas gotas nos lençois que agora o cobriam e fechava os olhos. No escuro do quarto ficavam as estrelas dentro dos olhos a bailar.
E num sítio qualquer viajava o sono vagabundo. Longe, sem destino.
Á procura, não sabia ele, de quê. De nada e de tudo. Se calhar só de distância e liberdade.
Nas voltas que dava prendia-se nos lençois em que de manhã se vinha enrolar o sono.
Encostava-se devagarinho pousando os dedos nas pálpebras e um respirar quente e cadenciado no peito. Tomava conta do corpo levando-o, exausto, a desligar-se lentamente.
Apagavam-se as estrelas no firmamento dos olhos e adormecia finalmente.
Tarde demais, sempre.
A noite já se levantava para ir para outras paragens. O dia fazia a rendição de turno.
Ao fundo do sono que só agora viera, chega o som irritante do despertador.
Como se uma mola fosse accionada levanta-se dum pulo. Felizmente fizera a barba na espera do vadio. No corpo o cheiro e o sabor a banho recente dão-lhe tempo para esticar a preguiça que se encolhe e lhe pede cama.
Engole um café feito na véspera que aquece no microondas. Não há tempo para mais.
Em cima da mesa, uma maçã em que pega para comer no elevador, serve-lhe de pequeno almoço.
Nos olhos leva os papos que lhos fecham. Para que ninguém lhos suspeite, pôe os óculos escuros que só tira a meio da manhã.

Um dia vai ajustar contas com tanta vadiagem dum sono que começa a desconhecer e a sentir saudades.

O teu sabor

Há coisas que não levantam poeira nem aragem de tão leves serem.
Que são como o ar que respiramos no meio do mato.
Com o cheiro ás coisas boas da infância e lembranças de piqueniques com jogos de esconde-esconde á mistura.
Assim como acordar com a luz do sol todas as manhãs quando o sono já se foi e apetece pular da cama.

Essas coisas têm o teu sabor.

Um sabor que não precisa de crescer em nós, nasce connosco.
Como se fosse um radar. Assim que se encontra igual, sabe-se que se está bem, reconhece-se.

Lembras-te quando as palavras se atropelam a dizer o mesmo ao mesmo tempo?
E quando a gargalhada nasce sem saberes ainda o que te vou contar?
Ah! E quando as minhas lágrimas não caem, amparadas no dique dos sorrisos que me plantas... Não posso esquecer.

E tinha de ser... Olharmos na mesma direcção e vermos as mesmas coisas.
Querer fazer doutra forma e ser igual. Como em reflexo. Num espelho perfeito num dia de luz sem igual.

E como eu gosto do teu sabor!

Encostada

A porta estivera sempre encostada.

Pretendeu durante muito tempo que atrás dela e para sempre ficaria tudo o que não pudera concretizar. Fizera-se força e dissera para si que tudo acabara atrás da porta que deixara de propósito assim.
Virara-lhe as costas e avançara. Pensava que era capaz. que era assim que teria de ser.
De quando em vez sentia-lhe as correntes que traziam o desconforto das coisas que tinha deixado sem viver.
Era quando se recolhia no arrepio que lhe corria o corpo apalpando-lhe o vazio que ela teimava em desprezar.
Plantava-lhe sonhos fugazes. Como se pudesse fazer de conta de que nada aí tinha tido lugar.
Como se nada ainda aí existisse.
E uma porta encostada num lado qualquer da vida deixasse de ser o que era.
Como quando era criança e fechava os olhos. E desaparecia.

Neste terreno sem pousio nem descanso nada teria vida. Nunca.
Tudo teria de tomar o seu lugar. Percebê-lo. E o que tivera inicio teria de ser finalizado.
Num lugar com o seu nome e feitio. No seu lugar.

Era já tarde, a tarde dum dia cheio das coisas surpreendentes que os dias trazem, quando a porta se escancarou.
O espanto foi a primeira coisa que se lembra de ter. Não da porta se ter aberto.
Mas de ser ele a abri-la. Como se nunca tivesse estado atrás dela. Ou ausente.
Olhou-a com olhos de ainda há pouco e recomeçou a conversa na virgula que tinha ficado pendurada.

As promessas de amor eram as mesmas. A paixão continuava acesa.
Olhou-o incrédula. Estremeceu. Surpreendeu-se por continuar de pé porque as forças lhe fugiram sem destino. Foi quando do coração cresceram braços, aqueles que a razão não conhece, e sem mais nada decidiu dar rega á sementeira.
Durante aquele tempo todo só aquele sonho tinha criado raiz e alastrado nela.

Pensou, apesar de tudo, por quanto tempo estaria a porta aberta. Quando a voltaria a encostar ou se finalmente a fecharia.

O vazio

Era á hora em que todos se deitavam e as luzes se começavam a apagar uma a uma em cada divisão da casa a par com os ruídos normais de quem acaba os dias que o vazio se instalava.
Vinha devagarinho com um ar manso e encostava-se aos lugares ainda quentes, com o cheiro das coisas de todos os dias.

Ela afundava-se na cama, debaixo do aconchego conhecido do edredon de penas, leve e suave, e deixava-se cair num quase abandono. Sentia-se planar, liberta da vida, sem pesos, sem memórias e sem tempos, num voo despido de partidas e chegadas. Num espaço que não existia senão aí. Onde nada e tudo tinha lugar. E tudo podia ou não acontecer.

Porque o vazio não é senão um campo lavrado em ânsia de sementeira.

A minha infância.

Se a vejo ainda aqui, se a ouço, se a cheiro e sinto ainda assim tão presente, só pode pertencer-me agora sem nunca de mim se ter ausentado.
Escondida, sim, numa memória arrumada por não haver tempo no tempo da vida. Mas sempre comigo.

No riso leve, na lágrima fácil, no espanto, na descoberta de tanta coisa!

Nos medos também. Porque ainda não se calaram os medos. Abafados só, camuflados. Porque gente grande não tem medo. Não pode, não deve.

Medo de ficar sózinha, sem colo. De não voltar a ver o que se julga ter. De que nada aconteça como se sonha. Dos silêncios. Das coisas que não se sabem ler. Do que não se conhece ainda.
E no entanto navegar por outros mares sem saber marinhar.

Como quando ensaiava os primeiros passos e as primeiras palavras e o mundo se alargava. E eu com ele.

Inscrita na memória dos sentidos, procuro-a e sorvo-a. Reconheço nela a força que tenho. A raiz do meu querer. Sou o que a minha infância fez de mim.

Cupido,procura-se!

Igualzinho aos que havia dantes. Reboludo, pequenino, com bochechas rosadas e cara de anjo. Asas também, brancas, vaporosas, com aquelas penas sem peso, suaves e fofas que só imaginamos.
Terá de ter um ar inocente, um sorriso maroto e uns olhos muito atentos. Porque este que procuro, terá de saber o que levamos uma vida a aprender.
A visão terá de ser apurada. A pontaria certeira. Sim o velho arco e flecha também são necessários.
Deverá saber ver para além das coisas e das pessoas.
E se tiver capacidade para prever o futuro, ainda melhor.
É que a dor duma seta, a enterrar-se no peito, magoa mesmo. Duma forma inexplicável.
Devia sentir-se uma única vez na vida e os efeitos serem eternos.
Quem fosse atingido, deveria amar sempre da mesma forma incondicional ou em crescendo.
Isso! Deveria ser assim.
Talvez um toque duma qualquer mezinha na ponta da seta o pudesse transmitir... Quem sabe?
Assim, como um virus sem cura!

Amelia


Edouard Locke - Amelia

Sou casulo

Renasço dentro de mim.
Transporto agora promessas germinadas. Promessas de sonhos feitas.
O amanhã. A vida para além do que hoje sou.
Agora estou entre um dia e outro. Entre o que era e serei.

Num casulo por ti plantado.

Sei

Sei que partirás um dia.
De te perder não tenho medo. Porque teria?
Afinal nunca me pertenceste. Só é meu o que recordo de ti. E isso não mo levas nunca.
Depois, conheço-te os sonhos viajantes. A espera de coisas maiores e o medo de teres só o que julgas ter.
Não basta nunca o que te chega ás mãos. O que descobres e sentes...
E eu?... Sou parcela do todo que está para vir.

Por isso um dia sem me dar conta, estarás para lá dos sonhos em que te criei.
Na tua ausência serei outra. Como o sou sempre distante do que amo.
Procurarei alivio num lado inverso de mim. Talvez nem te espere mais. Nem o queira.
E seja outra em alguém que não conheço e nem suspeito.

Mas até que te vás, estarei e serei o que sou agora. Tua. Até que partas. Porque o farás.

Sei. Preferia não saber.

Não

Não, não me despedi de tanta coisa que em algum tempo deixei de te dizer.
Sussurei-o ao mar em todas as manhãs que não te sentia.
Sei que embala os meus monólogos na espuma branca que carrega na ponta das ondas.

Um dia surpreender-te-á, beijando teus pés na areia molhada. E quando se recolher deixará escrito tudo quanto me ouviu.

Saberei se me ouviste, quando um dia, em vez de visitar o mar, acordar ao teu lado.

Ensaio

Hoje não usaremos as velhas palavras. Aquelas que de tanto serem ditas perderam já a cor e o cheiro.
Hoje ensaiaremos outras. Primeiro em surdina, porque lhes pressinto a vergonha.
Não a vergonha por serem feias, tristes ou estranhas... Mas a vergonha de não te saberem ainda.
Serão rubras de espanto ao ouvirem-se. Darão as mãos, primeiro num toque suave e fugidio. Depois dum breve arrepio reconhecer-se-ão. E num espaço vazio inventado por nós, dançarão á roda das coisas por dizer.
E em vez da palavra antiga que um dia foi desejo e não se fez verbo, sentiremos em nós a coreografia em sons e gestos que a palavra, agora nova, sabe viver.

Esta que agora inventei, di-la-ei dentro do teu corpo. Só tu a saberás e poderás recriar pelo tempo da sua eternidade.

A casa


A casa com que ela sonhava não tinha portas, janelas nem mesmo paredes.
E foi assim que a construiu. Num sitio de sol, árvores e rios a correr.
Em cima dos quatro pilares ficou um telhado de vidro para espreitar as estrelas e o céu quando dormia.
Com o tempo houve quem se juntasse a ela. Gente que com ela falava das coisas simples.
Gente que ia e vinha quando tinha de o fazer. No meio de todos e á vista de quem passava, espalhavam-se os risos e os afectos. Vivia-se a calma e a raiva dos dias. Apagavam-se as lágrimas no calor dos sorrisos.
De voo em voo ficavam as marcas e as histórias que sobreviviam a quem dali saísse. Para voltar quando quisesse.
Foram muitos os passantes. Muitos os que ficaram. E muitos os que de longe viam e cobiçavam.
E nunca ficaram a saber. Porque achavam que já sabiam tudo. Comentavam entre si o que pensavam. De quando em vez albergavam-se debaixo daquele tecto. Estranhos a tudo, habituados ás casas escuras onde viviam, espalhavam as dúvidas dum viver assim.
Em pouco tempo havia quem atirasse pedras que feriram quem por lá andava.
Foi quando ela ergueu paredes. E mesmo assim, deixou aberturas para a vida entrar.
Todos podiam lá ir e de lá sair. Mas desconhecendo o que encontrariam alguns passariam ao lado. Poucos se atreveriam a passar a barreira que ela erguera.
Quem quisesse julgar, que o fizesse. Do lado de fora das entradas que ainda deixara.
Entradas que um dia fechou com portas. Não podia deixar passar a tristeza, a mágoa, a afronta e toda a dor que vinha também.
Deixou o sonho que tivera, para se proteger. E proteger os que reunira junto de si.
Na sua casa outrora escancarada, abria-se agora, só para o mundo daqueles que a pouco e pouco conquistaram um espaço que lhes dava sem reservas. Fechava-o para quem não podia entender.
E mesmo assim via o mundo e prolongava-se para além dele, nunca o deixaria de fazer. Porque as portas desvendavam segredos a quem os soubesse entender e continuariam a abrir-se ao som das melodias que dentro de si bailavam.
E a dança da vida, e com quem ela dançava em liberdade, nunca a deixaria morrer dentro de si.

A carta

Incomodavam-na os lugares anónimos. Os sítios sem cheiro de gente e alma de quem por lá passa. Faziam-na querer nunca lá ter passado e davam-lhe uma tristeza que não entendia nem sabia acalmar.
Então para onde quer que fosse e fosse qual fosse o tempo que aí estivesse, plantava coisas suas no espaço á sua volta. Ás vezes bastava uma flor que encontrasse na sua passagem. Um ramo de qualquer coisa que encontrasse abandonado. Como se ao dar-lhe casa estivesse também a ganhá-la. A pouco e pouco as coisas tomavam os seus contornos e prolongava-se para alem de si com uma leveza que lhe fazia falta.
Para ali, levara consigo, numa caixa que um dia abrigara um par de sapatos, objectos que há muito a acompanhavam. Pedaços de vida que a fizeram ser o que era.
Naquele dia, deixara-se ficar sózinha. Precisava de o fazer. Poderia assim parar um pouco, olhar-se e perceber como estava tudo á sua volta. O silêncio que ficara quando todos saíram, apaziguou-a. Estar assim fazia-lhe sempre bem.
Olhou á sua volta e decidiu vasculhar e ordenar as suas coisas. No quarto pequeno, espalhou tudo sem dó. Não havia gaveta que ficasse ocupada. Peça a peça, tudo foi retomando o sítio, mesmo que fosse já outro, numa reorganização que urgia fazer.
Tudo tinha um sentido que vinha de dentro de si. Tudo ganhava uma nova dimensão assim.
Deixou para o fim a caixa de sapatos que um dia forrara e transportava os seus "segredos".
Um alfinete que pertencera á unica avó que conhecera, botões enormes, forrados a veludo preto dum casaco vermelho de fazenda que tivera em miúda, fotografias gastas de gente que sabia ter sido da família e de quem ouvira histórias...
Coisas que nada significavam para os outros. Sabia.
No fundo um papel dobrado em quatro, o mais importante, amarelado e com os vincos a fazerem aberturas que ameaçam a sua integridade. Desdobrou-o com cuidado e abandonou-se á leitura. Era a última e agora única testemunha da existência daquele homem que ainda habitava dentro dela. Já sabia de cor o que agora lia, mas naquela altura tudo lhe parecia novo e podia regressar ao tempo em que ele tinha existido. A um tempo que não era de saudade mas de alegria...
Absorvida não se dá conta do tempo até que surpreendida pelo abrir da porta principal, arruma a carta ao som dos risos que se aproximam.
Era tempo de regressar e ir ver o que se passava com os colegas que partilhavam o apartamento consigo. Olhou para o quarto, escondeu os últimos vestígios da sua viagem e foi ter com eles.
No ar ficaram os risos de quem ainda teria muitas marcas a pôr na vida. Os dela também.

Paixão

Costumavam fazê-lo sempre que a noite se deitava, deixando no ar as estrelas e uma lua qualquer.
Escutavam o silêncio a entranhar-se nas coisas e a abrir espaços para as conversas que semeavam no passear do tempo, agora só deles.
No Inverno era á lareira que tudo acontecia. Ficavam embrulhados numa manta e a olhar o fogo enquanto bebiam um vinho branco que lhes adormecia o cansaço e os deixava a divagar.
Naquele dia ele preparou dois gins com sumo de laranja. Era Verão, estava calor e a varanda foi palco. Dali olhavam as luzes na cidade que se via ao longe e a ponte que deixava adivinhar o rio.
Ele atirou-lhe com uma pergunta que já há muito tempo andava para lhe fazer, como se precisasse dessa peça para completar o puzzle que dela ia construindo.
Ela não estava á espera. Não daquela forma e naquela altura.
Qualquer bebida, mesmo que em pequena quantidade, tinha o dom de a entorpecer e a deixar a flutuar numa suave tontura. Mas a pergunta que ele lançou, caída num silêncio que se fechou, fê-la virar para ele ainda sem saber o que responder.
Soletrou-a, tentando ganhar tempo e apoderar-se da resposta para ela.
Queres então, saber o que mais gostaria de fazer na minha vida e em contrapartida a pior coisa que me aconteceu?
Sim, respondeu-lhe, e dou-te todo o tempo que quiseres. Também eu farei a mesma reflexão. Mas queria saber isso de ti.
Viu-a mergulhar no silêncio e pressentiu-a a olhar para dentro de si. Sabia que ela não se esquivaria á resposta. Nunca o tinha feito a coisa nenhuma. Esperou até que a ouviu balbuciar exprimindo um "não sei quê de coisa nenhuma". Mas a pouco e pouco as palavras começaram a crescer.
Não, nunca de nada se tinha arrependido. Do mal, do bem, da tristeza, da alegria, da dor ou do conforto. E tudo o que fora mau em algum tempo se acabara por mostrar bom.
Não sabia se era a sua capacidade de olhar para lá das coisas e pondo-se de fora ter uma melhor e mais ampla visão. Sentia até que tinha da vida o que ela lhe podia dar.
Coisas más, a pior? Se com tudo tinha aprendido e crescia...
Se alguma vez fora magoada, sofrera ou se revoltara, tinha tido não sabia como, visto e sentido o reverso da medalha. Por cada mal que lhe tinha vindo, tivera um bem maior.
E que assim como não se arrependera também nunca deixara de fazer o que quisera. Com vontade, empenho e paixão...
Ele seguia-a atentamente, sorvendo cada palavra, sentindo a par com ela. E quando ela falara de paixão, sorriu.
Sim , esta era a mulher que ele tinha dentro de si. Uma mulher paixão.
Era este sentir que lhe dava força e lhe punha o brilho nos olhos e o sorriso nos lábios. Que a fazia ir á luta, anestesiada para a dor. Pronta para tudo. Testemunhou-o.
A paixão era a sua maior força e também a sua maior fraqueza. Por isso tantas vezes se despia dela para sobreviver. Depois então, embarcar em novas paixões.
Limpou-lhe uma lágrima que teimou em cair. Conhecia-lhe as memórias que a faziam sentir assim. Não as queria vivas. Queria-as exorcizar.
A paixão, sussurrou ela e um soluço comeu-lhe as palavras diluidas nas lágrimas que deixou cair.
Ele abraçou-a e sentiu o seu corpo a esboroar-se a pouco e pouco no enlace do abraço. Viu-lhe o abandono do corpo num sorriso que ela tentou esboçar. Havia sempre nela um sorriso, mesmo trémulo.
A paixão que tantas vezes a deixara caída, era também a sua razão de vida. Na entrega a que se dava, mesmo nas pequenas coisas.
Encostados um ao outro, olharam as estrelas, sonharam com o som do mar no fim do seu rio e ficaram assim em silêncio, até que ela adormeceu.
Pegou nela com mil cuidados, e ao seu colo, levou-a para a cama. Ficou a vê-la dormir.
Soube, teve a certeza que a amaria sempre e cada vez mais.
E um dia lhe traria a paz. Aquela com que ela sonhava há muito e de que tanto precisava.
Realizar-lhe-ia um sonho que sabia pertencer-lhe.

Momentos

Há momentos em que o sentimento acorda dentro de nós. Um qualquer, sem hora marcada.
E na surpresa enfrentamo-lo pequeninos. Por isso tudo nos parece tão grande. Na dor, na saudade, na solidão.
Porque o nosso tamanho nunca é maior que tais dores. E elas como gigantes apoderam-se de nós.
Mas um dia... um dia batemos-lhes o pé!
Porque dentro de nós cresce sem parar uma alma dum tamanho sem medida!

De que são feitos os sonhos

Não. Os sonhos não se desenham nas nuvens. Nem o paraíso é o sítio onde pertencem. Os sonhos fazem-se e cumprem-se nos dias que vivemos. Entre o sol e a lua. Entre o querer e o não querer. No antagonismo dos sentires que dentro de nós cohabitam. Nas histórias de que se faz uma vida, passo a passo.

Ás vezes de portas fechadas. E de recuos ou travessias por caminhos que nunca nos convidaram. De entradas inesperadas por lados traseiros e escondidos. Por sitios de sombra.
De desvios apertados que nos fazem contorcer e encolher.
De recusas. De impedimentos abruptos que tolhem o passo. De dores inimagináveis.

E o que parece vulgar. E o que se constrói pesadelo. Nasce num sonho, gerado dentro de nós pelo tempo que lhe for preciso.

Small things

Coisas pequenas do tamanho imenso da alma de quem as pressente.
Gestos perdidos, ocasionais, simples, expontâneos.
Um "não" agora, para muitos "sins"que nunca se ansiaram e surpreendem.
E o caminho feito de pequenos passos, a cumprir-se. Nunca como se sonha, mas como deve ser.
Num remoinho de pequenas coisas a fazerem-se grandes.
Um sorriso que ilumina o dia. Uma palavra que conforta. Uma mão que ampara. Um ouvido que escuta. Uma voz que serena. Um olhar que nos lê e entende.
E a vida cheia de coisas pequenas, que a fazem maior e mais completa.
Como se em cada pequena coisa se encontrasse a verdadeira essência de todas as coisas.
E a razão de todas elas fosse afinal tão pequena assim. E simples, como o são as coisas que julgamos pequenas.
Coisas pequenas com o tamanho que lhes queremos dar.

D'Amizade

Magoou-a de ferida aberta. Retorcida, moída, escancarada. Aos olhos de todos. Sem dó.

Sem contar, apanhada no meio duma tempestade que nascera em coração alheio, dobrou-se na dor sentida. Num turbilhão de emoções, afunda-se no buraco que sente crescer em si. E cai em rodopio, numa tontura sem fim. Nos olhos agora doridos não passa a luz. Uma névoa cerrada devolve-a á estranheza dum golpe assim. Como? Porquê?
E as respostas tardam, porque não as há. Só a maldade pura sustenta um golpe assim. E lhe dá forma sem razões.

Sente-lhe o sorriso cravado nas costas. Os olhos, vigilantes, nos gestos que enuncia. Á procura duma mulher derrotada. Em busca da sua vitória.

E é aí, onde lhe procuram a fraqueza, que vai buscar a força. Uma força indomável. Maior que o seu próprio tamanho. Maior do que alguma vez pensara poder ser.
A força de continuar a ser quem é. Direita, de pé e cabeça erguida, como se nada a pudesse perturbar. Dentro de si tudo pode acontecer. Ele nada testemunhará.

E a raiva... E a revolta... E uma sensação de injustiça... E a dor incontrolada a crescer dentro dum peito que não cresce ao tamanho que lhe é exigido!
Só a indiferença, o desprezo e a essência do que transporta em si são armas neste combate surdo.

É nas palavras amigas que encontra apoio. Que vê como a vêm. Como ela se julga ser.
É na solidariedade. Na oferta pronta para uma guerra que não quer fazer, que reencontra os amigos guerreiros, de que não dava conta.
Num ninho construído de mil gestos e palavras, que reencontra a paz.
No buraco em que se despedaçara encontra outras luzes e um conforto a que estava alheada.

Não tinha perdido nada quando foi atingida. Foi a prova que nunca tinha procurado, de que nunca estaria só.
Desta ferida com que ele a marcou, resta uma tatuagem forte e eterna.
Da amizade que se constrói sem se saber. Dos amigos que transporta com ela, sem pedir.

E forte, serena como nunca, enfrenta-o segura. E a quem vier. Da mesma forma. Em paz!

Seria em ti o principio

Ilustração do meu amigo Pedro Nogueira das Margens Confluentes- The Peblle
Há coisas que não se explicam de forma alguma. São coisas que vão para além dos nomes.
As palavras mancham-nas. As vozes alteram-nas. Os silêncios perturbam-nas.
Há coisas que só se sentem. Sem mais.

Há sitios onde tudo parece acontecer naturalmente e em harmonia. Como se não houvesse outras formas. E tudo fosse simples. E a lisura existisse. E mesmo as coisas ásperas fossem macias e não causassem arrepios. Há sitios assim.

Há pessoas que mesmo longe, estão perto. Que nos ocupam sem tirar espaço. Que nos enchem vazios inimagináveis. E nem sabem que o fazem. Cuja lembrança nos desperta sorrisos. E que sabem como nós. Da mesma maneira. Sem esforço. Como se houvesse um qualquer laço invisivel, uma qualquer ligação... que não prende, mas liberta!

É de ti que falo , sim. Do que não sei traduzir em palavras. Do que só sei dentro de mim num espaço sem línguas que o mundo conheça.
Mas sei que se um dia fossemos chão... Tu um seixo e eu areia em leito de rio, reencontrar-nos-iamos na mesma sintonia. Só poderia ser assim. Em todos os tempos e de todas as maneiras.
Ver-te-ia nas tuas brincadeiras que acalmaria nas quedas e tropelias. Cansado um dia, recolher-te-ia em meu manto e seria em ti o principio para novas vidas longe e sempre dentro de mim.

É isso que quero ser agora e sempre: O principio em ti.
O principio dos tempos, o inicio de todas as coisas.
Quando ainda há todo o tempo para que tudo se faça.
Quando tudo é ainda possível e nunca é tarde.
Ser forma de veres as coisas sempre novas, de diferentes perspectivas e em renascida esperança.
Como se cada dia, fosse sempre o primeiro e a força para o enfrentar, sempre, eternamente renovada.
Assim, genuinamente inocente, pelo tempo que te for dado.

Nela...

Como se tudo fosse novo ainda. E o tempo... Nunca tivesse existido.
Nem as coisas que o tempo traz. E pendura a esmo em cantos que um dia percorreu.
Como se nada aí tivesse ficado.
Vive cada dia como se fosse o primeiro. Num espanto de dor ou alegria que desconhece verdadeiramente. Sem matriz. Como se não houvesse memórias ou tempo para as construir.
Na pressa da vida que teima em fazer.

Sabe de si só. Do sitio que habita. De quem a precedeu. Nada mais.
E nem a si conhece. Nem em si se ampara. Estranha o que sente. Não entende. O medo, o vazio, a tristeza que por vezes se instala... e a vontade de se alongar em alguém. Que não vê. Que não a vê!
Sonha o abraço que imagina colo em alguém sem rosto, nas noites que lhe restam.
Lê as estrelas á procura dum rumo que imagina existir. Não sabe para onde, nem para quê.
Uma dor aguda no peito, desperta-a. Não sabe de onde lhe vem tal dor. Não reconhece a cicatriz que agora vê. Não sabe como lhe foi plantada. Nem sabe como a arrancar.Tem medo. Corre para fora de si.
Vê-se trancada. Sem chaves. Sufoca. Estende os braços para ninguém.

Ao fundo, na nesga da noite, a luz. O ar.
Um esforço maior. Um espasmo. Um choro, um grito. A vida!
Tanta porta para abrir... Tanta para fechar!
E a correria do tempo ou a pressa que leva, que não a deixam descansar!
E o medo de não ter ninguém e de nunca poder parar.

Como lhe apetecem passeios curtos num espaço a inventar. A luz. A paz.
Um tempo sem tempo.
E não precisar de nada mais. Nem de ninguém.

Abraçar dum só gesto, duma só vez o mundo e a vida e bastar-lhe isso!

The secret

Não é mais um segredo. Agora partilhado será de cada um a decisão de o por em prática. No fundo, a cada passo e decisão nossa, não podemos deixar de pensar. Desta forma, tendo a consciência da importância do que pensamos, podemos com certeza condicionar e determinar melhor o que queremos construir. A pensamentos positivos!

Gosto de gostar

Gosto de gostar. É a unica coisa de que tenho certeza.

Da empatia que sinto nos outros. Da sinfonia das estrelas, do mar e do vento.
Do arco-íris e todas as outras cores para além dele. Dos contrastes, dos opostos, das combinações dificeis.
Da chuva, do tempo triste. Do Outono. E a natureza em mil cores.
Das outras estações também. Do frio que convida á lareira. Do Sol a renascer em tudo quanto toca. Dos passarinhos, dos ninhos...

E as memórias? Tocadas em momentos que julgamos apagados?
As que nos dão sentido. E nos fazem perceber como somos. Nos agarram á vida, á terra... Mesmo em voo. Que como um farol, nos mostra a que lugar pertencemos.

Gosto de dar. Quando dou sou inteira. Sou em mim e nos outros.
De receber. Coisas simples. Sorrisos.
São energia pura. Adoro despertar sorrisos. Sinto-me poderosa. Como quando os recebo.
Saber que precisam de mim e que faço a diferença. Sabe-me bem.
Saber-me cor num mundo cinzento em alguém.

Gosto de ser a calma e a paz no coração dos que passam por mim.
De ser amparo, colo e aconchego...

Dói-me não ser capaz de gostar. E corro e procuro sempre razões para gostar.
Seja onde for e como for.
Importante mesmo é fazê-lo. E gostar de o fazer.
Até porque, gosto de gostar!

Em mim um céu..

Em mim, um céu. E toda a vida. Em mil cores.
Em mim, a vontade de te ter assim. Inteiro e igual a ti.
Absorver-te num abraço dum tamanho desmedido. E entregar-te pedaços de mim.

Aninhada em ti, renasço. E a cada instante dou conta do que sou.
Com a limpidez que me devolves, sou maior. Percebo o tempo e as memórias de que sou feita. Tudo volta ao seu lugar sem ajustes. Como se nunca de lá tivesse viajado. E nunca se tivesse perdido de mim.

Como tu nunca te foste. Em tempo algum.
E no entanto, sentir-te a falta. Como se em ausência e silêncio habitasses.

Olho-me. Olhas-me.
Afundamo-nos no olhar e sentir de cada um. Para vivermos dentro de nós.
Onde pertencemos desde a aurora dos tempos.
Onde somos o que somos e queremos ser.
Onde tudo é possível. E os sonhos não são miragens.

Num lugar sem idade. E sem distâncias.

Correm rios

Nos seus olhos, correm rios que desaguam dentro de si.
Brilham na luz que os reflete e amparam-se aí, nas margens dum sorriso que desenha para o suster.
Dentro ruge um oceano, numa raiva incontida. Á superfície é outro que em si transporta e o faz ser como é. Tranquilo e sereno.
Porque não sabe de raivas nem de ódios. Porque não conjuga os verbos de o ser. Nem o tem na vontade.
Foi de amor que se construiu em todos os tempos e conjugações. São-lhe estranhas estas linguagens que não consegue entender.
Na sua garganta, cala-se a voz enjaulada. Nunca saberá como e o que dizer.

Parece alheio, ausente...
Só nos olhos gritam os rios que não sabem correr para outros lados, perdidos nos rumos do desespero.
Que sente presente. Porque está e sente.

Ar(a)mada

Nunca seremos nos outros o que somos dentro de nós.

Mesmo que se esbraceje dentro da armadura que nos põe de pé.
Habitam-nos tumultos que se instalam sinuosamente em formas que não deviam ser.
Apertam, sufocam e quase explodem de querer ter nome. Um nome que não se conhece.
Que se altera e aninha, num canto qualquer, perdido do que somos.
Que demora e dói a crescer. E nunca tem o tamanho que deve.

Para quem nos visita, somos o que vê do lado de fora do que somos.
Nada mais. Somos o inverso e a crosta da ferida que nos arde a todo o momento.
Umas vezes, rosada e sadia. Outras, tão sem forma e purulenta ...
E somos sempre. Em todos os momentos, sem repouso e acalmia.
Mergulhados no desejo de serenar.
E sermos então o que queremos. Nos outros. Em nós. Da mesma forma.
Sem distorções.
Livres de sermos o que cresce em nós. Sem cuidar do que os outros vêm.
Sermos sem arames ou apertos. Como somos. Só!

O sono num sonho

Lembro-me de pensares nos sonos tranquilos que me sentias.
E de os quereres para ti também.

Viravas-te e falavas adormecido. E eu dava-te o espaço que nunca me pedias.
Respondia-te baixinho e selava-te as vozes, com os meus lábios nos teus, de mansinho.
Estremecias, serenava-te. Queria-te, como agora te quero. Bem.
Sabia. Sempre soube dos fantasmas que te habitavam.
Dos nomes que tinham e do que tinham plantado em ti.
Nunca lhes tive medo. Não cabiam no meu mundo. Não havia para eles lugar.
O que lhes podia dar não os alimentava.
Disfarcei-te de mim. Em todas as noites que não dormi e te quis ensinar a dormir.
Vesti-te o meu sorriso, bordei-te de ternura com os poucos gestos que sei.
E não lhes deste guarida. Nunca mais. Porque se perderam de ti.

Tens um sono tão doce e sereno, dizias-me.

Num sonho em que finalmente me enrosquei dormia, sim.
Mas só aí. Até lá, olhava-te pela noite fora.
Incrédula de te saber ali, comigo. Apesar de tanta coisa!
E porque te era necessária. Me era vontade.

Agora, que te ouço assim, meu sonho é um futuro desenhado num lugar que me apetecia conhecer.
Onde não se sonham sonos. E não habitam fantasmas.
E dormimos tu e eu. E são os sonhos que se aninham em nós.

O meu amor...

"O meu par está aí para me mostrar como eu sou."
(frase extraída do Livro " Amar de Olhos Abertos" de Jorge Bucay e Silvia Salinas, Pergaminho)

Nas danças da vida e nas do palco que partilhamos em fins de semana dançantes, ao ritmo dos nossos ritmos.
Na pergunta e na resposta que sem tempo antecipamos.
No gesto, no toque. Na doçura, na rigidez.
Em tudo quanto me devolve, me revejo e sou.
É reflexo. É mimo de mim. Em bailado de dor e alegria quando tem de ser.
Para me fazer melhor. Do tamanho que queremos ter. Da altura que queremos alcançar.

O meu amor está aí para me mostrar como eu sou.
E continuamos o nosso caminho, de mãos dadas, ao lado um do outro.
Olhando as mesmas águas.
Vivendo sonhos diferentes que partilhamos.
Voando para destinos diferentes, desconhecidos, que descobrimos.
E regressamos a nós á procura do que somos porque nos sabemos tão bem!

Sou peneira

Sou peneira quando te sinto esvaziar de ti, devagarinho.
E separas então, comigo, o que é para separar. Ficam claras as fronteiras. E sinto-te em luz.
Uma luz que não ofusca, nem fere. Mas acalma.
Uma luz que permite ver, em ti , para além do lusco fusco que te abrasa e consome.
Porque te filtras em mim!
Sabe-me bem ver-te despir das coisas que se fizeram, em ti, sem que assim o quisesses.
Ver-te nascer asas onde havia grilhões.
Crescem-me sorrisos a par com os teus e cantamos hinos a uma liberdade reinventada por ti.

Sou peneira e sou feliz!

Angel


Angel - Sarah Mclachlan
Spend all your time waiting for that second chance
For the break that will make it OK
There's always some reason to feel not good enough
And it's hard at the end of the day
I need some distraction or a beautiful release
Memories seep from my veins
Let me be empty and weightless and maybe
I'll find some peace tonight
In the arms of the Angel far away from here
From this dark, cold hotel room, and the endlessness that you fear
You are pulled from the wreckage of your silent revelrie
You're in the arms of the Angel; may you find some comfort here
So tired of the straight line, and everywhere you turn
There's vultures and thieves at your back
The storm keeps on twisting, you keep on building the lies
That you make up for all that you lack
It don't make no difference, escaping one last time
It's easier to believe
In this sweet madness, oh this glorious sadness
That brings me to my knees
In the arms of the Angel far away from here
From this dark, cold hotel room, and the endlessness that you fear
You are pulled from the wreckage of your silent revelrie
In the arms of the Angel; may you find some comfort here
You're in the arms of the Angel; may you find some comfort here.

Fa(lan)do em ti

Não preciso de te olhar para ainda te saber.
De tocar-te para sentir-te, de tal forma és em mim!

Vesti-me de ti um dia, para que nunca te fosses.
E dentro de mim ficaste, até que a ti me juntasse.

Nos teus pés, ainda danço, sinfonias de encantar.
No teu colo, ainda me enrolo, até a calma chegar.

Sei que estás sempre comigo, nos sorrisos que me abres.
És o sal das minhas lágrimas, as penas das minhas asas.

Minha voz, quando te canta, traz-te de volta p'ra mim.
E a saudade... Não existe. Porque persistes vivo, assim!

O Francisco e o Louva-a-Deus

Estava eu de cócoras, nas escadas da entrada do meu prédio, quando ouço o Francisco chegar.

O Francisco é um menino que vi crescer. Senti-o ainda na barriga da mãe. Tenho-o sentido em todo o seu percurso.
Esperto, vivo, sempre risonho e pronto para novas aventuras.
Dos filhos que o prédio viu nascer, ele é o que lhe dá mais vida. Ouvimos-lhe os risos ainda vem no elevador.
Sabemos-lhe das histórias pela boca dos avós que o adoram e ajudam a crescer. Apreciamos na mãe a coragem, a força e a alegria que lhe transmite.
Ele é o sorriso do prédio.

Curioso, baixa-se e pergunta-me o que estou a fazer.
Mostro-lhe um Louva-a-Deus, verde e esguio, que está parado sem saber para onde ir no meio da escada. Digo-lhe que estou a tentar ajudá-lo a sair de lá, antes que alguém o pise. Tento com mil cuidados que ele suba para o meu porta-moedas e assim devolvê-lo á natureza.
Levanta-se e a par com ele o pé pequeno que direcciona com impeto ao meu náufrago.
Grito a par com a mãe que assiste, assustada com a reacção do filho, Francisco!
Ficamos suspensas no acto que chega sem remédio.
Assenta o pé junto ao Louva-a Deus, com um forte impacto. Este assusta-se, dá um pulo, abre asas e voa para longe da escada.
Vês, era só preciso assustá-lo! Não sabes que ele tem asas e voa?
Respirámos de alívio e recuperámos a confiança no rapaz.
Já não é o bebé a que estávamos habituados. E no gesto apressado dele, estava a resposta simples para a salvação do Louva-a-Deus.

Acreditamos tão pouco na bondade inata das crianças!

O meu Deus

Acredito, porque preciso e sinto cá dentro, que alguém vela por mim. Mesmo ausente e distante.
Acredito que sei quem é. Porque só ele pode ser.
Já aqui, ao meu lado no seu colo e nas suas conversas o fazia.

A ele dedico as minhas vitórias, as minhas derrotas. Cada dia e cada pessoa que por mim se cruza, trazem-me pedaços que guardo com amor. Porque os sinto plenos de si.

Junto a mim, sempre, em partilha constante numa vida a par comigo.

Partiu há muitos anos daqui e está já noutro sitio, onde o sinto vivo e atento.
É com ele que divido a minha vida em todos os momentos.
Com ele que choro e rio. Que sofro e sou feliz.

Porque o conheci humano, sei que me reconhece na minha humanidade.
E que apesar de estar ausente, está presente.
Assim sou eu com ele. E assim contamos um com o outro.
Mesmo nos silêncios e nos interregnos quando, por largos tempos, não nos falamos.
Sabemos com certeza que nunca nos esqueceremos de nós.
Estaremos e seremos para sempre, um no outro.

Todos os tempos

Foi uma voz forte e rouca mas incisiva, que o fez estacar. Absorto nos seus pensamentos, estremeceu de sobressalto. Transportas contigo todos os tempos, dizia-lhe como se viesse de dentro de si. Não te escondas, nem procures para além de ti os tempos que julgas perdidos.
O susto correu-lhe o corpo, quase tirando o folego.

Afogado nas memórias do passado, há tempo demais, não permitia ao tempo presente uma existência plena. Sentia perder-se num tempo que o não levava a lado nenhum. Vagueava na vida pelo hábito instalado de que já não se dava conta.
Vivia, se vivia, agarrado a um tempo em que fora, recusando-se a ser e renunciando a um qualquer tempo que estivesse para vir.
E no entanto, dizia-lhe a voz que nascera de dentro, carregava em si todos esses tempos, sem se dar conta. Cada passo, paragem ou recuo o conduzia inevitávelmente a um tempo que iria acontecer.
Fizesse, ele, o que fizesse. Nunca o evitaria.
Sentiu de novo a voz, como que ao longe e arrastada. Deixava-lhe em eco as palavras, todos os tempos... Todos os tempos...

Apercebeu-se de repente, como num flash, da verdade daquelas palavras. Numa vida agarrada ao passado, vivia o presente a construir um futuro que o levava a um retorno ciclico.
Porque se demitira de viver e esquecera que a vida prosseguiria num continuum imparável. Independentemente de si.
E quando se olhasse ao espelho, veria o que a vida fizera de si, nas marcas reveladoras da carne.
Perguntar-se-ia o que fizera da vida. E saberia a resposta imediatamente.
O que escolhera fazer.
A cada momento em que abraçado aos tempos que foram, vivia nos que já eram.
E mesmo se morresse... (E como essa ideia se aninhava dentro de si... ) Mesmo que se fosse deste mundo...
O que fora permaneceria em quem ficava. E mesmo que não quisesse, perpetuar-se-ia nas memórias das coisas que deixara, no que fora. Mesmo ausente, geraria sentimentos, dor, saudade...
Pertenceria ao futuro, que não queria viver, duma forma que não podia ou poderia controlar. Da pior forma.

Sentiu pingos fortes na sua nuca. Separados mas fortes.
E cada vez mais e mais juntos. Arrepiou-se. Um arrepio que lhe correu o corpo como se tivesse sido atingido por um raio. Sacudiu os ombros de olhos fechados e quando os abriu, viu que chovia. Uma chuva que o acordava e trazia de volta. Cedeu á tentação de ficar ali, de se deixar estar.
Correu até um sitio abrigado. Parou debaixo dum toldo, sem cor, que abrigava uma montra. Ali uma frase chamou-lhe a atenção. Vá para fora cá dentro.
A chuva que o despertara também o percebia. E dava-lhe sinais que agora começava a saber ler.
Acabava de ter feito uma viagem assim. Dentro de si para fora. Unira-se agora ao seu percurso.
Não hesitou, entrou dentro da loja.
Pediu sugestões para outras viagens, no momento em que, dentro de si, começava a entender os caminhos que trilhava.
Queria partir á descoberta de quem era. Indo para fora, dentro de si.

With my heart


With my heart- Sophie Zelmani

Prendas... sorrisos d'alma

Porque anda triste, cada sorriso seu é uma dádiva.
Porque não sei o que lhe fazer ou dizer, quando ela toma a iniciativa, sinto-me aliviada.
Porque anda apática, se me tira da cama, salto e agarro-lhe a vontade.
E sabe-me bem.

Hoje deliciou-me, na surpresa que me preparou.
Não sabia quanto me dava já naquelas pequenas coisas a que me prendo.
Em cima da cama, dentro dum saco ás bolinhas, uma caneca com desenhos de criança.
Dentro da caneca um bilhete escrito pelas suas mãos em letra de mulher.
No fim a frase que vou guardar com orgulho."Com amor (aprendi contigo...)"

Abraçámo-nos e deixámos as lágrimas rolar em segredo.
Quando nos olhámos só havia o sorriso. De alegria.
Cumplicidade e amor muito sentido.

Elas

Quando puderes, desce. Espero-te no café em frente ao teu serviço. Preciso de falar contigo.

Olhou mais uma vez para a mensagem e apressou-se. Quanto mais depressa fosse, mais depressa tudo se passaria. Há muito tempo que adiava o encontro, a conversa, o que houvesse. E não o podia fazer eternamente. Iria agora, rapidinho.
Empilhou os papéis a um canto, deu uma vista pela secretária e saiu do gabinete que agora lhe pertencia. Ninguém o viu sair.
Chamou o elevador e já fora do edificio, dirigiu-se ao café.

Estremeceu quando a viu. Era como se visse a mãe dela. De tão igual! Estacou sem se dar conta e ficou preso no tempo em que os dois, jovens ainda, se amavam. Vagueou nas memórias.
Perguntou a si próprio, como tinha sido possível terem-se tornado tão estranhos e tão distantes.
Presos nas rotinas, seguras e tranquilas, onde tudo parecia acontecer normalmente.
Com as certezas já feitas.
Talvez fosse isso, lembra-se de pensar, a certeza das certezas... Nunca ter duvidado que um dia as coisas pudessem ter outros sentidos... Talvez!
Quando as conversas não se faziam por não se achar necessário. E os monólogos cresciam como ervas daninhas. A par com os silêncios duros e ásperos. Tão ásperos... Que só lhe apetecia fugir-lhes.
Quando os amigos, a profissão, as outras coisas a inventar, ocupavam os espaços vazios duma coisa que já não existia, porque não havia, dela, lembrança.
E as palavras ocas, a ausência dos gestos e dos afectos. Dos gritos e dos desencantos também.
Só o espaço físico e as malditas certezas.
E a mulher que "revia" e sentia agora ali, tinha-a perdido, como a uma estranha, num espaço qualquer da sua vida.
Nunca soubera quando e como.

Pai! Sentiu-lhe a voz e o toque. Regressou. Sim, estou aqui, de que me querias falar?
E fica a ouvi-la, voz ao longe, e a olhá-la e a querer guardá-la ali para sempre. E a pensar, porque quer muito, que não pode perder também esta mulher. Que tem de amar e cuidar. Todos os dias. Com tudo o que tem. E sabe que é pouco. Porque há muito a aprender.

A filha sabe-o distante. Conhece os lugares por onde ele anda. Gostava de lhe dar as mãos e fazer a caminhada com ele. E sente uma distância enorme a separá-los...

Contrabando

Transportas, num qualquer fundo falso dentro de ti, tudo o que sentes de mim, de ti ,da vida, de nós, como se fosse contrabando.
Mudo, quieto, não corra o risco de denunciar-se.
E moves-te por aí, carregando sorrisos que choras, disfarçados pelas gotas de água que te escorrem pela cara que enfrentas em dias de chuva.
Escondes-te usando as sombras de outros.
Contornando esquinas, colado e vincado, fazendo-te igual.
Nos gestos, nas formas, nas cores. Nas palavras e nos silêncios.
Como se fosses apenas mais um. E nunca só o que és. O que tens e sentes.
Porque não te podes denunciar,ainda. E no entanto, adivinho-te.

Faço de conta que nada sei. Por agora.
Um dia mostrar-te-ás. O que houver a declarar será declarado. Ficarás mais leve.
Continuarei aqui. Ou onde for melhor. Para ambos.
Por agora, a estrada que seguimos é a mesma. Mesmo sabendo que todos os rumos são possíveis. Livre de todos os pesos, saberás o melhor caminho a tomar.

Já não me doem as palavras

Que digam de mim o que quiserem. Se aliviar quem o quer fazer.
Do que sou, já não me perco. Do que quero, não me afastarei.

Já não me doem as palavras que dizem de mim. Como não me aliviam.
Não pesam mais. Ocas, doutros, sem eco aqui.

Porque sei que não posso ser luz e deixar de ser sombra.
E que nalgumas tardes me alongo nos outros, desfeita de mim.
E sentem de mim o que já perdi. Em pedaços que não sou eu.
Porque vazios. Da luz que dou e em que me esgoto.
E já não sou nem uma coisa nem outra. E nem o que de mim fizerem.

Para lá de todas as palavras, eu, serei sempre o que sou.
Em luz ou sombra.

Laços

Fica a vê-la afastar-se num espanto sempre renovado. Tudo lhe parece novo e único. Sempre.
Como da primeira noite que viveu com ela. A olhar-lhe o sono tranquilo.
Á procura de respostas para as perguntas que ainda não conhecia.
Incrédula do que acabava de lhe acontecer. Um desejo feito milagre, feito gente!
E a construir o caminho que julgava já feito para dentro de si. A dizer baixinho, és minha e eu sou tua!
Até não ser mais preciso. Até que o cordão, que alguém cortara, se ligasse de novo, de forma invisivel mas forte e sentida. E fossem de novo uma dentro da outra. Mas distintas. E á vista uma da outra.
Para o abraço, para o colo, para a troca das palavras e dos afectos a crescer em reciprocidade.

Sabe-a diferente e ás vezes tão igual!
É aquilo que a separa de si que verdadeiramente a define. A faz como é. Única e singular.
O que construiu nela das e pelas vidas dos outros que a rodeiam, fez dela o que é agora. Em cada encontro, tocado ou cruzado. Em cada momento vivido, sofrido. Em cada lágrima ou riso. Em cada pessoa, em toda a gente.
Os desafios, os confrontos, os entendimentos, as semelhanças.
Pertencer ou não. Partilhar ou não. E construir-se a partir de tudo isto como propósito final.
Ser quem é. Claramente. Assumir-se sem afrontar. Sendo só.
Como tão bem sabe fazer.
Em sobressaltos, a dificuldade de viver articuladamente e em sintonia com o que é, pensa e sente. Sempre, mesmo quando a dor é muita .
Aprendeu que prestará contas de si a si própria. A mais ninguém terá de o fazer.
Assumirá as consequências. Ninguém pagará as suas contas.
E é isto que é dela. O que é agora, ainda em construção. Que assume.

Olha-a até não a ver mais. E fica assim, parada sem saber o que fazer.
Não a quer deixar já sózinha.
Tivesse ela um canto dentro de si e embarcaria nele, para a confortar e apaziguar sempre que fosse necessário.
Como há tanto tempo já , ela mãe, a transportou a ela, filha.

Run


Run - Snow Patrol

I'll sing it one last time for you
Then we really have to go
You've been the only thing that's right
In all I've done

And I can barely look at you
But every single time
I do I know we'll make it anywhere
Away from here

Light up, light up
As if you have a choice
Even if you cannot hear my voice
I'll be right beside you dear

Louder louder
And we'll run for our lives
I can hardly speak
I understand
Why you can't raise your voice to say

To think I might not see those eyes
Makes it so hard not to cry
And as we say our long goodbye
I nearly do
Light up, light up

Slower slower
We don't have time for that
All I want is to find an easier way
To get out of our little heads

Have heart my dear
We're bound to be afraid
Even if it's just for a few days
Making up for all this mess

Decisões

Desde muito cedo, logo que achei possível, deixei nas mãos da Margarida decisões simples. Gostava de a fazer pensar e tinha curiosidade em ver até que ponto ela conseguia ajuizar e acertar nas decisões.
Surpreendi-me sempre. Mostrava uma cautela e um cuidado invejável. Pesava tudo com muito cuidado. Deixava muitas vezes de lado as coisas que lhe garantiam um maior prazer em troca da satisfação dum dever cumprido.
Pedia-me sempre ajuda, que não lhe negava. Ponderávamos muitas vezes em conjunto as situações. Mas era a ela que cabia decidir.
Muitas vezes lhe via tristeza. Mas o resultado final acabava por compensá-la. E então, orgulhosa, dizia-me " Ainda bem que tomei esta decisão, não estou nada arrependida!"
Era a leveza do resultado das suas decisões que a empurrava para o caminho certo. E os passos pequenos que dava ainda preparavam-se para crescer com alguma segurança. Conhecia os caminhos, porque tinha o cuidado de os tentar perceber ainda antes de os calcorrear. Levava o seu tempo nas decisões. Ás vezes quase se perdia na ânsia da resposta. Mas não tomava atalhos.
No fim, sabia que era ela o motor da sua vida. E que era capaz! A ninguém devia o que alcançava.

Um dia, confessou-me que esta minha atitude a tinha feito sentir maior, mais importante. Crescer. Mas que tinha sido uma das coisas mais dificeis que eu lhe tinha "deixado" fazer.
Ser livre, poder decidir, parecia ter-lhe facilitado as coisas. No entanto foi o contrário que aconteceu. Tudo começou a ter peso e valor. Conta e medida. Cada acto seu seria reflexo em si ou nos outros. E não porque lho mandassem fazer, mas porque ela o escolheu fazer!

Ela tinha na sua mão o poder da sua vida e dos seus actos. E por consequência a dos outros.
E era tão dificil, tão pesado e enorme ás vezes!

Tenho agora o dobro da idade dela. E sinto da mesma forma!
E ás vezes apetece-me que sejam os outros a decidir. Não para que sejam eles os responsáveis.
Mas para poder ser só a menina obediente que faz o que lhe mandam sem pensar.
Porque muitas das minhas decisões me deixam triste e são em prol dum bem maior, que não é o meu!
E só se torna meu se souber, que apesar de tudo, alguém fica feliz!
Porque assim terá valido a pena.
Se carregar na memória gente feliz, todas as minhas decisões terão sido bem tomadas, sei disso!

Despedida

Há muito que fazia em mim esta despedida. Necessária.

Porque o silêncio cerrado que interpuseste no meio de nós, construiu um muro que não sei contornar.
Porque assim, de tão pesado, te levou para longe aqui tão perto.
É vital que me despeça de ti ainda que te queira comigo.
E sei, que dizer que me esqueci de ti, seria mentir. Porque as lágrimas que caiem, quando em mim ecoas, são prova de que existes ainda cá dentro .
Mas com desejo de te perder, para não te sentir mais assim.
Um desejo de que te vás. E de que a tranquilidade que em tempos senti, volte de novo a este peito que se inquietou sem sentido.

Amordaço-te em mim. Mas dou-te asas.
Para de mim voares, para longe e sem regresso, em paz.

Não. Não ficarei a ver-te partir. Como me fiquei a ver-te ficar.
Ausentar-me-ei na despedida que quero breve. Não darás conta de mim.
Como há muito tempo, não dou conta de ti!

Pedras

Chegou á aldeia de malas carregadas. Arrastava-as de tão pesadas.
Atrás perdera a família numa encruzilhada qualquer da vida.
Veste o negro chumbo da dor de tanta saudade e arrependimento.
Sente agora que na ilusão dum amor, que julgava eterno, perdeu quem a amava, num mar de dor.

No adro da igreja onde todos se juntam, procura olhares de entendimento e vozes de conforto. Fala de si a quem a ouve e pensa, quer, redimir-se assim. Porque lhe pesa uma qualquer, enorme, culpa.

Procura a trajectória da pedra, que paira no ar, de quem a possa acusar. Quer ser atingida. Penar. Para sentir alívio.
E quando julga paga a pena, decide passar a punir.

Agora a sua causa é maior. Sente-se também maior. A culpa que sentiu e pagou, vai fazê-la obrigar pagar, a quem ainda não o fez.
Porque se julgou e se fez julgar. Sente o poder de o fazer.
Munida das pedras de que se tornou alvo, atira-as sem dó. Sonha que assim ganhará o que um dia perdeu.
Fá-lo-á na aldeia a que chegou, e ás portas a que bater nas aldeias por que passar.

Pensa-se já mais leve, melhor. Julga nos outros o que viveu em si. Mede os outros com a sua medida. Faz dum mundo enorme um mundo ao seu tamanho.

Não sabe ainda que em vez de culpas, carregará pedras!