Medo

Tinha medos como toda a gente, mas ninguém lhos adivinhava porque nos olhos e na voz se via só coragem. E todos se enrolavam nela. Fora sempre assim.
Era o escudo de quem não o tinha. Com ela sentiam-se protegidos. Mas Dulcilena carregava com ela todos os medos do mundo em lugares insuspeitos.
Figura frágil mas de porte seguro, transparente nada parecia ocultar por não ter onde. E no entanto tinha.
Lembrava-se do medo a nascer em carantonhas de gigantes com sons de tambores e gaitas com vozes e sons que não entendia. De ser pequena e gritar pelo pai de que só lembra a boca escancarada num riso frenético pela sua figura de medo.
De querer fugir e ver escadas com degraus que pareciam montanhas. E os gigantes e a falta de ar de espaço de liberdade, de abraço e colo... E não saber como mas encontrar-se debaixo da mesa tapado por panos que a cobriam. E o choro que não parava e quase a sufocava.
Lá fora os gritos, os risos, para onde foi a miúda?
E não chorar para não darem conta dela. Fazer-se forte. Desaparecer. Ser Dulcilena por inteiro. Vencer o medo que vira nascer.

Encontraram-na já tarde, enroscada em si a dormir. A cara suja tinha a marca das lágrimas que deitara ao medo. As últimas. Ninguém lhe veria mais. De medo só para dentro deitaria lágrimas. Ninguém responderia ás suas lágrimas com risos, nunca mais.
Não o soube nessa altura. Soube-o mais tarde, pela vida fora.

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