Uma luz

Andava assim há algum tempo.
Um tempo já sem conta.
Transportava dentro de si uma fome que nunca se podia saciar e estava aninhada no peito em ferida aberta.
Arranhava-lhe as entranhas e subia-lhe á garganta que secava e a deixava muda.
As palavras não diziam o que sentia.
E dentro de si tudo rugia num barulho ensurdecedor.
E ensurdecia de tão alto se ouvir.
Um concerto desafinado fazia-a manter-se acordada horas sem fim.

Um abrigo, um qualquer porto de abrigo onde brilhasse a luz que a fizesse entender uma tal desarmonia…

Talvez fosse quanto bastasse.

Dói-me

Caminha já sem a noção das coisas, se ainda hoje as teve.
Deambula num desequilíbrio evidente entre o muro – na valeta mais ou menos profunda que agora corre seca – e a estrada que se aperta no passar dos carros.

Há muito que afoga a vida nos copos que esvazia de seguida enquanto debita monólogos que já ninguém procura entender.
Acaba quando o dinheiro acaba. Depois vai para casa ou para outro destino qualquer.
Ás vezes perde o rumo e percorre distâncias quase impossíveis para tal condição. É o balanço do corpo que determina o destino.

A cabeça viajou para outros mundos. Onde não dá conta de si.
Amanhã não se lembrará de nada. E todos os dias são dias de amnésia.
As memórias são voláteis como o álcool que as consome.
Também por dentro as entranhas se desfazem e despedem da vida que um dia viveu.

Vi-o ainda agora. Tinha-o deixado há horas num outro ponto distante. Julgava-o em casa.
Na verdade deixara de pensar nele.
Estava á beira da estrada de calças abertas, talvez acabado de urinar, virado para a estrada, balançando-se, pegando no pénis desnudado á vista de quem passava.
Indiferente.

Eu que ainda tenho memória, não vou esquecer por muito tempo.
Não o que ele fez. Mas o que o fez chegar aí.

Almas gémeas

Há pessoas com quem tudo é fácil.
Pessoas que nos parecem estar predestinadas.
Com quem tudo flui duma forma espontânea e natural como se viesse escrito desde os primórdios dos tempos.
Gravado em mensagem de língua desconhecida e ancestral, quiçá divina.
São como ecos de nós que sem nos repetirem, entendem e prolongam para lá de nós o que somos.
Fazendo-nos maiores e mais esclarecidos. Alimentam o espírito levando e trazendo sustento de forma graciosa e em eterno retorno.
Essas são raras. Aparecem na nossa vida em ciclos que não se anunciam.

Muitas vezes, cansados da monotonia das gentes que se cruzam nos nossos percursos baixamos os braços e deixamos que os olhos se cerrem. Que os ouvidos e todos os sentidos fiquem anestesiados e nos achemos a vaguear como autómatos.
Cumpridores do duro ofício da vida e nada mais.

Até que um despertar aconteça. Ou um qualquer vibrar, uma qualquer sintonia, um toque, uma simples troca de olhares faça tudo renascer.
As palavras trocadas, continuadas, os mesmos sonhos, a mesma voz. A força que faltava, a luz que era precisa acender… A estrada partilhada.

Almas gémeas... Talvez.

Ainda não

Sabia que voltar ali lhe traria algum desconforto.
Mas a vontade de o fazer crescia a cada momento. Era uma saudade quase sem sentido.
Ainda não estava pronta para visitar os lugares que um dia ocupara com prazer.
Faltavam-lhe os sorrisos que estava habituada a distribuir, as palavras que tinha para dar na hora certa… Sentia-se incompleta.

Fazia-o sorrateira. Em bicos de pés, com mil cuidados.
Apagava a sombra e soprava as pegadas levando os vestígios para sítios desconhecidos.

Não podiam dar por si. Agora não.
Só num futuro qualquer onde houvesse alegria.
Onde tudo o que sentia agora fosse só passado, nada mais.

Gente

Gente diferente, sempre.
Com pátria, nunca.

É como se sente no encolher de ombros e abandono de olhar que lhe vejo.
Nem cá, nem lá é de sitio algum.
Desdobra-se em línguas que aprendeu em retalhos de tempos divididos em espaços partilhados por outros assim.

Reparte com eles a mesma forma de sentir. O mesmo esvaziamento.
O não saber onde pertence afinal.
Atravessam-no culturas que nada têm em comum. Formas de estar e viver que o fazem ser estrangeiro em qualquer lugar.
Eternamente estrangeiro.
As raízes de que lhe falam, procura-as de cada vez que viaja até á terra de seus pais.
Em vão.
Sente-lhes cada vez mais a distância. E a dor de não pertencer a lado algum.

Volta-se como se fosse tudo normal.
Sente-se quase nómada. Sente quase sina.


Apetece-me o abraço com cheiro a casa que penso fazer-lhe falta.
Dói-me que se acomode.
Agarro-lhe a dor e sinto-a também.

Espalho-a por aqui em pinceladas de letras tristes.
Para que se vá.

Confesso que...

Chegava a espantar-me das coisas sempre novas que as conversas de coisas tão simples como as nossas, sempre traziam.

Não, nunca me habituei a que isso acontecesse apesar de tão frequente.
Tinha sempre um sabor a descoberta, a coisa nunca vista ou acontecida.
A coisa rara.
Eram pérolas que guardávamos dentro de nós ou então apressadamente expúnhamos a ilustrar outras coisas que vinham a jeito.
Mostrávamos com vaidade um ao outro e sorriamos com a ternura bordada no olhar.

Era sempre assim.
Em tudo o que acontecia connosco.
Duma forma simples e sem antecipações.
Aprendia contigo a conhecer-me melhor e a perceber o que saia de mim. A dar nome ás coisas. Talvez te acontecesse também a ti.
Não queríamos mais que isso. Era tudo quanto era preciso.

E fora sempre assim. Nunca se soube porquê.
Talvez nem seja preciso saber-se.
As coisas ás vezes são só o que são. E talvez seja melhor deixá-las estar nesse lugar.

Se um dia isso não acontecesse mais talvez deixássemos morrer as conversas e ficassem só as memórias…

Mas não acredito que uma magia tão forte que fazia as palavras bailar á nossa frente construindo sorrisos onde havia lágrimas, alimentando esperança quando já não se acreditava, pudesse um dia morrer.

Por isso sei que me vou admirar ainda por muito tempo.
Pelo tempo de seres meu amigo.
Pelo tempo de partilhares as tuas palavras comigo.

Até um dia...

Vive agora no avesso das coisas.
Adormecido no cotão das costuras duma vida que lhe sabe a coisa nenhuma.
Esqueceu o sabor das vontades e perdeu os desejos que nasciam em si.
Diz-se sereno mas sabe que o que sente não é paz mas falta de alimento. Ou de um qualquer tempero que por falta de mão não se juntou ao que tem.
Deambula no fio dos dias num equilíbrio instável entre tudo e nada.
Não sabe por quanto tempo, talvez para sempre.
Não se lembra há quanto tempo. Talvez desde sempre.
E a quietude instala-se a pouco e pouco por todo o corpo agora anestesiado.

Até um dia o inesperado acontecer e uma primavera ousada rebentar dentro de si.
Primeiro em murmúrios.
Depois em cânticos fortes que não poderá calar.
E dançará mesmo que nunca tenha aprendido

Saudades

O calor fazia as horas andarem devagar, aninharem-se em cada recanto e colarem-se em gotas preguiçosas que teimavam em não fazer-se desaparecer.

Era um tempo mole, invertebrado que deixava a visão turva e a boca seca.

Nunca as cores pareceram tão pálidas e as vontades vieram nesta câmara lenta de movimentos sem sabor.

E a saudade da chuva e das cores do arco-íris tatuaram-se a fogo na memória.

Um rio

Subiu-lhe ao peito numa golfada como se fosse uma onda.
Num ímpeto imprevisto, vindo não sabia de onde.
Como se não houvesse mais tempo nem espaço para tanto.

No peito alagado ficou-lhe o sabor a dor antiga e teve medo do tempo que estava para vir.
Já desfolhara as folhas desse livro ainda por ler, demasiadas vezes.

Uma a uma, deixou cair as lágrimas.
Esvaziava um rio tumultuoso que agora saltava as margens.

O sonho



Uma coreografia de Benvindo Fonseca apresentada ao vivo pelo grupo musical Madredeus e a companhia de dança Lisboa Ballet Comteporâneo.
Filmado em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, em 29 de junho de 2006
O Sonho Letra e Música de Pedro Ayres Magalhães

Ali

Ali toda a verdade não passava de ilusão. Talvez por isso tudo parecia tão perfeito.

Os espaços ficavam preservados. Ninguém os invadia. Continuava o seu caminho sozinho, vagueava pelas ruas como sempre quis sem ninguém ao seu lado.
E ali… Ali encontrava á distância das teclas com quem falar da solidão que gostava de viver, das prisões de que fugia, dos receios de intimidade. E dos medos que o povoavam.
E comungava em união com outros também até um qualquer desligar de botão.

E voltar ao conforto, á segurança de estar só ele no mundo real.
Por momentos era outro noutra dimensão que tinha o tempo que lhe queria dar.
Sempre só esse.

Ali toda a verdade não passava de ilusão. Talvez por isso tudo parecia tão perfeito.