O meu livro e eu

Medo

Tinha medos como toda a gente, mas ninguém lhos adivinhava porque nos olhos e na voz se via só coragem. E todos se enrolavam nela. Fora sempre assim.
Era o escudo de quem não o tinha. Com ela sentiam-se protegidos. Mas Dulcilena carregava com ela todos os medos do mundo em lugares insuspeitos.
Figura frágil mas de porte seguro, transparente nada parecia ocultar por não ter onde. E no entanto tinha.
Lembrava-se do medo a nascer em carantonhas de gigantes com sons de tambores e gaitas com vozes e sons que não entendia. De ser pequena e gritar pelo pai de que só lembra a boca escancarada num riso frenético pela sua figura de medo.
De querer fugir e ver escadas com degraus que pareciam montanhas. E os gigantes e a falta de ar de espaço de liberdade, de abraço e colo... E não saber como mas encontrar-se debaixo da mesa tapado por panos que a cobriam. E o choro que não parava e quase a sufocava.
Lá fora os gritos, os risos, para onde foi a miúda?
E não chorar para não darem conta dela. Fazer-se forte. Desaparecer. Ser Dulcilena por inteiro. Vencer o medo que vira nascer.

Encontraram-na já tarde, enroscada em si a dormir. A cara suja tinha a marca das lágrimas que deitara ao medo. As últimas. Ninguém lhe veria mais. De medo só para dentro deitaria lágrimas. Ninguém responderia ás suas lágrimas com risos, nunca mais.
Não o soube nessa altura. Soube-o mais tarde, pela vida fora.

A partida

Parte agora decidida. Para trás fica a vida empacotada, arrumada. Tudo fica num lugar que demorara a encontrar mas encontrara pouso por fim. Na casa tudo ficou coberto por lençóis brancos para se resguardar do pó do tempo. As coisas pareciam-lhe mortas. Estavam apenas adormecidas á espera de novos acordares. Apaga as luzes depois de fechar cuidadosamente todas as janelas.
Olha a lista que fizera de tudo quanto queria levar: enorme.
Maior é a lista do que fica para trás e sabe que vai sentir a falta.
Mas apetece despojar-se das coisas, até das memórias. Iniciar uma história nova num sítio novo como se nascesse do nada mas transportando consigo já a sabedoria dos tempos… Porque a dor já a tinha amansado, já a tinha feito ser quem era e mesmo sem os adornos não se despia de si e caminhava carregada apesar de querer e desejar-se leve nesta partida.
Parte decidida porque quer chegar e começar tudo como se nada houvesse para trás.
Carrega a roupa, leve para o verão que sabe muito quente. Alguns casacos para as noites frias em que se imagina a escrever os sonhos que lhe crescem nas pontas dos dedos, numa varanda qualquer…
Não, ninguém lhe confirmara ainda o pouso, seria agora um quarto duma pensão qualquer, e uma janela para um beco vadio com ou sem estrelas por testemunhas, não importa como será.
Não carrega livros de leitura, só três ou quatro fotos, as dos filhos e netos, acabarão amarrotadas e talvez debotadas, não importa. No portátil carrega todas as memórias que lhe são vitais: as cores, as formas, os rostos que gosta de captar.
Para o trabalho vai munida. Não sabe o que vai encontrar ou não por lá. E não quer perder tempo a procurar. É a maior parte da bagagem. Material de trabalho. E contactos. Todos os que pode arranjar.
Quer tempo para si. Só assim o pode ter. Não perdendo tempo com coisas inúteis, com coisas que arrecadou já com o tempo.
Olhou mais uma e outra vez para trás. Não com saudades já. Para ter a certeza de que tudo era como se lembrava. Para ter a certeza que não esqueceria e que sempre que quisesse se iria lembrar com precisão.
Olhou para o relógio. Entrou no táxi. Pediu que a levasse ao aeroporto.
Deixou que uma lágrima caísse, secou-a com a ponta do indicador direito, olhou em frente. Durante a viagem não disse palavra.
Ninguém foi com ela ao aeroporto. Foi ela que assim quis. Despediu-se do taxista pegou na sua bagagem e dirigiu-se ao balcão de embarque.
Daí a uma hora e trinta e cinco minutos partia.

O tempo dos amantes

O laranja era a cor: a cor das horas que anseiam eternidade por serem tão belas e quase irreais.
No laranja das manhãs a acordar e das tardes a cair, a beleza espreguiçava-se e estendia-se no céu alargando-se á terra, deixando-nos a vontade de ficar aí presos para sempre. Era o tempo entre a pressa e o vagar, entre o partir e o ficar. O instante mágico que se quer para sempre, rodando sobre si próprio, sem promessas de passado ou futuro num constante presente.
O tempo de amar. O tempo dos amantes.

O livro vermelho

Espantava-se quando via o sorriso abrir-se depois de desfolharem sem sentido e lógica alguma aquele livro pesadão, cheio de letras que não contava histórias e onde não viviam figuras.
Nos livros em que desfolhava uma a uma as páginas, o sorriso, o medo, o espanto e até a lágrima tinham letras gordas que juntas contavam aventuras e mostravam as personagens, ora tristes, ora alegres.
Tudo fazia sentido e sabia bem ouvir ou ler.
Era uma viagem que se fazia do princípio ao fim com ligeiros intervalos para algumas perguntas ou para resolver alguns receios.
Não podia entender como os grandes procuravam aquele livro tamanho e procuravam com sofreguidão determinada página e se saciavam com pouca coisa, largando-o depois. Como se contivesse uma qualquer poção mágica.
Só um dia, quando no meio duma história foi visitado por uma palavra estranha, lhe entendeu o valor.
"Saiu da toca aturdido...", rezava a frase e quis saber melhor.
Levou-a a mãe ao livro que encerrava o mistério. Desfolharam como tinha visto fazer e encontraram a palavra: Aturdido ou seja aturdimento, o que equivalia a perturbação dos sentidos ou atordoar. E o jogo continuava.
Atordoar seria fazer perder os sentidos, entontecer.
E podia continuar.
E foi assim que aprendeu a jogar no livro grande e vermelho de folhas amareladas. E a sorrir também.
Nunca mais deixou um livro por ler por não o entender. Por não perceber para que servia. Se via sorrisos. Queria sorrir também.