Já não me doem as palavras

Que digam de mim o que quiserem. Se aliviar quem o quer fazer.
Do que sou, já não me perco. Do que quero, não me afastarei.

Já não me doem as palavras que dizem de mim. Como não me aliviam.
Não pesam mais. Ocas, doutros, sem eco aqui.

Porque sei que não posso ser luz e deixar de ser sombra.
E que nalgumas tardes me alongo nos outros, desfeita de mim.
E sentem de mim o que já perdi. Em pedaços que não sou eu.
Porque vazios. Da luz que dou e em que me esgoto.
E já não sou nem uma coisa nem outra. E nem o que de mim fizerem.

Para lá de todas as palavras, eu, serei sempre o que sou.
Em luz ou sombra.

Laços

Fica a vê-la afastar-se num espanto sempre renovado. Tudo lhe parece novo e único. Sempre.
Como da primeira noite que viveu com ela. A olhar-lhe o sono tranquilo.
Á procura de respostas para as perguntas que ainda não conhecia.
Incrédula do que acabava de lhe acontecer. Um desejo feito milagre, feito gente!
E a construir o caminho que julgava já feito para dentro de si. A dizer baixinho, és minha e eu sou tua!
Até não ser mais preciso. Até que o cordão, que alguém cortara, se ligasse de novo, de forma invisivel mas forte e sentida. E fossem de novo uma dentro da outra. Mas distintas. E á vista uma da outra.
Para o abraço, para o colo, para a troca das palavras e dos afectos a crescer em reciprocidade.

Sabe-a diferente e ás vezes tão igual!
É aquilo que a separa de si que verdadeiramente a define. A faz como é. Única e singular.
O que construiu nela das e pelas vidas dos outros que a rodeiam, fez dela o que é agora. Em cada encontro, tocado ou cruzado. Em cada momento vivido, sofrido. Em cada lágrima ou riso. Em cada pessoa, em toda a gente.
Os desafios, os confrontos, os entendimentos, as semelhanças.
Pertencer ou não. Partilhar ou não. E construir-se a partir de tudo isto como propósito final.
Ser quem é. Claramente. Assumir-se sem afrontar. Sendo só.
Como tão bem sabe fazer.
Em sobressaltos, a dificuldade de viver articuladamente e em sintonia com o que é, pensa e sente. Sempre, mesmo quando a dor é muita .
Aprendeu que prestará contas de si a si própria. A mais ninguém terá de o fazer.
Assumirá as consequências. Ninguém pagará as suas contas.
E é isto que é dela. O que é agora, ainda em construção. Que assume.

Olha-a até não a ver mais. E fica assim, parada sem saber o que fazer.
Não a quer deixar já sózinha.
Tivesse ela um canto dentro de si e embarcaria nele, para a confortar e apaziguar sempre que fosse necessário.
Como há tanto tempo já , ela mãe, a transportou a ela, filha.

Run


Run - Snow Patrol

I'll sing it one last time for you
Then we really have to go
You've been the only thing that's right
In all I've done

And I can barely look at you
But every single time
I do I know we'll make it anywhere
Away from here

Light up, light up
As if you have a choice
Even if you cannot hear my voice
I'll be right beside you dear

Louder louder
And we'll run for our lives
I can hardly speak
I understand
Why you can't raise your voice to say

To think I might not see those eyes
Makes it so hard not to cry
And as we say our long goodbye
I nearly do
Light up, light up

Slower slower
We don't have time for that
All I want is to find an easier way
To get out of our little heads

Have heart my dear
We're bound to be afraid
Even if it's just for a few days
Making up for all this mess

Decisões

Desde muito cedo, logo que achei possível, deixei nas mãos da Margarida decisões simples. Gostava de a fazer pensar e tinha curiosidade em ver até que ponto ela conseguia ajuizar e acertar nas decisões.
Surpreendi-me sempre. Mostrava uma cautela e um cuidado invejável. Pesava tudo com muito cuidado. Deixava muitas vezes de lado as coisas que lhe garantiam um maior prazer em troca da satisfação dum dever cumprido.
Pedia-me sempre ajuda, que não lhe negava. Ponderávamos muitas vezes em conjunto as situações. Mas era a ela que cabia decidir.
Muitas vezes lhe via tristeza. Mas o resultado final acabava por compensá-la. E então, orgulhosa, dizia-me " Ainda bem que tomei esta decisão, não estou nada arrependida!"
Era a leveza do resultado das suas decisões que a empurrava para o caminho certo. E os passos pequenos que dava ainda preparavam-se para crescer com alguma segurança. Conhecia os caminhos, porque tinha o cuidado de os tentar perceber ainda antes de os calcorrear. Levava o seu tempo nas decisões. Ás vezes quase se perdia na ânsia da resposta. Mas não tomava atalhos.
No fim, sabia que era ela o motor da sua vida. E que era capaz! A ninguém devia o que alcançava.

Um dia, confessou-me que esta minha atitude a tinha feito sentir maior, mais importante. Crescer. Mas que tinha sido uma das coisas mais dificeis que eu lhe tinha "deixado" fazer.
Ser livre, poder decidir, parecia ter-lhe facilitado as coisas. No entanto foi o contrário que aconteceu. Tudo começou a ter peso e valor. Conta e medida. Cada acto seu seria reflexo em si ou nos outros. E não porque lho mandassem fazer, mas porque ela o escolheu fazer!

Ela tinha na sua mão o poder da sua vida e dos seus actos. E por consequência a dos outros.
E era tão dificil, tão pesado e enorme ás vezes!

Tenho agora o dobro da idade dela. E sinto da mesma forma!
E ás vezes apetece-me que sejam os outros a decidir. Não para que sejam eles os responsáveis.
Mas para poder ser só a menina obediente que faz o que lhe mandam sem pensar.
Porque muitas das minhas decisões me deixam triste e são em prol dum bem maior, que não é o meu!
E só se torna meu se souber, que apesar de tudo, alguém fica feliz!
Porque assim terá valido a pena.
Se carregar na memória gente feliz, todas as minhas decisões terão sido bem tomadas, sei disso!

Despedida

Há muito que fazia em mim esta despedida. Necessária.

Porque o silêncio cerrado que interpuseste no meio de nós, construiu um muro que não sei contornar.
Porque assim, de tão pesado, te levou para longe aqui tão perto.
É vital que me despeça de ti ainda que te queira comigo.
E sei, que dizer que me esqueci de ti, seria mentir. Porque as lágrimas que caiem, quando em mim ecoas, são prova de que existes ainda cá dentro .
Mas com desejo de te perder, para não te sentir mais assim.
Um desejo de que te vás. E de que a tranquilidade que em tempos senti, volte de novo a este peito que se inquietou sem sentido.

Amordaço-te em mim. Mas dou-te asas.
Para de mim voares, para longe e sem regresso, em paz.

Não. Não ficarei a ver-te partir. Como me fiquei a ver-te ficar.
Ausentar-me-ei na despedida que quero breve. Não darás conta de mim.
Como há muito tempo, não dou conta de ti!

Pedras

Chegou á aldeia de malas carregadas. Arrastava-as de tão pesadas.
Atrás perdera a família numa encruzilhada qualquer da vida.
Veste o negro chumbo da dor de tanta saudade e arrependimento.
Sente agora que na ilusão dum amor, que julgava eterno, perdeu quem a amava, num mar de dor.

No adro da igreja onde todos se juntam, procura olhares de entendimento e vozes de conforto. Fala de si a quem a ouve e pensa, quer, redimir-se assim. Porque lhe pesa uma qualquer, enorme, culpa.

Procura a trajectória da pedra, que paira no ar, de quem a possa acusar. Quer ser atingida. Penar. Para sentir alívio.
E quando julga paga a pena, decide passar a punir.

Agora a sua causa é maior. Sente-se também maior. A culpa que sentiu e pagou, vai fazê-la obrigar pagar, a quem ainda não o fez.
Porque se julgou e se fez julgar. Sente o poder de o fazer.
Munida das pedras de que se tornou alvo, atira-as sem dó. Sonha que assim ganhará o que um dia perdeu.
Fá-lo-á na aldeia a que chegou, e ás portas a que bater nas aldeias por que passar.

Pensa-se já mais leve, melhor. Julga nos outros o que viveu em si. Mede os outros com a sua medida. Faz dum mundo enorme um mundo ao seu tamanho.

Não sabe ainda que em vez de culpas, carregará pedras!

Se fosse chão...

Seria de areia se um dia fosse chão.
Areia em leito de rio, de águas leves e transparentes. Areia de mil cores, em mil pedaços , fina e sedosa. Para acolher teu corpo, meu amor, e deixá-lo em mim repousar. Num colo doce e terno, moldado por ti.
Olharíamos juntos as estrelas e brincaríamos com os fios de luz com que o sol nos enfeitasse ao acordar.

Quando te fosses, se fosses, a água e a brisa ondulante, devolveriam-me a forma que sempre tive, ajeitando-me em suaves carícias.
Os teus segredos, esses, permaneceriam secretos, envoltos de mim.
Se por ti chorasse, meu amor, seria fonte de um rio que nunca morreria de ti. Por mim. Porque em mim se renascia.
Saberia de ti pelos reflexos em mim plantados e pelos ecos do vento viajante em visitas ansiadas. E só queria saber-te bem!

Houve horas em que sonhei ser pedra, lage grande em clareira de pinhal. E um rio a cantar-me melodias de toda a vida.
Seria cenário e testemunha. Só! De ti, alpinista aventureiro, em mim.
Nesse tempo, não queria sentir. Seria dura, fria e sem fim...

Agora sei que o que o trago e levo de ti é o que sinto, dentro de mim.
Por isso, se fosse chão, seria de areia!

Ás vezes mando no tempo

Ás vezes mando no tempo!
Porque me é necessário. Empurro os amanhãs para ontem, com as rajadas fortes dum vendaval, agarradas a um querer de vontades forte.
Assim afasto as dores, tirando-lhes o tempo que me querem tirar!
Deixo-as presas num espaço, fechado com chaves que nunca mais vejo, porque perco.
Porque quero!
Então vivo em espaços intercalados. Porque quero viver. E não me posso deixar amargurar.
Porque a muralha que construo, em mim, diáriamente só pode estar de pé!
Sólida. consistente. Para abrigar e proteger quem amo.

É do sono que me sirvo. Dum sono que cai pesado em mim. E julgo, então, que é só mais um pesadelo. Que acordarei noutro dia e tudo será passado.
Que posso respirar de novo tranquila. E que as dores que senti no peito, foram culpa dum braço mal posto, enquanto dormia!

Mas quando mando nele, no tempo, também o sei agarrar. E fazer dele eterno!
Prolongá-lo para além do possível. Fazendo das coisas razão para continuar aqui.
Com a força e a energia que são necessárias.
Neste tempo que me foi destinado. E aos que comigo o vivem. Numa partilha, afinal, de tempos inteiros!



I've been let down


Mazzy Star- I’ve been let down ( do blog My Fly Away)

I've been let down
And I still comin' round
I've been put down
And i'm still comin' round for you
Comin' round for you

Take away everything that feels fine
Catch a shape in the circles of my mind
Make me feel like i belong to you
Make me feel even if it ain't true
Catch a train on a silver afternoon

A thousand miles and i'm getting there too soon
Take me there when i should be going home
Tell me why i still feelin' all alone
I've been let down

Quatro anos

Á frente tem uma lista de pessoas a quem quer agradecer. Tem-na vindo a escrever já há dias. Não quer esquecer ninguém.

Foram quatro anos longos. Que em muitas alturas lhe pareceram intermináveis. Cheios de lutas, de atropelos, cansaços e prazos. Vencidos em extremos que nunca julgou aguentar.
A todo o momento achava que não conseguiria. O cansaço físico, o psicológico, as condicionantes tão presentes, as faltas sentidas... Tanta coisa! E estava já aqui.
E mal podia acreditar que agora escrevia, para juntar ao trabalho final, os agradecimentos a todos que de alguma forma a acompanharam.

De vez em quando desenha-se um sorriso. Pára e deixa-se levar nas memórias que vêm até ela. E uma lágrima lava o sorriso. Porque tudo estava já lá para trás.

Escreve e apaga, repete de novo. Não, não posso dizer isto. Mas era importante que ficasse.
Talvez contar quando no meio de horas perdidas, com a cabeça no meio dos livros, alguém se levantava e perguntava, quem quer café? E uma folha circulava por todos. Cada um pedia o que queria. Como num bar. Era a hora do "cunbíbio". O cigarro fumado á pressa e o café para atrasar sonos.
Onde é que já vais? Já leste isso tudo? Vou ter de me despachar para te agarrar. E voltavam ás mesas cobertas de livros e papeis. Trocavam apontamentos. Os melhores, os mais bonitos eram escolhidos. Tudo servia para fugir á lembrança da tarefa árdua...

Agora já no fim, prevendo a falta de tanta canseira, prometeram estudar o código da estrada. Fazer revisões e tirar apontamentos. Logo que acabem o curso. E depois... "cunbíbio"!

Hoje sonhei

Hoje sonhei. E sei do sonho que sabe da minha vida e me sabe também.

A noite, dentro da noite do sonho, começava-se a fazer-se devagar. As cores que se punham, alongavam-se para além do espaço que alcançava.
Puxavam-me até si. Lentamente. Flutuava...
Enfeitiçada deixei-me abraçar nos castanhos, laranjas, amarelos torrados, que me aqueciam e deixavam leve. Como se fosse um balão e voasse ao ritmo de brisas suaves e ternas.
Música, sim , havia música. Não me lembro qual. Mas tudo era sintonia. Era a que deveria haver!
E gente, havia gente também. Que rodopiava em coreografias perfeitas. Alguns rostos familiares. De memórias felizes.
De coisas repetidas, vividas doutra forma. Senti-lhes as vozes e as palavras ganharam sentido.
O mar estava lá. O meu mar. Dum pulo alcancei uma ilha donde tudo podia alcançar. Via sem ser vista.
Apeteceu-me guardar tudo e tanto para sempre. Procurei a minha máquina fotográfica. Vasculhei tudo que nem imaginava ter levado. Não a encontrei.
Tinha de voltar atrás. A um tempo e um sítio onde ela estivesse. E correr. Regressar a tempo do tempo não ir embora. Aquele tempo!
Atirei o pulo. Fiquei no vazio. O mar perdia-se num abismo que não estava lá antes. Tudo estava distante e pequeno. Restava-me a queda. Tudo acabava ali, assim.
Impossível voltar atrás...

Lembrei-me no sono que sonhava. Deixei-me domir, mas fazer do sonho o que queria.
Voltaria atrás. Desceria mil degraus ou o que houvesse a fazer. Iria buscar o que nunca deveria ter deixado para trás.
Fi-lo num corropio incansável.

E a preguiça da noite a desfazer-se. E a vida a acontecer.

E eu corria e passava ao lado das coisas sem as ver. Para agarrar um momento que já não era. Que nunca mais seria!

Agora carregá-la-ei comigo sempre. Disse-mo o sonho.
Testemunhará tudo e fará eco das coisas que sei e vivo.
Porque não posso editar a vida como o faço nos sonhos. Porque tudo o que acontece tem um único tempo.
Tempo que não se compadece do valor que esquecemos de lhe dar. E que se esgota. E que nunca se repete.

Estar de corpo inteiro, mala feita, bagagem completa, é o desafio!

Prisioneiro duma janela

A principio abre a janela a medo. Mas com a vontade de descobrir, o que está do lado de lá, bem acesa. O que ouve dizer deixou um rastilho que já não se apaga.
Não sabe ainda quem espreita, nem quem lhe bate á porta ou assoma á janela.
São conversas sem graça e sem sentido que lhe preenchem os tempos vagos na azáfama do dia -a-dia.
Conversas que a pouco e pouco tomam volume e conteúdo.

Num mundo em que todos podem ser o que quiserem ou apenas o que são.

Acostuma-se rápidamente ás investidas e brincadeiras que começam a fazer-lhe bem.
Agora também tem histórias para contar dos habitantes de janelas que acenam á sua.
Troca-as, conta-as, exibe-as. Todas trazem novidades e todas lhe afagam o ego adormecido nestas coisas dos afectos.

Já não sabia a cor dum elogio. O sabor dum piropo. O aroma dum carinho.

Perdera-os num tempo em que outros valores lhes foram tomando lugar.
Acomodou-os no velho sofá da sala onde adormece a ver televisão enquanto a mulher cuida das ultimas lidas da casa.
Ali estava tudo já arrumado e definido. Neste quadro em tons pastel, empoeirado, de que quase não se dá fé, arrumou-se uma vida sem brilho nem lustro.

Procura agora na janelinha mágica que se abre para outros mundos que não o seu, as cores fortes que deixou esbater e não sabe poder restaurar.

Aproxima-se cada vez mais de quem está do lado de lá. Com a mesma velocidade com que se afasta de quem tem ao seu lado.

Em casa onde havia silêncio, reacendem-se os diálogos. Mas em confronto.
Porque se ausenta mais. Na fugida para os espaços que lhe permitem abrir janelas.
Pelas desculpas esfarradas que inventa, quando atende o telefone, para ouvir quem lá conheceu.
Porque nos seus olhos desfilam imagens de gente que ninguém mais conhece. E há sonhos plantados, á espera do cuidado diário, no peitoril doutras janelas
Porque da descoberta já partiu á conquista. Já foi conquistado.
Sente-se um homem novo. Renascido e diferente.

Criou asas. E gira tonto á volta duma luz pela qual se deixa encadear.

Não percebeu ainda que está prisioneiro da janela que abre todos os dias ansiosamente.
Que nunca vai ficar satisfeito. Que vai querer sempre mais e mais.
Porque haverá sempre janelas a abrir-se. E ele não terá coragem para as deixar fechadas.
A curiosidade fá-lo-á espreitar. E a vontade de ter sempre mais e diferente.
Porque há muitos mundos para explorar através e além da sua janela.
E nunca mais quererá voltar, pousar.

Um dia se não tiver cuidado, cairá zonzo de tanto voo e de asa chamuscada.
Oxalá uma brisa o leve ao parapeito dalguma janela encostada...

(Quem sabe aquela de onde não deveria ter espreitado!)


O menino dos sonhos

Todos os dias traz consigo uma história. Para se distinguir dos outros, para o tornar maior. Ou mesmo só igual. Esquece-se do que lhe pedem e parte nas histórias que nascem ali das coisas que sonha. E dá-lhes tamanho. Um tamanho que cresce á medida que as mãos plantadas no espaço entre os seus e os nossos olhos vão ganhando distância até ser impossível.
Tão grande?!

É mentira, É tudo mentira. Dizem os outros.
Levanta-se e enfrenta-os. Mentira?! Estiveram lá? Viram?! Olha para nós em desespero.
Acalmamos uns e outros. A ele dizemos, talvez não tão grande, a memória engana-nos. Aos outros pedimos que o deixem sonhar. É o que tem.

Veste de novo as asas do sonho e os olhos brilham. Sabemos que são os únicos tempos em que brilham. Em que sonha que vai arranjar rádios, bicicletas. Ou vai pescar tainhas enormes! Que as cobras que vê são gigantes! Que vai viajar até Lisboa onde tem parentes ricos. E amigos! Muitos! E que ri também.

Nas asas dos sonhos que ele tem, é um menino feliz! Como lhas podemos cortar?
Porque é mentira. Os outros têm razão.

Que me perdoem todos mas eu acalentei-lhe os sonhos, tentei dosear-lhe as mentiras que contava para si próprio... Mas sentia-o tão feliz!

Aqueles olhos!

Lembro-me dos olhos dele. De sentir o que ele sentiu.

A vergonha de viver assim. De ter tão pouco e tanta miséria. De querer tapar o bébé que trazia ao colo nu, sujo, com uma manta que perdera a cor nas nódoas que a cobriam.
Em pé, atrás do portão que nos abria, de costas para um pátio onde algumas galinhas debicavam no meio de estrume espalhado pelo chão,olhava para nós sem saber o que fazer.
Ao fundo nas velhas capoeiras desocupadas, viam-se o que agora eram os quartos dos outros membros da familia.

Viviam ali naquele pátio, desde que há anos o pai "enganara" a mãe e a engravidara.
Ela era a "tolinha" da terra, rapariga forte, roliça, engraçada. Ele tentou-se. Depois sentiu-se responsável. Tomou conta dela e da prole que dali veio.
Protege-a como se cuidasse da penitência atribuida á culpa do que fez. Fá-lo-á sempre. Até ao fim. Sem um queixume. É a sua cruz. Ninguém o desviará dos seus propósitos. Ninguém fará mal aos seus. Será o seu fiel guardião. Sempre. Com todo o amor que tiver para dar.

Tem mais dois irmãos ambos com deficiência mental. Só ele sabe o que é viver assim.
Só ele conhece a dor. Só ele vê a diferença e sente a vontade de ir para além do que vive ali. E não carrega a culpa. Porque não a tem. Tem os sonhos da idade dele e o desespero duma vida assim.

Sente a vergonha que lhe vejo nos olhos e o desconforto de se ver assim e querer ser outro noutro lado qualquer!

Pudera eu voar!


Sequência do Filme “Mar Adentro"

Porque mesmo num corpo parado e morto os sentimentos continuam a sua vida, os sonhos que nascem deixam de o ser nos pesadelos em que se transformam.
As pequenas distâncias tornam-se inalcansáveis.
Os pequenos gestos impossíveis.
Os toques desejados são desejo, só. Sempre contido porque impossível.
O abraço, o colo, o beijo...

E os dias perdidos contados e descontados em agonia. Cada vez mais e mais!
E os sorrisos, e as pequenas coisas a perderem magia e a ganharem dor e lonjura maior!
E o desejo das noites e dos sonos e do sonhos em que a vida se vive como se deve viver.

E acordar de novo. E querer para sempre dormir. E voar para lá das coisas.
Para ser o que se foi. O que se é.
O que se deve ser quando se vive. Inteiro. De corpo e alma.
Com tudo a que se tem direito!

O peso de se ser amado

Sabia de ter lido do desconforto de se ser amado sem se poder amar em troca.
Do peso. Da carga de se sentir a espera do que não se tem para dar.
Da sofreguidão contida nos gestos e nas palavras de quem ama sem ter retorno na esperança de o alcançar.

Sabe de o sentir agora de forma viva, presente e de lhe tirar a paz.
Sabe do peso que carrega porque gosta de se dar. No mesmo peso e medida. Com a mesma intensidade.
Na impossibilidade de o fazer sente-se parte só do que é. E luta por ser o todo que precisa ser, sempre.
Fica-se em turbulência. Sonha-se num pesadelo que adivinha a incapacidade de se entregar e amar da mesma forma.
Instala-se uma guerra a que pede tréguas. De forma desesperada. E urgente.

Procura a paz. Sem pesos.

Lost


Michael Buble - "Lost"

Desacerto

Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
Düa cousa confio e desconfio.

Voo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço.
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.

Queria, se ser pudesse, o impossível;
Queria poder mudar-me e estar quedo;
Usar de liberdade e estar cativo;

Queria que visto fosse e invisível;
Queira desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo!

Camões

Sempre invejei quem de mim soubesse melhor que eu. Quem dissesse de mim melhor do que eu poderia alguma vez fazer.
Não inveja de querer mal, mas inveja para querer ser assim também.
Da mesma grandeza sendo tão simples assim. Sinto-me criança em ânsia de crescer no colo de quem me embala falando-me assim.
Percebo-me melhor porque me sei nos outros. E sei que sendo estranha também sou igual.
Quando encontrei este poema por aí, na mesma altura em que me sentia assim, serenei.
Foi o eco das coisas que perdia num vazio que teimava em crescer cheio de desacertos que me devolveu a paz. Sentir-me igual, humana ainda, foi a resposta a que nenhuma pergunta fiz e que se enrolava no ar, enrolando-me também. Em rodopio. Pondo-me tonta e sem rumo.

Que bem que os poetas nos falam! Que bem legendam os sentires que nos habitam em transgressão. Porque se estranham de tanto sentir á toa. Sem rumo.

Impotente

Em tempos entrecortados foram falando e sabendo de si. Aprenderam a esperar um pelo outro para longas conversas, por noites adentro.
A distância, enorme, que os separava não se sentia. Nunca!
De tão próximo se sentirem.
Cresciam as histórias, desvendavam-se os segredos. Riram, choraram a par. Por muito tempo!
Com a intensidade das coisas que crescem sem paredes e sem rumos.

Um dia adoeceu, deixou de aparecer. Uma mensagem, um telefonema distante, era o que restava das conversas que já lhes faziam falta.
Quando voltou não era mais o mesmo. Carregava consigo uma sentença de morte.
Um cancro do pulmão.

Lembra-se de ele lhe dizer entre lágrimas o quanto se arrependia por um dia há, muito tempo, ter desejado a morte. Quando agora a vida lhe era tão necessária. E por tanto querer viver ainda. Porque agora as razões eram muitas e só podia ser assim.

Não soube o que lhe fazer nem o que dizer. Mas a dor que sentiu foi imensa...
Sentiu que devia fazer qualquer coisa. Que era imperativo!
A impossibilidade de o fazer doeu-me ainda mais. Maldisse a distância. E o saber que o seu abraço não o tocaria.
Arrependeu-se das coisas que não lhe deu. Do amor que ele lhe tinha pedido. E sentiu-se impotente. Pequenina. Como nunca e quando não podia.

Hoje pediu para falar com ela. Em despedida.
Não soube fazê-lo. Ainda não.
Disse-lhe coisas banais. Distanciou-se. Estúpidamente.
Perdeu-se num labirinto de emoções que não sabia nem queria enfrentar.
Sentiu que o abandonou ainda antes dele ter partido. E sentiu raiva dela.

Sentiu a necessidade urgente de ser grande. E para os outros maior.
E para ele muito mais!

Mas nada aconteceu!