Até o silêncio acordar


Chegava-lhe ao nariz um cheiro nauseabundo. Não sabia de onde vinha nem o que era. Tornava-se insuportável. Nem o aconchego dos lençóis e o calor que o corpo já tinha a distanciava da náusea que crescia dentro dela.
Fechava os olhos com força e tentava chamar o sono para se afastar daquele lugar.

A pouco e pouco eles chegavam e aninhavam-se no volume do seu corpo. Eram viscosos e alguns estavam já em putrefacção. Talvez fosse daí que o cheiro viesse. Alguns abriam a boca com os dentes fininhos e afilados e aproximavam-se da sua cara.
Nada fazia para os afastar.
Sabia que vinham de dentro da sua cabeça dalgum lugar onde se criam os medos. E sabia o que fazer. Ficava-lhes indiferente. Acabariam por se cansar e desapareceriam.

Como quando era pequenina e os medos se escondiam em lugares insuspeitos que a principio controlava minuciosamente. Escudava-se debaixo da roupa que a cobria na cama e enovelava-se. Apercebeu-se a pouco e pouco que nada acontecia.
Fingia que não os sentia. Enfrentava-os munido duma força desconhecida. Ignorava-os.
Como agora.

Restava-lhe esperar pela hora do silêncio acordar e os ruídos habituais do elevador que trazia quem tardava e levava quem amanhecia. O carro do lixo, o trânsito a fazer-se grande e a luz que ofusca todos os medos.

Então dormirá.

Tardam sempre as palavras


Tardam sempre as palavras quando delas precisamos.
Secam num lugar qualquer, perdidas em labirintos indesvendáveis.

Na cabeça latejam mudas e no peito debatem-se em fúrias desordenadas. Calam-se na garganta onde não vibram as ondas que lhes dão voz.

Amontoam-se desordenadas, enredadas em si. Caem em catadupa num turbilhão insustentável num poço sem fundo onde nos precipitamos também em tontura desenfreada.

Tanta coisa para dizer e um deserto árido de legendas pela frente… Ou a vista turva, talvez, porque a encandeiam as palavras duma tempestade qualquer.

Só mais tarde, muito mais tarde…
As palavras transbordam de entendimento e já não são necessárias.
Perderam-se no tempo.

Tristeza?

Perguntava-lhe sempre se tinha ficado triste.

Não lhe tolerava os olhos tristes. O brilho inquieto de água prestes a rebentar.
O abandono de corpo e sair para um lugar que não conhecia e temia.

Segurava-a nos braços e não a tinha mais. Desaparecia-lhe.
Ficava-lhe no regaço uma negrura que crescia sem parar.
Ela transbordava, ele definhava. Apequenava-se.
Procurava fronteiras que se extravasavam. Também ele ficava triste.

Que não.
Não tinha sido tristeza.
Tivera de ser assim. Não podiam ser um do outro tanto tempo.
Tanto, podia ser demais.

Tinha saudades. Muitas, ainda!

Lembrou-se das memórias que lhe vieram.
Do homem que sonhou.
Soube porque o guardou naquele instante mágico.
E guardou melhor o segredo que então começou a crescer.

Tristeza?
Bailam-lhe nos olhos duas pérolas. Sem nome.

Amélia


La valse d'Amelie de Yann Tiersen

Podia suspeitar-lhe nos passos miúdos e ligeiros uma forma de viver a vida.
De a encarar sem medos e desequilíbrios mas duma forma segura.
Em pequenos pedaços, pouco a pouco e olhando em frente sem vacilar.
Podia tê-lo feito então quando ainda era tempo e os sonhos cresciam sem prazo marcado.

Nesse tempo corria e olhava outras coisas. Outras que mais longe não se deixavam visitar mas eu teimava em descobrir.

Lembro-lhe a voz de saber todas as coisas.
A voz dos tempos por onde nunca tinha viajado.
E viajava de mão dada nos seus passos pequeninos pelas histórias que não era preciso inventar. Como as que agora conto a quem ainda me quer ouvir.

Sempre me pareceu ser do meu tamanho. Nunca me lembro de ter de levantar a cabeça para a olhar ou de apressar o passo para a acompanhar
Penso que ás vezes me enganava e achava que éramos ambas crianças. Ou mulheres…
Agora acho mesmo que o éramos.

Um dia desapareci-lhe das memórias.
A doçura de sempre continuou-lhe agarrada. O sorriso.
Os mesmos passos. Todos os dias nos mesmos sítios eternamente novos.
Como eu passei a ser.
Deixei de ser a sua menina. Para ser a … Senhora que ela não conhecia.

Quantas vezes lhe agarrei as mãos e procurei os olhos vasculhando sombras ou resquícios de memórias dos tempos que partilhámos! Quantas!?
Em vão.


Acho que te roubei o sorriso, sabes?
Em memória desses tempos. Assim estás sempre comigo.
Mesmo que não tenha aprendido aquilo que trazias dentro de ti.
Guardei-te e todos os dias te devolvo a quem se cruza comigo no sorriso que partilho.
Perdoas-me?

Perdia...

Perdia a cor dos sentimentos. A cor e o sabor que um dia lhes sentira.

Vivera tudo com uma acuidade tísica no limiar quase invisível, imperceptível que a deixava abandonar-se em estados em que ficava perdida de si num universo de fundo caleidoscópico onde as cores e as imagens se desdobravam e as coisas que sentia se multiplicavam indefinidamente duma forma irreal e sempre diferente.

De tantas vezes ficar sem saber de si, partida em cacos que apanhava de mãos feridas e coração magoado, desconheceu-se, morreu. Muitas vezes, repetidamente.


Tinha uma casa de espelhos. De luz. Gostava de a ver reflectida. Gostava que as coisas se olhassem. Fossem outras...Mais.
Não gostava das histórias que os espelhos lhe contavam. Fazia-lhes ouvidos moucos.
Como começou a fazer com tudo.
Sabia que as histórias estavam lá. Mas não tinha de as ouvir.
A dor também existia. Não tinha que a sentir.
O amor? Também. Deixaria que acontecesse e passasse devagarinho.
Não lhe daria confiança.
Acreditar, ter esperança?
Acreditava que tudo acaba um dia. Acreditava que não devia nunca esperar demais. Ou esperar sequer. Assim tudo o que tivesse era bom. E bastar-lhe-ia.

E o que sabia das histórias…. Era que todas tinham princípio e fim.


Um dia acordou assustada com medo de não mais sentir.
Porque sentia agora devagarinho. Com as armas que sem se dar conta tinha vestido. Para não se quebrar nunca mais!

Não alimento saudades

Não alimento saudades. Não sei o que são. Não lhes conheço a cor.
Recuso-me a guardar-lhes espaço dentro de mim.
Ouço-lhes os passos e sei que os ecos ressoam de tal forma que fazem doer a alma de quem as sente.
Por isso as não guardo.
Se as sinto por breves instantes, sacudo-as e lanço-as aos primeiros ventos.
Não me importam a direcção que tomam. Importa-me que se vão.

As memórias, porque ainda recordo, essas ficam.
Sem um querer voltar. Deixo ficar as coisas no sítio onde ficaram em descanso.
Acredito que afinal encontraram o verdadeiro lugar. Se não me acompanharam, tinham uma razão. E descubro a cada dia essa verdade. No espaço que deixaram livre, novas coisas vão crescendo e aprendo a vida de surpresa em surpresa. De braços abertos.

Sem saudade. Nem de ontem nem de amanhã.
Um dia de cada vez, devagarinho. Passo a passo, com a sofreguidão de nada deixar para trás. Só isso.

O Miguel

O Miguel tinha o dom de saber receber as pessoas e a mim encantavam-me as surpresas que ele preparava.

Vivia num prédio antigo numa das ruas estreitas que caminhavam para o castelo. Era preciso subir e perder o fôlego nas escadas de madeira já carcomida para lhe bater á porta. Ali uma imagem esbatida dum santo desconhecido, resgatado ao abandono dava as boas vindas. Abaixo uma prateleira de madeira numa cor inusitada com uma jarra de vidro com velas gastas e flores secas compunha o conjunto.
Em vez da campainha, tocava-se o sino, pequeno enegrecido pelo tempo.
Desta vez, na porta, o Miguel deixara um aviso. Pedia que fosse cuidada e como não pudera convidar os vizinhos que não os perturbasse. Por isso deixava a chave pendurada para poder abrir a porta com cuidado.
Lá dentro já se respirava a azáfama. O Miguel andava perdido no meio dos amigos. E de repente estava ao pé de mim. Era importante que todos se conhecessem.
Cada um devia trazer ao peito uma etiqueta com o nome. E mais importante ainda. Era preciso saber-se se estava sozinho ou acompanhado. Melhor, se era solteiro ou não.
Numa festa em que o Miguel ia apresentar a namorada era importante juntar as pessoas.
Porque ao Miguel não falhavam esses pormenores. Gostava de distribuir quando tinha para dar. Gostava de dar mesmo que não tivesse. Fazia das pequenas coisas, pequenos gestos, mundos impensáveis.
Via-se no seu espaço. Um espaço em que cada canto tinha histórias para contar e segredos guardados. Na poltrona que encontrou despida numa esquina e vestiu de laranja. No louceiro que comprou na feira da ladra e agora é azul-turquesa e se encheu de vasos com salsa, hortelã e outras ervas.
Ou naquela estátua sem cor á espera das suas mãos hábeis, ou não.
Espalhados por toda a casa entre conversa e risos toda a gente se vai conhecendo. Quem vem sozinho já não está. Aqui e ali trocam-se alguns olhares que passam a palavras.
E há etiquetas acasaladas no mesmo peito, nomes de mãos dadas a cruzar a porta ao fim da noite.

Pões-me na gola do casaco o alfinete com a pedra pintada que o Miguel deu a cada uma das mulheres. Sorrio-te. Dás-me a cara. Devo-te um beijo. Era o presente que o Miguel não distribuíra aos homens.