Ashes and Snow


Feather to Fire
Gregory Colbert usou camaras fotográficas e de filmar para explorar interacções extraordinárias entre animais e pessoas. A sua exposição, Ashes ang Snow, consiste em mais de 50 trabalhos fotográficos de grande escala, um filme de 60 minutos e dois filmes "haikus" de 9 minutos. Este excerto é intitulado "Feather to Fire" e é narrado em 3 linguas por Laurence Fishburne (Inglês), Ken Watanabe (Japonês) e Enrique Rocha (Espanhol).

O Sol dentro de nós

Nunca seria de propósito, porque não tinha essa cor na alma.
Se alguma vez magoasse alguém, fá-lo-ia sem o pretender.
Nunca apontou as armas, se algum dia as teve, para alguém.

Conhecia quem o fizesse e só se sentisse bem assim, despejando veneno em quem fosse que se aproximasse. Nunca lhes entendera as razões e sempre lhas procurara.
Achava sempre que no fundo de cada um haviam sementes que por não serem regadas, não brotaram. Que um dia com um pouco de sol e cuidados seriam a sede e a fome saciada de corações em tormenta e fariam a paz.

Se alguma vez a atingiam, ficava presa na dor que sufocava dentro dela. Sabia que não sabiam de si.

Prosseguia o seu caminho na esperança de um dia o sol nascer dentro de todos.

Também

Também haverá quem sinta que afinal não valeram de nada as quezílias, lembras-te?
Aquelas que infernizavam os dias e afastavam as possibilidades de fazer coisas melhores... Sei disso.
Porque se lamentam sempre os impossíveis e continua-se o rame-rame inalterável das horas.

E os amores... Vivam-se até aos extremos, até na morte!

Arrumações

...
Chegaram finalmente os caixotes que faltavam. As prateleiras que comprara numa loja de móveis em segunda mão estavam já instaladas numa das paredes do quarto que começava a ser prolongamento de si. Aqui e ali um ou outro objecto faziam-na sentir aconchegada. Bases de copos que começara a juntar, algumas garrafas de bebidas que experimentava com flores secas serviam-lhe de adornos. As datas e pequenas notas ficavam escritas nos pedaços vazios das etiquetas. Nascia um museu de memórias num território em que tudo era trazido á vida.
Começou a arrumar tudo com método. Deixava de propósito alguns espaços vazios. Contava enchê-los com o tempo, a seu tempo.
Olhou com enlevo a sua vida. Estava toda ali. Desempacotada e exposta, pronta a ser revivida. Passada ao papel. Porque agora queria entendê-la. Perceber porque tudo tinha acontecido. Como tudo tinha sido possível. Queria dentro de si encontrar o princípio e o fim. Perceber o meio. Assumir-se sem culpas e sem juízos. Ser inteira, porque precisava de o ser. E sobretudo entender o significado da sua vida. Até ali!
Inspirou profundamente de olhos fechados, abriu-os e com eles os braços. Dirigiu-se á janela que dava para a rua e deixou-se ficar a absorver a energia do sol. Ficou aí por algum tempo.
...

O segredo

Embrulhara há muito dentro de si um segredo. Apertara-o bem apertado e só de vez em quando desapertava os laços que o prendiam e sorvia as memórias com lágrimas ou sorrisos assim fossem as imagens que via ou os cheiros que sentisse.
Fez dela muito do que é hoje!
Seria outra qualquer se não tivesse vivido tal aventura. E não queria vivê-la de novo. Quando a pressentia nos outros sentia-se ligada e queria ser luz e ser guia se a quisessem assim. Queria dar o que não teve mas que agora tinha: saber de dor e vida.
Tinha sido há muito tempo e parecia-lhe já ali. Como se não pudesse nunca deixar de ter sido. E pertencesse a todos os tempos da sua vida. Porque em todos se via reflectida. Como se vivesse num espelho em que só ás vezes se mirasse e que quando acontecesse todas as imagens que não tivera tempo para ver lá estivessem á sua espera. Em silêncio, mas vivas.

Ele apareceu-lhe um dia. Falador, vivo, alegre, chamava a atenção de todos.
Tinha cabelo alourado aos caracóis pequeninos. Falava emocionado do que lhe acontecera. Era a Revolução dos Cravos em marcha. Agora era já Setembro mas ainda fervia tudo. Demais.
Dulcilena olhava-o com espanto e devoção. Aquele fervor já a incendiava.
Os olhares cruzaram-se e nunca mais se desviaram.
Foi nessa noite e nas outras que as histórias que ele contava embebedaram Dulcilena e quem o ouvia.
Dulcilena amou-o nas palavras e ficou cativa do seu coração. Ele também. Todos o souberam e se afastaram. Foi um amor febril como o dos tempos que corriam. Um amor sem regras e sem limites.
No ventre de Dulcilena cresceu o amor de Setembro sem ela se dar conta.
Soube-o tarde de mais. E era cedo ainda para tal sementeira.
Era muito nova. Ele também.
Nunca mais viu o jovem guerreiro. Não lhe deu a saber que fruto dera, tanto amor naquela época. A ele competia lutar. A ela…Acalentar e amadurecer o fruto que embalava.
Foi quando decidiu partir. Quando outros voltavam á terra-mãe, ela partia para outras bandas transportando consigo a semente que a denunciaria se ficasse.
Encontrou trabalho no outro lado do país. “Vou estudar”.
Ia ser mãe. Coisa linda de aprender!
E foi. Dum rapaz. Deu-lhe o nome do pai.
Os outros nomes que vieram com ele, deram-lhes os médicos. Eram muitos e estranhos.
A única coisa que entendeu é que alguma coisa muito errada tinha acontecido com o seu filho.
Que não seria como o pai, nunca. Como outra criança também não. Um filho perfeito… Talvez não o tivesse merecido, talvez tivesse feito alguma coisa errada, talvez…
E castigou-se durante todo o tempo que teve o seu menino naquela caixa de vidro. E chorou e zangou-se com o mundo. E gritou e quis morrer, ali!
E aquela criança indefesa chorava sem parar, tremia em convulsões e ela não podia fazer nada.
Dulcilena sentiu que o mundo se tinha virado contra ela. Tudo a tratava mal. Agora que finalmente e apesar de tudo esperava um sorriso, um bebe lindo a mamar, umas mãos pequeninas a procura-la, alguém a precisar e alguém a quem saber dar… E tudo lhe era tirado.
Tinha então 17 anos.

Quando fez 21 levou o filho a enterrar. Depois de anos de sofrimento. Dias e noites em hospitais de muita angustia e dor.
Tempos á espera do primeiro sorriso. Da primeira palavra. E nada!

Olhava de lado os outros bebes e pensava como seria bom o seu fazer metade, só metade!
Olhava as outras mães e queria ter metade dos sorrisos e alegrias. Só metade!
Nada mais!

E quando o levou a enterrar sozinha, chorou de tanta dor acumulada.
Chorou sem saber que sentir mais.
Se culpa, se alívio…
Se dor, se remorso…
Chorou até secar.
Foi então que fechou e guardou esse segredo por não saber o que lhe fazer.

O café

Desceu á rua na ânsia dum café quente. Hábito velho que ainda não pretendia perder.
Por aqui ainda não se entendia. Não conhecia as ruas nem os lugares.
Sentou-se no primeiro sítio que lhe cheirou a café. Fez bem. Sentiu-o.
Estava habituada a obedecer a impulsos.
Era pequeno. Três ou quatro pessoas estavam espalhadas pelas mesas. Umas liam, outras olhavam pelas vidraças o movimento na rua apertada. Uma música morna enchia o espaço.
Pediu o café e pegou numa revista que encontrou em cima duma mesa. Desfolhou-a sem a ver. Saboreou o momento.
O café com o sabor desigual acordou-a. Precisou do caderninho que trazia sempre consigo. Procurou-o no saco enorme que a acompanhava sempre. Era o seu “armazém”, como gostava de lhe chamar. Apetecia-lhe deitar coisas ao papel.
Afinal o tempo era de arrumações. E o papel era o suporte mágico

Porque aos sonhos e ás palavras que lhes dão forma não lhes basta a voz ou os gestos que as adornam. Precisa de lhes apalpar as formas quando as deita no papel. Sabe-as distintas e delatoras de estados de espírito que ás vezes é mascarado pelo hábil controlo vocal e gestual.
Na ponta dos dedos sai-lhe a verdade das coisas sem fronteiras ou censuras. Um tremor, um recuo, uma letra mais ampla ou mais miúda. Tudo repleto dum significado que se perde se não se mostra.
Ela estende-se aí. É inteira quando aí se acomoda. Nesse espaço não há lugar para esconderijos ou subterfúgios. Vê-se e revê-se. E nunca se perde porque pode sempre encontrar-se na palavra que fica presa ao papel que a contem e abraça.
Por isso só depois passa ao portátil as palavras feitas historias, agora amansadas pela tinta e pela rugosidade das folhas…

Viaja até ao princípio dos princípios.

Pedro e Inês


Uma coreografia de Olga Roriz

Fica ás vezes...

E fica ás vezes perdida num espaço que lhe deixa o medo e o desconforto de não ter certezas.

Deixa de ser quem é e não se reconhece nos passos balançantes. Como se o caminho ou a visão ficassem deturpadas e só lhe restasse a tontura e uma infinita náusea de se tornar na sombra distorcida de si.

São as lancinantes guinadas da luz do dia e das noites que se sucedem que lhe dizem ainda que está de pé.
Acerta o passo ao ritmo das vozes que carrega e entoa baixinho uma melodia onde embala os desconfortos.

Segue então, de novo, o seu caminho.