Suspensa

Suspensa
entre tudo e coisa nenhuma.
Num não lugar.
Onde o tempo não seja medida.
E o espaço,
seja o contorno alargado dos sonhos
da alma prisioneira que carrego
no corpo usado e cansado.

E aí flutuar,
liberta do peso da poeira da vida.

É quanto quero,
agora.

Ás vezes

Ás vezes perdemo-nos do mundo dos afectos. Das memórias em nós, dos amores que um dia nos fizeram felizes e nos deram o rumo que nos trouxeram ao lugar que pisamos.
Aí vagueia-se entre os dias e as noites, num suceder sem destino. Em desencontro.
Num sem saber de quê.

Ás vezes é um amor a coisas longinquas que nos planta a esperança no vazio instalado. Tudo parece mais fácil e próximo mesmo distante. Recomeçar tem o sabor da subida ao ventre da terra mãe. Volta o aconchego, o sonho e o sorriso cresce nos lábios. As palavras desenham histórias que se partilham.

Ás vezes, há quem as escute porque as procure também. Sedento, procure oásis num deserto que deixou crescer. E nesse encontro se desenhem anéis em crescendo.

Ás vezes um tem medo, mas vontade. Está preso, mas livre. Entre um lado e outro abraça sequioso e atento. Embalam-se no encanto das viagens que sonham e quase tudo é real. Os olhos brilham. A voz exalta. A vontade cresce.

Onde a esperança fora plantada outra semente é lançada.

Ás vezes não basta semear. Nem cuidar. É preciso que haja vontades. Mais do que uma.
Ás vezes há quem só semeie ventos de paz e acalmia num coração cansado de tempestades. Há quem tenha um coração em pousio.

E a semente não cresce. Hiberna.

Ás vezes, no desenho do futuro, alguém acrescenta um traço que o altera como rabanada de vento, na sementeira que se faz.

Ás vezes só nos resta guardar a semente dentro de nós. Alimentá-la, aninhá-la como se fosse só nossa.
Preservá-la na memória dos sentires que ás vezes se perdem e não se sabem.
Ter a certeza que vai acontecer de novo.

Alma enorme

Sentiu-lhe na voz a alma dum tamanho que não conseguia medir.
Chegava-lhe em ondas de frescura misturada com palavras de poetas a ilustrar as músicas que ele lhe dava a ouvir.
E eram torrente as palavras e rios as conversas.
E neste caudal imenso desembarcava em si toda a ternura e sabedoria que não conseguia conter.
Assim feita mar de ondas serenas, deixava-se abraçar pela luz da lua namoradeira que a enfeitava em prata. Embalada na memória dourada do sol quando nela se deitava. Viajava e deixava-se atravessar por quem por lá navegava.
Hospedou-lhe a alma na tranquilidade escondida entre algas e corais. Deixou-o espraiar-se.

Os sons que chegam á beira-mar vêm-lhe das profundezas.
Do mesmo sitio, onde há muito ele se deixou ficar. Escuta-o aí quando lhe sente a falta.
E renasce!

Inventores de histórias

Lembro-me da estranheza de não viver da mesma forma com as mesmas pessoas, como toda a gente.
De inventar razões e criar histórias que fossem o suporte dum viver assim.
Todas as crianças com quem me cruzava, tinham um pai e uma mãe. Eu tinha uma tia e um tio.
Todas choravam e riam ao colo duma mãe. Eu fazia-o ao colo duma criada.
E muitas vezes até um dia ele se cansar e ausentar ao colo de meu tio.
Mas soube-o, apesar de tudo presente.
Todas as crianças faziam férias de vez em quando em casa dum parente qualquer.
Eu fazia em casa duma mãe que descobria a par de 3 irmãs que disfrutava a correr. Porque afinal tinha mãe e irmãs. Também tinha pai. Mal o via. Sabia de mais 2 irmãos que não conhecia.

Ah a minha mãe e as minhas irmãs! Eram o meu Natal em qualquer altura do ano.
Lembro-me de chorar ao chegar. De alegria.
De chorar ao partir. De tristeza.
E aqueles tempos ali, de descoberta e partilha. De risos e gargalhadas. De pão repartido. De cama dividida e velas consumidas até á exaustão. As bonecas feitas com papoilas. As casas na eira. As corridas aos ninhos. As incursões ao sótão e as leituras da bd dos irmãos que eu não conhecia.
E a mãe que eu não tinha. Ali a falar connosco. Do que queriamos saber. Do que era preciso saber para crescer. E as conversas imparáveis porque tudo tinha de ser dito num tempo que tinha um prazo sempre curto. Cada vez mais curto.
Porque tinha de voltar ao meu destino. Como dizia minha mãe, a um destino melhor.
E voltava. Sem mãe.

Ainda hoje mal a conheço. Penso que mal conheci e mal amei afinal. Não o soube fazer.
Não o sei fazer. E queria tanto saber como é!
Nas histórias que inventava para apaziguar a dor as coisas tomavam sentido. Agora que cresci, sei que não há invenção que lho dê.

Aprendi uma coisa só. A amar ferozmente os meus filhos.
Não os prendo. Mas não abdico deles.
Não os quero inventores de histórias.

Os olhos não pensam

Dizia-lhe quem fazia amor com as palavras que escrevia que os olhos não pensam.
Vêm coisas a cru. Lêm a preto e branco deixando as cores para uma razão ás vezes ocupada em coisas que não valem a pena.

Fugiam-lhe assim da mira pequenas grandes coisas que se perdiam para não mais encontrar.
Sinais, avisos, indicações, roteiros do mapa da vida em que se movia de forma insegura.

Via ás vezes com outros olhos que escondia no peito. Os da emoção. Os do sentir.
E arriscava sem temer. De se perder nunca tivera medo.
O tempo que tinha era o da vida que era sua. Todo seu.
Encontrar-se-ia no tempo devido.
Até lá e entretanto no percalço e no desconhecido enfrentaria a descoberta.
Seria maior. Cresceria mais forte. Aumentaria a bagagem.

Foi com esses olhos que o fitou e lhe pediu um beijo. E contra esse peito que o apertou.
Foram os sinais que sentira em si que a fizeram partir nessa viagem.
Uma viagem que não iria fazer sózinha. Soube-o então.

Como um girassol

Não queria ainda acreditar. Começava no entanto a senti-lo. Mais que das outras vezes. Mais do que nunca quisera ou pressentira.
Conhecia-lhe já os afastamentos. Dizia-lhe, ela, que se resguardava. Que se escudava na distância e no silêncio por não suportar o dele.
E ele já nem sabia porque o fazia. Nem se dava conta de tal. Perdera-se há muito num espaço para que fora atirado pelos desencontros de amores há muito perdidos.
Quando a conhecera, fora a sua alegria que o fizera por a cabeça de fora e ter vontade de aí ficar. Agarrava-se ás palavras, ao riso, ao encanto que dela emanava e sentia de novo força dentro de si.
Gostava de tudo nela. Era a mulher que ele sonhara em todas as que tivera.
E disse-lho. Muitas vezes.
Foi mágico e surpreendente o que sentiram. Dum tamanho que ele não abarcava. E teve medo.
Assim como se abriu, assim se fechou. Deu-se e escondeu-se. De novo.
E ela afastava-se também. Dando-lhe o espaço que ele temia perder. E perdia-o.
Porque ele se aninhava na aridez que reconhecia como sua morada.
E sabia que a amava. Que a queria. Que um dia renasceria e a iria procurar. Faria tudo para a ter de novo em si.
Ela só tinha de o amar sabendo que ele não estaria com ela. Como se não existisse e no entanto lá estivesse. E fê-lo. Amou-o além doutros amores. Que a mereciam.
Até ser possível. Até ele deixar de ser sombra nela.

Agora ele sentia-a longe para lá dele e da esperança a que não dera alimento.
Perdia-a de vez. Esgotara o tempo, as esperas... Escondia-se no deserto que fizera de si. Fazia-se sombra e noite só.
Do outro lado via-a virar-se como um girassol para a luz doutro amor que lhe punha os sorrisos que o fizeram amá-la.

The reason why


Rachel Yamagata- The reason why
Think about how it might have been
We'd spend out days travelin'
It's not that I don't understand you
It's not that I don't want to be with you
But you only wanted me
The way you wanted me
So, I will head out alone, hope for the best
And we hang our heads down As we skip the goodbyes
And you can tell the world what you want them to hear
I've got nothing left to lose, my dear
So, I'm up for the little white lies

But you and I know the reason why
I'm gone, and you're still there
I'm gone, and you're still there
I'm gone, and you're still there

I'll buy a magazine searching for your face
From coast to coast, or where ever
I find my place
I'll track you on the radio, and
I'll find your list in a different name
But as close as I get to you
It's not the same
So, I will head out alone, hope for the best
We can pat ourselves on the back
As say that we tried
And if one of us makes it big
We can spill our regrets
And talk about how the love never dies

But you and I know the reason why
I'm gone, you're still there
I'm gone, you're still there
I'm gone, and you're still there

So, steal the show, and do your best
To cover the tracks that I have left
I wish you well and hope you find
Whatever you're looking for
The way I might've changed my mind,
But you only showed me the door
So, I will head out alone, hope for the best
We can pat ourselves on the back
And say that we tried
And if one of us makes it big
We can spill our regrets
And talk about how the love never dies
But you and I, you and I, you and I know the reason why.

Coração imperfeito

O coração que carrego no meu peito, não é perfeito.
Sempre o soube. É um coração de gente ainda a crescer.
Fala uma língua de afectos que a razão desconhece. E, ora, fica mudo na dor de não ser entendido. Ou exuberante, na traquinice da irreverência que lhe sinto

Tem o tamanho de todos os outros corações que conhece. A forma é também a mesma.
Quem o vê não suspeita das ventanias que o correm. E ele não as sabe contar.
São por vezes carícias que o amolecem. Suaves e quentes.
Doutras, rabanadas estonteantes que o deixam em desnorte.
E quando se cruzam os ventos, encolhe-se em refúgios apertados, longe das portas que tem abertas para o mundo.
Tem medos a povoá-lo. Sombras, fantasmas que pressente e não reconhece.
Mas não os mostra a ninguém.
Muitas vezes, sem aviso, ergue-se com força insuspeita. Enfrenta os vendavais. Olha-os de frente sem raivas. E deixa-se atravessar pelo que a vida lhe traz.
Sabendo ainda tão pouco!

Não quer crescer este meu coração!
E deixa-me perdida em sentires que se contradizem. Desorientada entre a lágrima e o riso.
Algures entre a alegria e a tristeza. Em revoltas que a calma não embala.
Mesmo que o mande ser grande, do tamanho que lhe sonho, recusa-se e bate forte num barulho ensurdecedor.
E faz coisas que não lhe entendo, este coração sem dono.

Coisas de gente imperfeita.
E reconheço-o então!

Passos

Ligou-me um dia, já tarde. Precisava muito de falar comigo. Num sítio calmo e sem que a filha soubesse. Por favor! E tratava-me carinhosamente pelo diminutivo que nunca usei.
Vasculhei um espaço com tempo livre e marquei um sítio.
Sentia que já sabia o que me ia dizer. Coisas que eu já conhecia. Todos já sabiam e ninguém se atrevia a dizer-lhe. Vesti-lhe a dor que suspeitava. E dentro dela tentei respirar devagar. Para a conhecer inteira, sentindo-lhe cada canto. Talvez assim vestida a pudesse confortar melhor.

Pediu-me que falássemos noutro lugar, mesmo dentro do carro. Senti-lhe um desconforto que nunca lhe tinha visto. Tive a certeza de que já sabia.
Falou de coisas triviais e do orgulho que tinha de eu ter conseguido ser o que era.
Falou da pena enorme da filha não o ter sido. Calou-se por algum tempo.
Vi pelo canto do olho que limpava uma lágrima teimosa. Parei o carro.

Sabe? E de novo o carinho no diminutivo. Não sei que fazer... E deixou-se esvaziar ficando sem ar dentro dela que a sustentasse inteira.
Penso que a minha filha desistiu de tudo. Nem vergonha já tem.
Lembra-se como a encontrou. Sabe como ela era. E o que ela foi. O marido deixou-a. Levou-lhe a filha em troca dum filho que só nos dá problemas, com que não sabemos lidar...
Fica um pouco em silêncio, á procura de alento para continuar.
Fez de tudo como sabe. Trabalhou tanto! E a vida nunca lhe sorriu. Correu-lhe tudo mal.

Tentei acalmá-la agarrando-lhe as mãos que não sabiam que fazer. Fiz-lhe entender que sabia o que ia dentro dela. Porque o sabia. E mesmo que não quisesse, também a mim me doía.
Por nada poder alterar. Pela incapacidade de ir para além da realidade. De fazer mais, doutra forma.
Olhar a dor daquela mãe, da idade da minha, a pedir-me ajuda e conforto. E ser mais pequenina tentando ser maior. Á medida do que esperava de mim. E poder ser só o ouvido e o ombro ali.

Sabia já o que ela me ia contar. A filha já mo tinha dito.
Ganhava agora o dinheiro que trazia para casa á custa do próprio corpo. Perdera tudo o que podia perder. Agora, tinha de cuidar dos seus da única forma que a vida lhe tinha deixado. Mais baixo não desceria. Porque chegara ao fundo. E tentara tudo.
E todos testemunharam. Eu também.
Nada nem ninguém fez o que poderia ou deveria ter sido feito. Portas fechadas sem prazos. Numa vida que não tem tempo para adiamentos.

A minha filha, agora, vende-se para nos sustentar...
Um choro compulsivo subiu-lhe no peito que agarrei contra o meu. No abraço em que ficámos deixámos as lágrimas rolarem.
Porque ás escondidas, não me contive, chorei!

Vidas...

Lembro-me bem da primeira vez que a vi. Ia á procura dum nome que ainda não tinha rosto.
Estava de costas para mim, inclinada sobre um tanque, onde lavava toalhas dum restaurante. A primeira coisa em que reparei, foi na forma como as pernas de tão inchadas pareciam defeituosas. Corridas por varizes que saltavam e se mostravam azuis e vivas á flor da pele. Só quando ela se voltou lhe vi a barriga enorme. Uma gravidez no fim.
A cara cansada, os olhos baços não me deixavam ver quem era. Porque afinal já a conhecia.
Foi ela que se deu conta. E um sorriso bailou-lhe entre as lágrimas que não podia evitar, ao trazer-me as memórias de quando eramos pequenas.
Incrédula, esqueci-me que era o trabalho que me levava ali. Por momentos fomos de novo colegas de escola e de traquinices.
Tinha já um filho, que lhe dava problemas, não sabia o que tinha. Esperava outro.
O pai? Pela cidade grande, esquecido da família que visitava de vez em quando. Era polícia, pessoa de bem. Mas o dinheiro nunca chegava...

Tudo se tinha desmoronado depois que o pai morrera. O negócio de família foi a pouco e pouco caíndo. A mãe doente não tinha forças para garantir o sustento dos filhos ja crescidos.
Ficara a casa e a memória de tempos de trabalho mas de alegria e conforto.
Ela casara com um bom homem, de boa formação. Pensara toda a familia.
Tudo se resolveria. Ajudaria a mãe e continuariam a viver para melhores dias.
Foi com o nascimento do primeiro filho e o destacamento do pai para longe que tudo voltou de novo á tristeza que julgavam passada.

Eu estava ali para lhe falar do filho. Para a tentar ajudar e saber como o fazer. O filho que lhe dava problemas. Que ela fechava no quarto para não fugir. E que a pouco e pouco lhe arrancava os tacos do chão. De fora ouviam-se os sons estranhos e o barulho que ele fazia a bater com eles na parede. Passava assim dias, sem parar.
Estava perdida, não sabia o que fazer. O marido dizia que a culpa era dela. Não o sabia educar. Não obedecia, não falava, não olhava direito para ninguém. Nem um sorriso sabia dar. Só aqueles "urros" ou "grunhidos" que ninguém lhe entendia.
Culpa dela que o deixava fechado em casa para ir procurar o sustento que lhe faltava. Isso ele pretendia não saber.
Por isso o tinha posto numa "escolinha". E agora tambem de lá vinham os problemas.
Falta de dinheiro para os pagamentos. E as suspeitas de que alguma coisa estava errada com o filho a crescerem.

Estava para falar. Fiquei-me a ouvir.

Tinhamos a mesma idade, andámos na mesma escola. Corremos nas mesmas ruas e conhecemos as mesmas pessoas. As nossas familias e as nossas vidas tinham-se cruzado.
Poderia ser a minha história.