Voar

Era preciso, talvez, morrer para poder respirar melhor.
Esvaziar todo o ar dos pulmões, poder enfim levitar.
Deixar que tudo passasse a nada e construir assim dum novo fôlego.
Dum ar novo, surpreendentemente novo.

Fê-lo então e prosseguiu o caminho.
Atrás de si as pegadas suavizavam-se.
Voava por fim. O sonho tornara-se real.
Sorveu todo o ar que pôde e voou mais alto.

Soube então que podia voar quando sonhasse e sonhar quando voasse.

Rosa


Classificados- Rosa

Escrevi o teu nome na linha-férrea,
para que o pudesses ler.
Mas tu passaste a cem à hora
e sem tempo para o ver.
Fiz outra tentativa
e escrevi no alcatrão.
Mas nessa tosca avenida,
não passa o teu avião.

Tens um nome delicado,
não se pode escrever.
É preciso entrar em ti
para te poder conhecer.
Não é nome que se diga,
não é nome de mulher.
É da cor do teu vestido,
é do teu jeito de ser.

Em poucos dias toda a cidade,
estava pintada de Rosa.
E por todos os lugares,
lia-se o teu nome em prosa.
Mas de ti nem um sinal,
nem sequer uma notícia.
A tua ausência prolongada
era já caso de polícia.

Tens um nome delicado,
não se pode escrever.
É preciso entrar em ti
para te poder conhecer.
Não é nome que se diga,
não é nome de mulher.
É da cor do teu vestido,
é do teu jeito de ser.

Tentei só mais uma vez,
escrever-te na terra molhada.
E da noite para o dia,
eras uma semente germinada

Ah! As palavras...

O duplo sentido das palavras...
As palavras que se perdem, as que se não dizem, os silêncios que ficam por fazer-se.
As entrelinhas que nascem nas coisas simples e directas...

As palavras são mais que frutos. São semente pródiga e ás vezes de natureza incerta.

Belas e sedutoras, dizes bem. Encantadoras de mentes, por isso nos perdemos nelas e por elas. Mas sem elas cairiam as rotas que nos atravessam e perdidos nos gestos e nos olhares, no tacto e nos cheiros, cairíamos zonzos na embriaguez dos sentidos.
Elas dão razão ás coisas. E ligam-nos, dão-nos sentido.

Ah! As palavras...

O mar

E o cheiro do mar invadiu a carruagem, forte e intenso. O riso dos miudos, carregados de baldes e bolas, os rostos bronzeados, cabelos ainda molhados e os restos de praia nos corpos meio nús veio com ele.

Ah e o cansaço... O cansaço que se abrigava nas pálpebras, espreguiçava-se agora e fechava os olhos d'alguns. Encostavam-se os corpos e o sono instalava-se.

Depois, ficou o silencio quando se foram. O mar deixou-se ficar viagem fora.

Num canto de mim

Há um canto de mim que ás vezes quer saber de ti.
Procura-te nas pistas das conversas, deixadas de forma insuspeita.
E é assim que te sei.
Sei-te debaixo da chuva que daqui espreito através dos vidros que me separam de tudo, de ti também na beira mar que também aqui tenho.
Imagino-te a correr praia fora e roupa colada ao corpo como as memórias que de ti conservo.

Deixei por ler os livros de que recordo os títulos e os filmes que me enchem o imaginário nos diálogos que nasciam entre nós. Um dia partirei á descoberta.

Por agora, estou tranquila. Sinto que quando partiste, o fizeste para eu encontrar o meu lugar e tu o teu.
Porque cada um tem o seu. E nem sempre é aquele que pensa ter alcançado.

Boa viagem.

A tua pequena dor


Rui Veloso- A tua pequena dor

A tua pequena dor
Quase nem sequer te dói
É só um ligeiro ardor
Que não mata mas que mói

É uma dor pequenina
Quase como se não fosse
E como uma tangerina
Tem um sumo agridoce

De onde vem essa dor
Se a causa não se vê
Se não é por desamor
Então é uma dor de quê?

Não exponhas essa dor
É preciosa é só tua
Não a mostres tem pudor
É o lado oculto da lua

Não é vicio nem costume
Deve ser inquietação
Não a nada que a arrume
Dentro do teu coração

Talvez seja a dor de ser
Só o sente que a tem
Ou será a dor de ver
É dor demais

Certo é ser a dor de quem
Não se dá por satisfeito
Não a mates guarda bem
Guardada no fundo do peito!

Á espera...

Tudo lhe acontecia de forma inesperada. Nos momentos em que repousava tranquilamente e nada esperava.

Lembrava-se dos tempos em que perseguia e procurava ansiosa em cada gesto e olhar a resposta para os seus desejos. E de se atirar sem rede para situações de que saía magoada porque queria um “não sei quê”. Procurava uma qualquer resposta para um vazio que sentia e não queria.
Sentava-se no banco da vida de olhos perscrutadores em riste pescando tudo e todos na sua rede, preenchendo com nadas um nada cada vez maior e mais dorido.

Só quando se levantou e andou por si. Olhou em volta e viu o que nunca tinha visto. Se deixou maravilhar, chorar e rir, tudo começou a acontecer.
Ou pelo menos começou a percebê-lo. Tudo lhe vinha calmamente parar ao lado. Como nunca supusera. Os sonhos deixavam de o ser. Construía-os reais de formas que nunca imaginara. Dos dedos escorriam-lhe agora imagens e palavras que não eram já pesadelos. Um novo mundo acontecia.

Porque deixara de esperar.

Mais alto...

Sobem-lhe em ondas as lágrimas que não pode já conter.
Longe de todos espraia a dor que sente dentro de si.
Precisa do espaço que ela lhe rouba a cada instante que passa.
Pressente outras que virão.
Apronta-lhes o canto que sabe, delas.
No peito que inspira e expira com dificuldade estes sentires.

Julgava-se longe de mágoas quando sentira a planura invadi-la.
Sentira-se forte e inexpugnável. Era frágil, nada mais.

Tudo volta a ser como dantes. Como carne em ferida aberta.
Dorida como já não se lembrava. Nem sonhara voltar a ser.

Renuncia ao que quer porque quer melhor e não sabe o que é.
Dulcilena deixa-se abater quando quer ainda lutar.
E morre na paz fétida em que se deixa cair.

Debate-se em inutilidades.
Fazer ou não fazer. Falar ou não falar.
A vontade é uma. È o coração que lha dita.
Deixa-se levar pela razão e sofre.
Deixa-se ficar e nada faz.
A não ser deixar o sofrimento crescer a cada minuto, cada vez mais.

Nunca saberá o que fazer nem o que deixar falar.
Se o coração, se a razão.

Mais alto fala a dor!
E consome-se.

E os homens...

Casara muitas vezes e de todos se descasara. Não com a leveza que as palavras têm, mas com o peso que apesar de tudo encerram.
Casou de todas as vezes para sempre e descasou para nunca mais. Fazia as coisas todas assim. De forma definitiva.
Por mais dor ou tempo de agrura punha-lhes ponto final.
Não lhes virava as costas. Não se escondia delas embora ás vezes lhe apetecesse fazê-lo. Afundava-se então num estado de miséria indescritível que sacudia cansada após algum tempo. Era das memórias desse tempo que fugia para abraçar outras formas de estar com quem lho merecia. Com ela própria também.
Não acolhia ódios, passava-lhes ao lado e não lhes dava ouvidos. Preferia deixar dentro de si os amores e largava os desamores em lugares perdidos e sem memória.
Os homens faziam parte da sua construção enquanto mulher.
Era agora o que fizeram dela pelo bem e pelo mal. Era a soma do que de si fizeram e do que sempre fora. A todos devia da forma que dera. Também neles se perdera da forma que se encontrara.
Ah! Os homens…
Uma parte da vida de Dulcilena. A das paixões e dos desencantos.
Dos encontros e desencontros. Das almas gémeas e das que nem por isso…

Em cada homem viveu uma vida diferente e conheceu-se doutra forma.
Foi tantas mulheres como quantos homens teve. E mais seria se mais tivesse.
Era essa imprevisibilidade que ela descobria e de certa forma fascinava quem a tinha. Descobria-se sempre outra. Nunca sendo a primeira ou a última.
Todas as vezes e sempre eram como a primeira. A descobrir, a explorar, a sondar por território em constante renovação.
Não soube nunca mais que ninguém sobre os homens. Também eles eram, como ela, diferentes e imprevisíveis. Nunca deixou de acreditar na felicidade com um companheiro. Por isso continuava a casar. Um dia… Talvez fosse para sempre.
Dulcilena ficava bem com os “sempre” que ia tendo. Achava que “sempre” era enquanto durasse. E valesse a pena. E aprendesse de si e dos outros. O importante era não perder a esperança e a vontade de ir mais além de si própria.

Talvez

Talvez se cruzem de novo por aí num sítio qualquer.
Ou talvez não.
Talvez seja mesmo melhor assim.
Nunca mais se encontrarem.
Fazerem de conta que nunca se viram e até se apaixonaram.
Fazerem de conta que os beijos que deram não eram de amor.
Que quando se abraçavam, não era para acalentar a doçura dum sentir que crescia sem barreiras e sem medidas...

Talvez seja melhor inventar que não houve passado. Que a vida é só presente e futuro. E que nada se sabe ainda. E que só agora se começa a construção. E tudo até agora é um buraco imenso. E que daqui para a frente tudo é possível. E que daqui para traz é ilusão.

Talvez seja melhor inventar que não há passado.

Naquele Verão

Naquele Verão não saiu de casa.
O mar não a chamou e o calor não se fez sentir como nos últimos anos. Corria uma aragem diferente quase fria. Precisava do aconchego da casa e deixava-se ficar aninhada sem precisar doutro qualquer pretexto.

Hibernava fora de prazo. De mangas arregaçadas mas de braços caídos porque lhe faltavam as forças. No fundo hibernar era isso mesmo. Deixar-se estar. Á procura duma energia latente num espaço invisível mas presente. Para ser maior num tempo que estava para vir. Maior e mais forte.

Haveria outros Verões. O mar continuaria lá. O calor voltaria.

Mesmo que ela não estivesse, ficavam as pegadas que nenhum vento conseguia soprar apesar de ténues. Porque quando hibernava era mais ela e despenhava-se em ecos de si num mundo que florescia mesmo em Invernos desconcertados

O ódio necessário

O livro estava na prateleira mesmo ao nível da vista.
O título levava-me á viagem que nunca soube fazer. Agarrei nele, comprei-o e devorei-o.
Não pela sede do ódio que não conhecia, mas pela vontade de perceber porquê.
Porque teremos de odiar para avançar e não somente perdoar?
A pouco e pouco percebi que o ódio de que se falava era a ponte para o distanciamento e a salvaguarda do amor-próprio.
Não era o ódio de morte de que ouvia falar mas aquela pequena dose que tira de cima de nós todas as culpas. A assumpção de todos os erros e falhas.

Sabia que me afastava verdadeiramente das pessoas quando deixava de lhes suportar o cheiro e a náusea se entranhava em mim. Quando toda a graça deixava de ter piada e a presença me angustiava. E era tudo quanto sentia.

Nunca soube ir para além e afastava-me silenciosamente sem lhes desejar mal algum. Sabia que se estivessem bem eu também estaria.
Era assim que pensava e isso bastava-me.
Até um dia isso deixar de ser suficiente e precisar de algo mais para me afastar verdadeiramente de quem me fazia mal.
Mas nunca o ódio. Nunca o aprendera. Não sabia viver com ele. Nem mesmo o que era. Achava sempre que odiar era matar alguém cá dentro e sentir a culpa desse crime. Que trazia dores maiores e não atenuava em nada as que tinha até então.
E deixava-me encher de culpas de sentimentos de frustração e de coisas mal cumpridas. Do sentimento de falhar sempre. Por minha causa. Porque deixava que os outros me fizessem sentir assim. Anulava-me e perdia-me de mim.

Naquele dia, ao ver o livro, ocorreu-me que precisava de odiar. De sentir mais por mim, de cuidar de mim. E o ódio traria a resposta.
O ódio necessário. Não mais que isso.
Para enfim cumprir o luto.

O ódio necessário, Jeammet, Nicole, Colecção Margens, Editorial Estampa.

O exercício


De Rodrigo Leão

Desejo antigo

A morte era um desejo antigo que lhe habitava as entranhas.

A vida era um ofício difícil do qual não percebia ainda as regras.

Sabia da morte e do que sentiria. Um dia quase por lá ficou.
Conheceu-lhe o rosto e a paz que dele emanava. Sentiu-se serenar por fim.

Mas tinha prazos e compromissos que a faziam ficar embora sentindo o desejo de partir.
Cumpria dia a dia, passo a passo, a rotina que os tempos lhe traziam.
Valiam-lhe os sorrisos e os abraços de quem amava e só por eles não se deixava mergulhar no desejo que crescia cada vez mais forte.

Mas quanta vontade de se deixar ir! E tanta coisa ainda a fazer!

Na dura aprendizagem da vida, perdia-se em caminhos de tristeza e amargura que disfarçava (e sabia tão bem fazê-lo!) nos sorrisos que plantava no rosto.

Um dia, não muito longe, deixará que o desejo a possua e o sorriso que agora força, virá ligeiro e aberto.
Porque afinal, a morte é um desejo antigo que lhe habita as entranhas.

Com verdade e sem omissões

Fala-me de ti se quiseres e quando quiseres. Sabes que te escuto embora ás vezes pareça viajar.
Só te peço uma coisa: que sejas tu, inteiro. Com verdade e sem omissões.

Não precisas que gostem de ti se não o fizeres tu mesmo. De inventar outras vidas se a tua não cumpriu os sonhos que dela fizeste.
É melhor que gostem de ti pelo que és, com todos os teus defeitos e atavios. Com tudo o que a vida te deu e ensinou.
Preferível a gostarem de alguém que nem tu próprio reconheces e em quem tropeças a cada instante.
Porque nos contos e enredos que fabricas te enrolas e sufocas, levando ao fundo contigo aqueles que te amam.
E só há uma versão na tua vida que vale a pena e é real. Todas as outras são de usar e deitar fora com os pedaços quebrados dos corações que as viveram.
Enfrentar a realidade e mostrá-la quando apetece ser outro, é um acto de coragem que muitos não suportam e por isso fantasiam.

Deixa-me então ouvir-te de dentro de ti. Quem sabe não te direi as palavras que precisas de ouvir. Se não o fizeres, nunca o saberás. Continuarás perdido num mundo em que as máscaras acabam coladas nos rostos, escondendo corações que fazem só o que sabem em ritmos descompassados e já nada conhecem do que é sentir.

Fala-me de ti se quiseres e quando quiseres. Sabes que te escuto embora ás vezes pareça viajar.
Só te peço uma coisa: que sejas tu, inteiro. Com verdade e sem omissões.