O segredo

Embrulhara há muito dentro de si um segredo. Apertara-o bem apertado e só de vez em quando desapertava os laços que o prendiam e sorvia as memórias com lágrimas ou sorrisos assim fossem as imagens que via ou os cheiros que sentisse.
Fez dela muito do que é hoje!
Seria outra qualquer se não tivesse vivido tal aventura. E não queria vivê-la de novo. Quando a pressentia nos outros sentia-se ligada e queria ser luz e ser guia se a quisessem assim. Queria dar o que não teve mas que agora tinha: saber de dor e vida.
Tinha sido há muito tempo e parecia-lhe já ali. Como se não pudesse nunca deixar de ter sido. E pertencesse a todos os tempos da sua vida. Porque em todos se via reflectida. Como se vivesse num espelho em que só ás vezes se mirasse e que quando acontecesse todas as imagens que não tivera tempo para ver lá estivessem á sua espera. Em silêncio, mas vivas.

Ele apareceu-lhe um dia. Falador, vivo, alegre, chamava a atenção de todos.
Tinha cabelo alourado aos caracóis pequeninos. Falava emocionado do que lhe acontecera. Era a Revolução dos Cravos em marcha. Agora era já Setembro mas ainda fervia tudo. Demais.
Dulcilena olhava-o com espanto e devoção. Aquele fervor já a incendiava.
Os olhares cruzaram-se e nunca mais se desviaram.
Foi nessa noite e nas outras que as histórias que ele contava embebedaram Dulcilena e quem o ouvia.
Dulcilena amou-o nas palavras e ficou cativa do seu coração. Ele também. Todos o souberam e se afastaram. Foi um amor febril como o dos tempos que corriam. Um amor sem regras e sem limites.
No ventre de Dulcilena cresceu o amor de Setembro sem ela se dar conta.
Soube-o tarde de mais. E era cedo ainda para tal sementeira.
Era muito nova. Ele também.
Nunca mais viu o jovem guerreiro. Não lhe deu a saber que fruto dera, tanto amor naquela época. A ele competia lutar. A ela…Acalentar e amadurecer o fruto que embalava.
Foi quando decidiu partir. Quando outros voltavam á terra-mãe, ela partia para outras bandas transportando consigo a semente que a denunciaria se ficasse.
Encontrou trabalho no outro lado do país. “Vou estudar”.
Ia ser mãe. Coisa linda de aprender!
E foi. Dum rapaz. Deu-lhe o nome do pai.
Os outros nomes que vieram com ele, deram-lhes os médicos. Eram muitos e estranhos.
A única coisa que entendeu é que alguma coisa muito errada tinha acontecido com o seu filho.
Que não seria como o pai, nunca. Como outra criança também não. Um filho perfeito… Talvez não o tivesse merecido, talvez tivesse feito alguma coisa errada, talvez…
E castigou-se durante todo o tempo que teve o seu menino naquela caixa de vidro. E chorou e zangou-se com o mundo. E gritou e quis morrer, ali!
E aquela criança indefesa chorava sem parar, tremia em convulsões e ela não podia fazer nada.
Dulcilena sentiu que o mundo se tinha virado contra ela. Tudo a tratava mal. Agora que finalmente e apesar de tudo esperava um sorriso, um bebe lindo a mamar, umas mãos pequeninas a procura-la, alguém a precisar e alguém a quem saber dar… E tudo lhe era tirado.
Tinha então 17 anos.

Quando fez 21 levou o filho a enterrar. Depois de anos de sofrimento. Dias e noites em hospitais de muita angustia e dor.
Tempos á espera do primeiro sorriso. Da primeira palavra. E nada!

Olhava de lado os outros bebes e pensava como seria bom o seu fazer metade, só metade!
Olhava as outras mães e queria ter metade dos sorrisos e alegrias. Só metade!
Nada mais!

E quando o levou a enterrar sozinha, chorou de tanta dor acumulada.
Chorou sem saber que sentir mais.
Se culpa, se alívio…
Se dor, se remorso…
Chorou até secar.
Foi então que fechou e guardou esse segredo por não saber o que lhe fazer.

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