Allways on my mind



Maybe I didn't treat you
Quite as good as I should have
Maybe I didn't love you
Quite as often as I could have
Little things I should have said & done
I just never took the time

But you were always on my mind
You were always on my mind

Maybe I didn't hold you
All those lonely, lonely times
And I guess I never told you
I'm so happy that you're mine
If I made you feel second best
Girl, I'm sorry I was blind

You were always on my mind
You were always on my mind

Tell me, tell me that your
Sweet love hasn't died
Give me, give me one more chance
To keep you satisfied
Satisfied

Little things I should have said & done
I just never took the time

You were always on my mind
You were always on my mind
You were always on my mind
You were always on my mind

Não sabia

Não sabia até que ponto sentir-lhe a falta lhe podia fazer ver quanto o amava.

Preferia sentir-se livre de tais amarras, sempre.

Sentir-se capaz de amar sem sentir desejos de ter sempre consigo a presença.
Saber viver das imagens, dos sons, dos cheiros que as memórias tão bem sabiam preservar e lhe ofereciam de mão beijada sempre que precisava delas.
Toda a sua vida se enchia assim simplesmente, inspirando e expirando sem que nunca faltasse alimento.
Não lhe sentia a fome.

E agora, ao sorver-lhe as memórias deu-se conta de quão pouco tinha. Dum vício a crescer e de como quando de vez em quando lhe apetecia uma colherada a mais e não a tinha.

Sim. Amava-o. Demais.

Um abraço

No abraço que me dás preciso de me sentir livre.
Poder dançar dentro dele a alegria do amor que sinto por ti.
Folgadamente. Sem apertos nem constrangimentos.
Não, não quero fugir do abraço que me estendes.

Gosto quando os dedos se juntam cruzando-se num enleio também ele abraço. Gosto assim. Desse duplo abraço que sem prender me conforta e não sufoca. Nunca.
Não é um abraço apertado que não me deixe respirar sem o teu sopro.

Somos os dois, em dois corpos separados, na mesma dança. E é assim que mesmo, ás vezes, em passos trocados a nossa dança se constrói: num abraço de espaços definidos e assumidos. Num abraço onde só cabemos nós e mais ninguém.

Um abraço na medida certa.

The show


Já não tenho idade para andar tão depressa e tanto! Sentou-se ofegante mas com a avidez bem desperta de falar com quem a escutasse.
O médico mandou-me fazer exercício. Não posso engordar mas agora comia qualquer coisinha.
Quer uma bolacha? Perguntou-lhe alguém a seu lado. Uma bolacha não que engorda, se fosse uma peça de fruta…
No entanto a oferta encorajou-a no seu exercício que poderia deixar de ser unicamente um monólogo. As danças que fazia tantas vezes sozinha podia agora fazê-las com um par. Mesmo que fosse ela a comandar ou tão-somente a ser observada.

Comecei aos 16 anos a fazer estas viagens com a minha mãe. Para o casino, jogar nas máquinas. Para um pouco e pergunta. Não joga, pois não? Não espera pela resposta. Não o faça. Logo que começa nunca mais acaba. Tenho 80 anos e não consigo parar. Gasto quanto tenho todos os meses neste casino. Não tenho dividas mas não tenho nada.

Continua a história de solidão que vive entre desejos de morte e histórias mais ou menos picantes com algumas palavras que pede licença para dizer. Ri e chora no intervalo da inspiração e da expiração. São os humores que lhe alimentam a vida.

Entra no comboio que a leva ao destino todas as semanas. Religiosamente. A principio com a mãe. Agora sem ela. Continua a história dos empregos, dos biscates. De como procura e encontra na roupa usada dos outros a que veste de forma digna. De como mesmo assim se sabe gozada por quem a vê passar. Porque lhe conhecem o vício e sabem que debaixo da máscara que tão bem sabe pôr há só uma velha viciada sozinha que vive numa casa grande de 3 pisos que um dia foi sua e agora habita por contrato até um dia qualquer.

Quase á chegada sem se saber porquê o comboio pára antes de qualquer estação.
O silêncio interrogativo instala-se. A voz dela quebra-o. Alguém tem alguma coisa que se coma? Todos a olham admirados. Ninguém responde. O comboio arranca de novo. É que ela não comera nada desde o meio-dia. Não tinha dinheiro para jantar e na ânsia do jogo esquecera-se de usar o vale que o casino lhe dera para comer uma refeição leve antes de apanhar o comboio.

Não queiras saber de mim



Rui Veloso e Mariza ao vivo

A folha

Ela entrou timidamente espaço dentro. Lufadas de ar empurravam-na devagarinho a tempos inusitados e faziam-na avançar por sítios desconhecidos. Mais folhas a esperavam. Doutras formas, doutras cores e tamanhos, já arrumadas em cantos onde nenhum vento as pudesse perturbar. A pouco e pouco ela avançava. O desconhecido começava a fazer parte dum território ganho entre medos e ansiedades. Afinal eram só passos e o que vinha não era mais que o que passava. Ela abandonava-se. Até que tranquilamente poisou. Num canto onde o fôlego do ar se deixou descansar e a libertou de receios deixando-a aninhar-se num lugar a que chamou casa até nova viagem

Boa noite meu amor.



Acordou com ele a olhá-la preocupado. Que tremia e os seus olhos não paravam. Sentiu que tinha de a acordar Pressentiu-lhe um pesadelo e não podia deixá-la continuar a deixá-la dormir assim. Ela largou uma gargalhada cristalina e abraçou-o a confortá-lo. Na verdade o sono que tinha, porque sonhava na realidade era uma anedota pegada. Contou-lho de rajada e riram os dois. Do sonho, do engano. Do amor que os unia.

Ás vezes tinham manhãs assim. De outras vezes era só ao abraço.

Em si

Era tarde apesar de ainda parecer cedo para que tudo acontecesse. Era tarde porque o sol se despedia. O laranja se substituía ao azul sem manchas de algodão doce que lhe lembrava carrosséis e música de bailes populares.
Uma tarde a fazer-se noite. E as decisões sem tempo feito a tardarem por estarem longe de ser maduras.
Talvez houvesse um destino igual àquele que fazia as noites acordarem os dias depois de sonos inquietos ou tranquilos ou até de muitas insónias que visitavam as estrelas que ora brilhavam ora brincavam de esconde-esconde. Talvez.
E nem fosse preciso decidir o que já estivesse por si só decidido há muito tempo. Se calhar a viagem far-se-ia onde agora estava. Sem de si arredar pé. E nem fosse preciso atravessar meio mundo, cruzar tanto mar! E para quê, afinal?
Que respostas podia encontrar que não lhe tenham já sussurrado ao ouvido e teimosamente tenha ignorado?

Quantas vezes o que procuras está tão só dentro de ti? Dizia-lhe a mãe.
Dentro de mim? Que sei eu? E vasculhava-se quase em desespero.
Perdia-se na amálgama de tanto querer.
Descobria por vezes que era no silêncio das perguntas que encontrava as respostas.
Que quando nada pedia tudo lhe era dado. Pasmava.
Ao esvaziar-se preenchia-se. Era mais. Melhor. Completava-se.

Era preciso ser cedo por muito tempo, até ser preciso. O tempo dir-lhe-ia a tempo o tempo certo.
Até lá as noites dormiriam, os dias acordariam, as estrelas fariam os seus jogos com quem lhes fizesse companhia.
A vida, essa, acontecia. A seu tempo.

Pontualidade ou falta dela

Era extremamente pontual. Nervosamente pontual. Tinha um relógio inscrito no ADN. Talvez. E a mania de lhe andar á frente. Sempre. Doíam-lhe os nervos dos atrasos que antecipava aos outros. Doíam-lhe as esperas mesmo sem as ter feito.

Conhecera-a quase por acidente. E de repente sucederam-se os telefonemas que não paravam. A vontade de a ouvir não cessava. Não havia tempo nem hora desadequada para o fazer. Dedilhar o teclado e esperar que ela atendesse. Não importava a espera.
Quis conhecê-la melhor. Convidou-a para jantar. Uma e outra vez.
Uma noite deixaram-se ficar até ao abraço e ao beijo que lhes deu vontade de mais encontros.
Combinaram-nos. Datas e horas.
E o seu relógio biológico julgou-se pressionado. Entrou em alerta.
Afastou-se.

De quando em quando manda-lhe uma mensagem, um beijo em ar de promessa ao que ela responde educadamente. Ás vezes convida-a mas não aparece. Inventa uma desculpa que ela já sabe existir. Não se surpreende. Sabe que ele estará sempre lá mas nunca com ela.
Por vezes irrita-se. Depressa se acalma. Irrita-se porque se deixou amar e amou. Irrita-se porque perdeu sem ter tido.

Hoje voltou a mandar-lhe uma mensagem. Tenho saudades. Ela deixou cair uma lágrima. O namorado perguntou-lhe, que tens? Respondeu-lhe, nada meu amor. Coisas minhas, Faltas de pontualidade. Atrasos.
O namorado encolheu os ombros. Ás vezes não a entendia.

O tempo



"Le temp qui rest"
Criação original sobre um texto de J.L. Dabadie pour e para Serge Reggiani

No lado errado da vida

Era ela. Só podia ser. Tinha-a encontrado. Do nada. Por mero acaso.
Nas palavras que sempre achou que lhe ouviria. Na voz que sabia pertencer-lhe. No sorriso que só ela saberia expressar. Nos gestos que só ela desenharia.
Era ela. Na forma como andava. Como sempre a tinha sonhado.
Aquela e mais nenhuma.
Como se finalmente a resposta a todos os seus anseios se tivesse feito presente.
Deixou o olhar preso nela. Talvez por demais evidente. Dariam por certo conta de tal espanto.
Viu-a dirigir-se a si. Acompanhada. Era João o seu velho amigo de universidade. Que vidas!
Manuel dá cá um abraço! Há tanto tempo. Que tens feito?
Vieram as histórias e as apresentações.
Ela, também desse tempo partilhara algumas vivências. Recordava-o agora.
A semente do sonho que deixou crescer dentro de si.
Dá-nos os parabéns Manuel. Vamos ser pais.

Do resto não se lembra. Abateu-se um nevoeiro. Igual ao que vivera nos últimos tempos confinado aos tempos entre a casa e o trabalho. Num querer sem saber o quê. Num desejo sem objecto.
Talvez a tivesse esperado enquanto terminava relatórios ao computador embriagado pelo som monótono das teclas em noites sem fim.
Esperou-a também no fundo dum copo sentado sozinho no balcão dum bar qualquer sem mais ninguém, fora de horas.
Algumas vezes esperou-a nos braços doutras mulheres que já não recordava por não lhe saberem a nada.
E em milhentas filas de transito, nas caras de quem conduzia quando se dirigia para o trabalho.
Sabia que sempre a esperara… no lado errado da vida.

A morada

A morada, se faz favor!

Morada!? Para que diabo, queria ele a morada? Algum dia tivera morada?
Talvez… Quando vivera com a mãe naquela casa herdada dos avós com cheiro a segredos ocultos de geração em geração cheia de regras e obrigações que o levaram a ter medos e vontades de sair cedo.
Foi a Lúcia, uma rapariga cheia de borbulhas e cabelo espigado que o fez sonhar com amor e uma cabana nas águas furtadas, bafientas, forradas a papel de parede debotado a descolar-se teimosamente apesar da maior ou menor quantidade de cola de farinha que se lhe pusesse.
Acordaram um dia enredados num manto de papel empastelado. Foi o primeiro e o ultimo. Separaram-se. Era Verão.
Encontrou a Joana, sardenta de tranças vermelhas. Lembrava-a sempre de biquíni ás bolas cor-de-rosa gigantes. Vivia numa casa de madeira na praia de que cuidava primorosamente. Limpa os pés, não tragas areia para dentro de casa, não te deites assim no sofá, vai tomar banho.
Deixou o amor quente de Verão arrefecer com os primeiros ventos frios do Outono e foi viver para um apartamento pequeno perto do emprego. A Teresa não o incomodava. A princípio achava tudo um pouco desarrumado mas achou que era assim porque o espaço era apertado. Deixou-se ficar.
Precisava duma camisa, tinha-a ela vestida. Procurava uma gravata, usava-a ela como cinto. O pior foi quando procurou as bolachas preferidas e só encontrou as migalhas dentro do pacote escancarado.
No dia seguinte a Teresa nem encontrou o pacote nem o encontrou a ele.
Mudou-se para um hotel. Sim, para um hotel. Tinha tudo o que queria, sempre que queria: cama, mesa e roupa lavada. A companhia procurava-a, comprava e usava como e quando queria.
O emprego não lhe cobriu as despesas. O cartão não lhe cobriu quanto esbanjou. O hotel não o aturou mais. Um dia encontrou a porta fechada e as malas feitas. Foi até ao último bar que ainda o servia. Bebeu até lhe fecharem também a porta.

A morada, senhor polícia?
Pode ser esta?

Dos olhos

Era dos olhos que ela se lembrava mais. Uns olhos que diziam mais que quaisquer palavras.
Estavam agora calados. Deixara de os ouvir.

Tantas promessas lhes ouvira e tantas vezes neles embarcara. Viagens para não mais esquecer.

É na sua ausência que os recorda melhor. Como uma qualquer luz no corredor dum passado ainda presente.

Agora fecha os seus para não deixar fugir quanto lembra.

Confesso

Não, não penses que é de ti que falo. Não te enganes com as palavras que brotam de mim. Sou todas as mulheres que já conheceste e ainda estás para um dia conhecer.
Em mim navega a voz das que escuto e sei por aí.

Entre tantas coisas que sinto, escolho falar do que poderia ter sido. Construir um mundo para lá de mim. Imaginar os caminhos que decidi não trilhar.
E ouvindo as palavras que abandono ao som das teclas num ecrã que se vai pintando devagarinho de emoções, julgo ás vezes ser o que sinto então.

Acabada a musica que componho num teclado sempre igual, regresso ao que sou. A mim própria.
Despida das fantasias e da melodia que cantei baixinho até ao final que deixo acontecer. Sou então eu. E não me mostro.
Porque tenho ainda algum pudor.

Por isso te digo que não é de mim que falo. Nem de ti. Muito menos de nós.

O que será...



Simone- O que será.

Rodeou-lhe a cintura num gesto de auxílio. Com suavidade. Ela sentiu-se segura. Sentiu o olhar dele na sua nuca. Semicerrou os olhos e absorveu o momento numa tremura que lhe invadiu o corpo.
Deixou-a e voltou ao que fazia.
Ela ficou a observá-lo. Aquele homem tocava-a. Ainda não sabia porquê. Despertava-lhe os sentidos duma forma doce cheia de carinho. Não a incomodavam os gestos que noutra pessoa podiam parecer ofensivos. Dele pareciam vir com naturalidade e sinceros. Ficava a sonhar.

Cruzavam-se e tocavam-se de vez em quando. Com a vontade de mais a crescer. Até ao abraço que finalmente se fez. E o beijo trocado na ânsia de sedes anunciadas. Olharam-se como se se conhecessem de há muito. E se reencontrassem. Ali, naquele momento.

Prolongaram o tempo que tinham em ninharias inventadas. Até ser tarde.
E terem de se afastar. Ouviram uma música que seria a deles. Dum cd e duma faixa qualquer. Leva-o. Ouve até quereres. A nossa música.

Ouviu durante dias. Sempre o mesmo.
Prolongava assim o que não podia prolongar doutra forma. Até não o ouvir mais.

Descobriu-o agora de novo. Vieram-lhe á memória os sonhos. Acarinhou-os e em voz baixa embalou-os para os adormecer e devolver ao tempo a que pertenciam. E lá ficaram. Em pousio.
Há sonhos que não se devem alimentar. Mesmo que tragam boas memórias. Serão sempre só isso.

Falta de espaço

Ás vezes o espaço faltava. E nem se percebia muito bem porquê. As pessoas eram as mesmas. Ninguém tinha mudado de vida. O rumo dos dias era o de sempre.
Mas as coisas pareciam sobrar e os espaços minguar.
Era o tempo de revirar as coisas. Arranjar novos espaços. Por de lado ou dar o que já não servia e redefinir os lugares que agora restavam.
Limpezas. Tirar o mofo antigo, arejar-lhe os caminhos e abri-los a coisas de agora. Coisas que agora ainda valiam a pena serem guardadas. Porque nem tudo se renova ou troca. Nem tudo se tira das prateleiras a que ainda damos uso.
Descobrem-se as histórias que em tempos se calaram no fundo duma gaveta. E o tempo esgota-se no meio das papeladas que já há muito não se viam. Ou nas fotografias que julgávamos perdidas. Ou naquele anel que um dia causou sensação e sem quê nem para quê se deixou de ver. O que se pensou então… E afinal estivera sempre ali, num lugar que agora parece ser o mais óbvio. Na altura não o foi.
E a poeira que em tempos assentara levanta-se agora devagarinho mostrando o que tínhamos deixado longe da vista. Duma forma mais clara.

Agora parece que tudo volta ao normal. Tudo respira mais tranquilo no espaço renovado. Parece até haver espaço de sobra e tudo parece mais leve.
É tempo de fazer novas viagens e armazenar outros souvenirs.

Um dia far-se-ão novas arrumações. Sempre que for necessário. E não será preciso outro espaço. Caberá tudo mais uma vez.

O sono

Achava sempre que o sono era o motivo perfeito para se ausentar.
Dava-lhe as boas vindas deixando-o instalar-se nas pálpebras que agora pesadas desciam devagarinho. Fechava as janelas no abraço cúmplice das pestanas. Deixava-se envolver. Abandonava-se e por lá ficava até ter fome de acordar.

Havia quem a estranhasse e achasse que poderia não estar bem. Enchiam-na de perguntas a que não queria nem sabia responder. Deixassem-na dormir, desligar as luzes e entrar devagarinho no escuro que em vez de medo lhe trazia tranquilidade!

Sabia que depois, sem qualquer razão conhecida, tudo fluía melhor. As pausas devolviam-lhe a energia necessária para colher a vida.

Tanto elas como os silêncios nos deixam ouvir e fazer da vida uma melodia ritmada que acompanhamos dançando sem ruídos e correrias.

Que nunca o sono se fizesse ausência.

Hoje

Levantara-se como o fazia todos os dias. Depois duma espreguiçadela e um olhar em volta a espreitar a cor do dia. Era a luz que crescia devagarinho deixando as sombras da noite que o acordava. Lambia-lhe a cara num beijo rotineiro e fazia-o despertar.

Hoje arrastara-se até ao chuveiro. Um cansaço quase inesperado tinha tomado posse dele durante a noite. Deixou a água correr morninha. Cobria-o agora da cabeça aos pés. Um lençol a cobri-lo e a afagá-lo. Encostou-se á parede de azulejos ainda frescos. Sentiu um arrepio mas acomodou-se. Só ouvia a água a correr. Deixou-se estar.

Ao longe, ouviu o telefone a tocar. Estranhou que a essa hora alguém quisesse falar com ele. Não era hábito.
Fechou as torneiras, agarrou numa toalha que apressadamente pôs á sua volta e correu para o telefone.
Deixou no chão as pegadas molhadas que quase o faziam escorregar. Atendeu.
Uma voz nasalada dizia-lhe do outro lado: O João deixou-nos, pá!
A seguir vieram os soluços. O João?! Ainda ontem estivera com ele. Não, não podia ser. Calma, pediu. Que se passa?
Numa forma entrecortada ouviu o que suspeitara. O amigo de tantos anos, de tantas confidências tinha partido. Sem aviso. Com um sorriso na cara. Lembras-te, pá, daquele sorriso que ele tinha sempre para nos calar tristezas?
Lembrava. Não o podia esquecer. Tantas vezes lhas calara!

Deitado agora na cama deixou as lembranças que tinha dele aconchegá-lo. Chorou. Não se lembra até quando ou quanto.
Acordou gelado. Sentiu a falta do amigo que agora só traria dentro de si.
Sabia que as memórias dos sorrisos partilhados lhe afastariam as tristezas.
Ficava com a maior das heranças. Ter podido andar a par com ele enquanto ele vivera.

Um dia encontrá-lo-ia. Percorrido também o seu caminho. E sorririam juntos.

Levantou-se, vestiu-se e foi até á esplanada onde todos os dias se encontravam. Talvez tudo fosse uma mentira. Obra do cansaço que sentira de manhã.

Ficou sozinho a olhar o mar. Um mar tão salgado quanto as lágrimas que lhe corriam.

O meu país

Amontoava-se tudo duma forma desordenada. Tanto para fazer e tão pouco tempo para o desfrutar. A pilha crescia e com ela a angústia de não lhe saber o fim.
Apetecia-lhe parar. E que com ela parasse tudo. Num passe de magia.

Imaginava-se a olhar de cima calmamente. A descobrir as coisas de que perdera o rumo no meio de tanto tempo a construir. Aí deslocaria mentalmente as coisas para o lugar devido. Num mapa que desenhava a pouco e pouco estabelecendo as coordenadas com minúcia.

Algumas coisas incomodavam-na. Sempre o tinham feito. Olhá-la-ias agora do sítio em que se pusera. Afastada. Assim permitia-se vê-las de todos os ângulos. Não se deixando afectar. Afinal tudo acontecera já. Num momento qualquer. Só a marca ficava. Iriam para um lugar que já estava programado no mapa que criara. Num país de reciclar. Num país de recomeçar.

Sorria ás coisas que deixara de ver e julgava perdidas. Acarinhava-as e depositava-as com cuidado dentro de si. Fá-la-iam caminhar. E sonhar.

Quando tudo voltasse a andar tinha a certeza que continuaria a criar pilhas de coisas desordenadas. Que um dia arrumaria mesmo que a magia de parar não acontecesse.

Sabia no fundo que era vida que construía. E não há planos que previnam a desarrumação que ás vezes se instala.

Há só uma alma com a dimensão imensa de países por povoar.

Procurara...

Procurara por toda a cidade um lugar onde pudesse ficar. A viagem tinha sido comprida e estava extenuada. Farta de tanto procurar acabou por parar num bar em frente ao mar. Pediu um sumo fresco e uma sandes.

O bar estava semi-vazio apesar de ser época alta. Além dos empregados de mesa e de balcão estavam dois ou três clientes. Uma música discreta enchia o ar. Ficou a olhar através dos vidros quem passava. Deixou os pensamentos vaguear. Talvez tivesse até adormecido por instantes.
Á sua frente estava já o sumo, a sandes e alguém que não conhecia. Assustou-se. Há quanto tempo estaria ali? E porquê?

O homem que se sentara na sua mesa sentiu-lhe o medo e tranquilizou-a. Desculpa, vi-te sozinha e pensei que precisasses de ajuda. Quando te olhei melhor, reconheci-te. Não te lembras de mim?
Olhou-o com mais atenção. Sim, agora via quem era. Estava longe de o suspeitar ali. Vira-o pela última vez já há alguns anos. A pouco e pouco foram deixando de se falar. Perderam-se um do outro. Lembrava-se que ele partira para o estrangeiro á procura dum destino melhor. Desatara todos os laços para não ter de voltar e poder andar quanto tivesse de andar.

As lágrimas correram-lhe pelo rosto. Tentou disfarçá-las. Ele sorriu. Apagou-lhas com o toque suave dos dedos.
Continuas na mesma, tão real e autêntica como sempre foste. E tanto medo tive disso!

Falaram ainda durante algum tempo. Pagou a conta.
O empregado de mesa viu-os sair de mãos dadas.

E-mail

Tinha uma vontade enorme de a abraçar. Um abraço forte de que sobrassem memórias. Talvez que ao fazê-lo se transpusesse de si quanto tinha para dar.
Talvez esse abraço a fazer-se colo fosse o ninho a que podia regressar em tempo de invernia. E fosse calor e luz.
No tempo do aconchego todas as dores se apaziguavam. Libertado o corpo da amargura haveria espaço para ver e perceber melhor.

Era um abraço assim que tinha guardado para ela.
Sempre que ela o quisesse. Mesmo que as forças então estivessem ausentes. Mesmo assim. Sentia que não lhe faltaria.
Como ela agora lhe faltava. Por estar tão longe!

Sentou-se na secretária e olhou o ecrã vazio do computador. A pouco e pouco desenhou em letras alinhadas o que sentia. Só o barulho das teclas lhe interrompia o correr do desejo que queria fazer real.
Foi com o manto estendido das palavras que a embalou no abraço que nascia dentro de si.
Tecido o manto, selado o abraço, mandou-lhe num e-mail.
Correu o tempo e o espaço e viu-a na sua frente.

Por agora bastava um abraço assim. Numa tela de palavras pintada.

Crescia-lhe a vontade para mais abraços.

A Senhora dos Sorrisos

Ouvia as vozes, os risos, adivinhava as brincadeiras pelos passos que ficavam a ecoar através das paredes que os separavam.

Agora vivia sozinha mas já tivera a casa cheia. Uma vida dedicada a tantos que com ela partilhavam o espaço. Filhos, marido e até algumas vezes os netos com as traquinices que lhe vinham á memória pelos sons que as paredes fracas não abafavam.
Desejara em tempo um tempo só para ela. O canto refúgio que lhe guardasse os sonhos que não pudera sonhar. Adiados sempre para um dia qualquer. Um dia…
A pouco e pouco despediram-se de si aqueles a quem se dedicara. Aqueles que lhe ocupavam a vida e dela faziam ninho. Ficou feliz a vê-los partir e a construir também.
O marido há muito que não fazia parte da vida dela. Era agora marido de alguém noutra casa qualquer. De vez em quando via-o e confirmava a sua felicidade. Fazia-lhe bem.
Ela também ocupara e ficara na vida doutros… Por pouco tempo. Sempre por pouco tempo. Temia abalroar espaços e deixar-se abalroar.

Ia buscar os sonhos a sítios desconhecidos e acordava-os fazendo-os reais. Pintava agora. Não se preocupava com alguma anarquia que reinava entre as coisas dela. Pincéis ainda com cor de tinta, telas em cavaletes espalhadas por sítios de luz, frascos, tubinhos e mais frascos coloridos por todo o lado a espreitá-la e a chamá-la a fazer o que descobrira gostar.
Jorravam imagens de dentro dela. Imagens que tentava agarrar e transportar para aqueles painéis brancos ávidos de cor.

Eram música aqueles sons de vida que se apoderavam do seu espaço. Música de fundo a sonhos a desenrolar-se. Deixava-a invadi-la. Dançava a par com ela. E ela sorria feliz naquele canto refúgio que tantas vezes desejara.
Pendurados nas paredes sorriam para ela os rostos desenhados através da neblina, que ela sempre amara. Lugar de mistério e magia.

Conhecia agora a plenitude. Sentia-se livre e tranquila.
E partilhava-o com ternura.

Era conhecida como a Senhora dos Sorrisos.

Deu-lhe um beijo na face depois do abraço apertado. Olhou-o e disse-lhe, vou bem, fica também. Afastou-se devagar e deu meia volta. Entrou no autocarro que a levava a casa. Ele ficou a olhá-la ir. Viu-a sentar-se e acenou-lhe com a mão. Fico á tua espera, disse-lhe destacando cada palavra para ela o poder perceber. Ela sorriu-lhe e respondeu-lhe com um beijo soprado na ponta dos dedos.
O autocarro partiu e ele foi-se embora também. Levava-a nas memórias que guardavam ainda o seu cheiro. No banco vazio ao seu lado estava ainda desenhado o corpo dela. Passou por ali a mão suavemente como quem acaricia. O calor que ainda ali estava invadiu-o.
Era muito tarde já. Estava cansado. Tinham feito as maiores loucuras. E o riso dela ainda ecoava a seus ouvidos. Nunca se sentira tão feliz.
Entrou no quarto. A cama ainda desfeita desvendava os segredos partilhados. Deitou-se no lugar que ela ocupava. Tentou simular a forma como ela o fazia. Queria sorvê-la. Agarrou a almofada vazia e puxou-a até si para um abraço que já lhe faltava.
Foi quando viu um papel cuidadosamente dobrado em quatro. Para ti, dizia. Na letra que só ela sabia desenhar. Olhou para ele demoradamente como quem quer adivinhar. Prolongar este tempo fá-la-ia mais próxima. Levou o papel aos lábios, cheirou-o e assim dobrado pô-lo entre a cara e a almofada num gesto de aconchego. Adormeceu.

Acordou com uma impressão estranha que o fez coçar a cara. Era o papel que ela deixara. Acendeu a luz, sentou-se amparado por uma almofada e abriu-o.

Meu amor, deixo contigo o melhor que posso dar-te. Quero-te feliz e livre.
Quis deixar-te as melhores lembranças, as mais doces. Espero tê-lo feito. Agora vou para não mais voltar…

Levantou-se de um salto. Procurou-lhe as marcas pela casa toda. Não encontrou nada. Só ele sabia que ela ali tinha estado. Só na cama as marcas que ele já desfizera.
Tivera sempre medo que ela um dia não voltasse.
Tinha chegado o dia.

Aninhou-se no escuro e chorou.

Espanto

Há quanto tempo já não se viam! O tempo necessário para arrumar a desordem que se instalara nele quando ela partira.
E agora cruzava-se com ela. Na mesma fila de banco em que a tinha visto pela primeira vez. Numa outra cidade.
Reconheceu-lhe o jeito de se abandonar em espera. Cabeça levemente pendida, mãos nos bolsos em abandono e um pé levemente inclinado apoiado só no salto do sapato. Desenhava no ar figuras imaginárias com a biqueira. Talvez fizesse contas á vida. Talvez antecipasse assim o passo a seguir e a direcção a dar. Sempre o fizera com a mesma agilidade com que fazia dançar o pé.
Lembrou-se da forma como ela aceitava as coisas sem muitas perguntas. Como se soubesse já todas as respostas. Alinhava-se naturalmente no futuro que o presente trazia pela mão.
Não lhe conhecera nunca o espanto. Como se soubesse sempre em primeira-mão como tudo acontecia. Em todas as coisas encontrava explicação. Compreendia e via para além do explicável. Aceitava a vida sem medos.
Sempre o assustara a clarividência que lhe sentia. Parecia-lhe sempre que ela sabia mais além. Duma forma que nunca conhecera em ninguém.
Mesmo quando tudo parecia correr mal, ela sorria e tranquilizava-o. Dizia-lhe que era preciso aceitar o fim das coisas para dar lugar ás novas. Que viriam a seu tempo. Tudo ocuparia o lugar certo…

Não sabia agora qual era o seu lugar ou o que o esperava. Não percebeu nunca porque tiveram de se afastar nem como tal aconteceu. Aprendera com ela que quando um se ausenta ou parte de vez dá lugar a outro. Até um dia se encontrar a metade que faz sentido. E no entanto sentira nela a sua metade. E tudo fizera sentido enquanto andaram na vida um do outro…

Cruzava-se de novo com ela. Perguntou-se se também isto era um sinal que não devia ignorar. Se afinal afastando-se se teriam aproximado. Se faltando um ao outro teriam dado conta de quanto eram felizes quando estavam juntos.

Preparou-se para lhe dizer olá ocasionalmente como se também a ele já nada o espantasse. Esperou que ela se virasse sem desviar o olhar.

Viu-a rodar e virar na sua direcção. E o sorriso que lhe tinha preparado desapareceu. Não era ela.

A contratempo

Confundiam-na as palavras que lhe ouvia. Em tempos esperara dele que também se apaixonasse. Por ela.
Da mesma forma estranha e insidiosa que se instalara nela a paixão que sentia por ele.

Soprou o café que queria beber para engolir melhor o que lhe ficava atravessado na garganta agora seca. Precisava de dar espaço ao espanto que lhe subia do peito. De o soltar.
Bebeu-o devagarinho sem levantar a cabeça. Ainda não o queria olhar. Não sem ainda perceber o que ele queria dizer.
Olhava agora as borras de café no fundo da chávena. Raras, uniformemente espalhadas com uma mancha de maior densidade a um canto. Lembrou-se das leituras que costumavam fazer quando estava entre amigas. Das gargalhadas ao ouvir os prognósticos. Que quereria dizer aquela mancha mais forte, ali ao cantinho?

Ouves-me?
Voltou e olhou para ele. Sim ouvia-o. O problema era não o entender.
Não entender também como um homem assim lhe entrara coração dentro.
Não o disse. Calou as palavras que lhe acudiam á boca. Empurrou-as para bem dentro de si. Para o sítio onde todas as coisas acabam por desaparecer. Quando é preciso.

E pronto. É isto. Acabei sem saber como por me apaixonar por ti. És-me necessária. Sinto-o cada vez mais.
Foi então, enquanto lhe ouvia estas palavras que se despediu do que sentia. Um enorme vazio assaltou-a. Pediu outro café.

Não lhe bastava

Há um desconforto em não se poder dar na mesma medida em que se recebe. E ela sentia-o. Duma forma aguda. O esforço que fazia para ser igual deixava-a sem forças. Fugiam-lhe as palavras e os gestos em debandada.
E a cada dia crescia o desespero. Não que ela não o amasse da mesma forma. Não. Nem que lhe sentisse também a falta…
Parecia no entanto ser incapaz de mostrar tudo quanto sentia. Sentia-se amordaçada pela sua própria mão.

Talvez o facto de há muito não sentir assim a deixasse ainda anestesiada. Talvez a realidade que agora antevia ainda a deixasse incrédula. Talvez tudo fosse ainda um sonho. Sim e porque nos sonhos ás vezes queremos correr e não conseguimos… Queria mostrar-se e não podia ainda.

Só os olhos e o sorriso, o ar tranquilo que todos lhe sentiam a denunciava.

A ele, não lhe bastava.

O quarto escuro

Era ali, no quarto escuro das memórias que ficavam os pedaços que ainda se soltavam de tudo quanto lhe fazia mal.
Depositados na ânsia de serem só breu onde nenhuma luz os visitasse. Assim não os veria jamais. Por lhes perder os contornos.

Fechava a porta e esperava que ninguém a empurrasse. Não lhe forçassem a entrada, nunca.

E mesmo assim entre o ranger de coisa sem uso, por descuido, ás vezes entravam fios de luz. E a dor tomava corpo.

Precisava de estar mais atenta. Não o deixar acontecer.
Deixar as coisas no lugar onde as tinha posto. Para sempre.

Agora e não será cedo. Para que não seja tarde.

Talvez te deva falar agora do que sinto por ti.

É o momento certo, pressinto-o. Sei também que em ti já tarda o que te vou dizer.
Procuro as palavras e sinto-as esconderem-se. Tímidas, envergonhadas. Hesitam em fazer-se voz. Como se ao fazê-lo se extinguissem e perdessem a alma que as fez nascer.

Olho-te então. E é no olhar que te deixo que elas se entregam.
Não te enganas, não. É mesmo isso que te quero dizer. Aquilo que sentes.
Não poderia dizê-lo nunca tão bem como o faço agora.
Sei que me lês. No olhar que me devolves.

Deixa o silêncio deitar-se. Sem palavras que possam perturbá-lo.
Embalá-lo-emos ao ritmo dos nossos corações. Só.
E tudo será dito claramente. Sem atropelos.

É neste encontro de olhares reflectidos que nos entendemos.
E é quanto basta.

E quando duvidares… regressa aqui, onde te veja.

Desejo

Sentiu a urgência na vontade. Uma pressa que crescia no desejo que de repente sentiu. Dela.
Ligou-lhe. Ouviu o telefone tocar repetidamente.
A paciência corria com a velocidade do desejo Uma fugia outro instalava-se.
Desligou. Iria vê-la. Não lhe bastava a voz. E era esta que sempre lhe acendia a chama que o consumia agora. Desta vez bastou-lhe a lembrança. Daquele gesto que o fez olhá-la pela primeira vez. Quase um espreguiçar. Um deitar de cabeça apoiado nas costas da mão a correr-lhe para o cabelo, rodopiando suavemente até pousar de novo no cabelo que trazia para cima do ombro. A voz viria depois. Para o prender.
Ficou no carro. De repente achou que nada fazia sentido.
Lembrou-se que talvez ela não estivesse em casa. Que estivesse afinal com ele. Noutro lugar. Num lugar que nunca seria o seu.
Decidiu arrancar. Viu-a a cruzar a esquina. Sozinha, carregava alguns sacos.
Hesitou em abrir a porta. Afinal viera vê-la. Saiu.

Não sabe como fez o caminho até casa. Na cabeça rodopiava a imagem do sorriso aberto que lhe vira quando lhe abriram a porta de casa. Soube que teria de se ir embora.
Embrulhou o desejo no peito agora amarrotado.

Falou

Falou dele sem mágoas. Assim como se tivesse ainda agora estado com ele. Como se ele nunca lhe tivesse faltado ou falhado.
Olhei-a a confirmar o olhar que se fazia nas palavras que lhe ouvia.
Queria senti-la tal como o diziam as palavras.

Lembrei-me das vezes que a ouvira chorar e desesperar.
Na verdade devia ficar tranquila. Preferia-a assim. E a vontade de acreditar em tudo o que dizia era maior que qualquer medo.

Deixei que falasse tudo com a calma enfiada á pressa nos gestos. Luva mal posta porque me disse logo o que precisava de ouvir.
Estou bem, finalmente. Acredita.

Não acreditei.

Continuou a falar dele da mesma forma. Ensaiada.

Quero

Não ter as respostas para tanta pergunta que me fazes desvenda em mim a inutilidade que carrego.
Procuro em tanto que já vivi as palavras que precisas de beber. Nada cala a tua sede.
Sinto-me deserto enquanto procuras em mim a miragem.

E quero ser o que precisas.
Terreno fértil onde pudesses florescer.

Um mar

Afogar-se. Deixar de respirar ou estrebuchar até vir á tona de novo.
Mas pelo menos por uns momentos, esquecer. Ser outra coisa qualquer, noutro sítio, doutra maneira.
Talvez assim se fosse o que a punha assim.

Saiu de casa. A princípio sem destino. Qualquer mar lhe servia.
O toque do telemóvel despertou-a, quase a assustou. Procurou-o para o calar, sem resultado. Parou o carro e esvaziou a carteira sempre cheia de inutilidades. Viu-lhe a luz impaciente. Atendeu.
Vem cá jantar. Preciso de estar com alguém.
Há muito tempo que não o ouvia e nem sabia dele. Que sim. Iria. Também lhe faria bem.
Adiou a viagem. O mar esperá-la-ia. Sempre lá esteve e nunca a abandonou. Hoje não iria aninhar-se no seu colo.

Deu meia volta e pouco tempo depois batia-lhe á porta. Achou-o cansado, triste. Mas a tristeza já lha tinha ouvido na voz. O cansaço sentiu-o no abandono e no olhar que conhecera sempre vivo.
Foi na cozinha entre os temperos e os odores que falaram. De tudo o que lhes vinha á cabeça. Sem nada dizer. Ajudou-o nos afazeres deixando os olhos entregues ao que fazia. Tinha medo de lhe cruzar o olhar. Tinham.
Entregavam-se ás ninharias. Apagavam assim escrevendo por cima. Como se nada mais houvesse e nada os pudesse afectar.

Jantaram. A garrafa de vinho tinto ficou vazia.
Levantaram-se e foi quando ele sem aviso a abraçou. Sentiu-lhe o rosto molhado. Soltava enfim o mar que em tempestade o habitava.

Desta vez foi ela que embalou aquele mar. Deixou-se afogar.

Neste silêncio

É aqui, neste silêncio que desdobro os pensamentos ao desenhá-los em letras no contorno das memórias que guardo de ti.

Costumavas fazê-lo com a ponta dos dedos a tocarem ao de leve no meu corpo. Pedias-me que te dissesse então o que decifrava.
Rias-te sempre do que eu dizia. Inventavas novas palavras e mantinhas a desculpa para continuar o jogo.
Lembro-me de sentir arrepios e de me contorcer quando tocavas em pontos mais sensíveis. Troçavas de mim.
Rias-te e fazias-me rir.

Agora, na viagem que faço, volto a fazer as mesmas brincadeiras. Desta vez sou eu que te faço adivinhar. E vejo-te em movimentos desconexos e a esconder a cabeça debaixo da almofada para que eu não te ouça e não troce de ti.
É quando te procuro lá que me apanhas desprevenida e soletras todas as palavras que nascem em ti ao meu ouvido.
Dizemo-las depois em conjunto lábios nos lábios. Em harmonia.
Uma a uma, até que não sobrem mais.

Deitados lado a lado de mãos dadas rimo-nos os dois de tanta palavra para inventar.

Sei que não as dissemos todas. Descubro-as agora na ausência que planta o silêncio que teimo em ouvir.
É no ouvido do vento que as sussurro. Serão tuas quando sentires a aragem a tocar-te o corpo. Onde estiveres.

Até lá peço ao silêncio que se faça riso. No teu.

Início

Hoje passei com os dedos, acariciando cada pedaço teu, pelas fotos que guardo de ti. Pela milionésima vez.

É quase rotina.

Imagino-te e não o quero fazer. Tento resistir.
O que me impele a fazê-lo dói. E não quero mais dor.

E foi há tanto tempo que passaste por mim!

Foram já alguns os que vieram depois de ti. De todos me desliguei. A nenhum me prendi. Nunca mais o soube fazer.
Aprendi contigo o medo de perder. E a dor!

Antecipo fins antes de qualquer princípio. E faço-os desaparecer.

Quero a calma que tinha antes de ti.
Rasgaste-ma.

Rasgo-te eu agora.
Não terei mais onde passar os dedos em busca de memórias.

O carro

O carro tinha um barulho estranho, irritante, mas já não valia a pena mandar arranjar. Daria para o que queria ainda fazer.
Tinha tudo planeado desde há muito tempo. Estava prestes a acabar tudo a que se tinha proposto. As coisas estavam no devido lugar.
Levou os filhos ao pai. Despediu-se como fazia sempre.
A caminho de casa telefonou ao marido e disse-lhe que não viesse esse fim-de-semana. Iria estar ocupada num congresso numa cidade para Norte. Ligar-lhe-ia depois.
Fez a viagem de regresso calmamente. Na rádio as vozes do costume. A estrada como sempre. Sabia-a de cor.

Tomou um banho relaxante. Deixou-se ficar. Mentalmente verificou os passos que queria ter dado. Confirmou que não havia mais nada a fazer.
Limpou-se, perfumou-se e abriu a cama que tinha feito de lavado. Sentiu-se bem.
Foi até á cozinha buscar um copo de leite a que misturou cacau.
Pegou nos comprimidos que já tinha desembaraçado das embalagens e depositou-os na palma da mão. Caíram alguns. Tinha as mãos pequenas.
Decidiu que os tomaria por duas vezes. Quase vomitou quando engoliu os primeiros. Concentrou-se e pôs os restantes na boca. O leite com cacau fá-los-ia mergulhar.
Deitou-se, fechou os olhos e esperou. Com serenidade.

Um estranho mal-estar invadia-a e fê-la abrir os olhos a custo. Sentia-se zonza e não percebia o que fazia assim. Viu o rosto do marido inclinado para ela. Quis falar, não conseguiu. Fechou os olhos de novo.

Ele abanou-a, chamou-a pelo nome. Não a fez reagir.
Ficou a olhá-la.
Quando chegou a casa depois de ter tentado ligar-lhe encontrou-a inanimada. Fazia alguns ruídos esquisitos e no canto dos lábios escorria uma espuma esbranquiçada. Adivinhou o que tinha acontecido. Percebeu porque ela não o queria ali. Vinha a despedir-se de tudo e de todos e ele não tinha dado conta.
Em poucos minutos tinha a seu lado um médico a tratar dela. Ainda a tempo.
Não deixou que a levassem de casa. Trataria dela. Ficaria com ela até que acordasse.

Chamou-o. Queria levantar-se, sair.
Ele não deixou. Fê-la repousar. Não estás em condições de sair.
Ficou perplexa. Depois lembrou-se.
O carro tinha um barulho estranho, irritante, tinha de o mandar arranjar. Queria ausentar-se.

O vestido

Fechara-lhe a porta só depois de o ver desaparecer ao fundo das escadas. Do lado de dentro, encostou-se e deixou-se cair. Tinha-o em cada recanto do seu corpo. Podia cheirá-lo ainda. Fechou os olhos para o fechar também, ali.
Prolongar o momento. Eternizá-lo.
Não sabia quando o voltaria a ver mas isso não contava. Agora não.
Era com ele que ainda estava.

Levantou-se e percorreu a casa. Ouviu-lhe a voz recordou-lhe o riso. Deixara-lhe os ecos espalhados por cada divisão.
Aninhou-se na cama, deitou a cabeça na almofada que apoiara a dele. Era como se o sentisse ainda. Face na face. Vestiu-lhe o cheiro e a pele com pelos acabados de nascer. Arrepiou-se. Gostava de o ver com barba atrasada.
Passar-lhe a mão e sentir a urgência de o beijar. Em cada pedaço. Roer-lhe os lábios ao de leve, pressentir-lhe a língua a abrir caminho…

Não sabia que horas eram quando acordou. Lembrou-se que tinha uma reunião ainda pela manhã. Levantou-se e rapidamente tomou um duche.
Olhou-se ao espelho e sorriu. Viu os lábios marcados da noite anterior.
Tinha de disfarçar. Maquilhou-se. Nunca o fazia.
Vestiu-se á pressa e enfiou-se no carro depois de um café bebido a correr. Tinha ainda alguns papéis para ultimar.
Verificou no escritório se faltava alguma coisa e foi para a sala de reuniões.
Já estavam todos. Pediu desculpa, sentou-se.

Ele estava lá ao fundo. Impecável no seu fato e barba feita. Iniciou a reunião.
Não se lembra do que aconteceu.
Os colegas disseram-lhe que tinha estado muito bem. Apresentara o projecto com um brilho que não lhe conheciam.
Surpreendeu-se porque na verdade não estivera ali. Só se lembra da vontade de o olhar e não o poder fazer.

Em cima da secretária, um bilhete. Vejo-te logo? Quero!

Almoçou e tirou a tarde. Comprou um vestido preto.

O caçador

Considerava-se um caçador. Mas na verdade também gostava de ser caçado.
Era o jogo da caça que lhe dava gozo.

Usava como arma o olhar bem apontado. Um olhar que não desfazia mesmo depois de confrontado. Aí começava o jogo.
Era como um feitiço que podia ou não resultar. Mas não deixava nunca de o lançar. Avistada a presa era preciso conquistá-la.
O tempo do contacto, a resposta ao olhar e os gestos que se lhe seguiam permitiam ver o êxito da caçada.

Vivia apaixonado por esses momentos.

Era delicioso vê-lo em acção. Podia estar envolvido no que quer que fosse e mesmo assim conservava-se atento. Deixava de estar connosco para partir ao encalço da presa.
E surpreendíamos os olhares e a postura perturbada de quem vê o que procura.
Feito o ataque, recebida a resposta, voltava a nós como se sempre ali tivesse estado. Apenas com mais brilho.

Raramente ia para além destas investidas. Procurava o prazer no prazer que causava.
Revitalizava e prolongava o prazo de carta de caça. Ainda o sabia fazer.

Mas quando era ele a presa deixava-se invadir pelos olhares e clamava com o seu o que se pudesse seguir. Abandonava-se ao caçador.
Deixávamos de o ver por um tempo.

Contar-nos-ia mais tarde que precisava de voltar a caçar. Não podia pertencer a ninguém.

Tardavam as notas...

Era bem verdade que já sabia como as coisas aconteciam.
Sabia como começavam: de mansinho.
A princípio deixava-as vir. Depois vinha-lhe o pesadelo.
Sabia também como acabavam.
Porque era verdade que apesar de as saber nada as impedia de se fazerem de novo.
Não sabia como o mudar.

Desfolhava as memórias á procura de apontamentos á margem que a ajudassem a não repetir o que lhe acontecera já.
E faltava-lhe o sossego da acalmia que partia no tardar das notas que procurava.

Arredava a esperança e negava-lhe o olhar. Tentava esvaziar de si as vontades.
Sentia que em seu lugar nada ficava. E doía-lhe o ar que corria em tanto espaço aberto. Secava-a.
Neste espaço árido subia-lhe a fome para que não tinha alimento.

Que fizera noutros tempos ao que reconhecia agora dentro de si?

Tardavam as notas…

E sem poder fazer para além do que já fazia, pedia ao tempo que a levasse para longe dali.
Sabia já que mais tarde tudo seria mais uma história onde falhariam as chamadas de atenção.
E outras se repetiriam.

Amaria sempre da mesma forma. E a entrega seria sempre completa.
Era o que era, fossem as notas o que fossem.

Porque procurava para trás e esquecia que as memórias de amanhã já estavam escritas também.
Não podia fugir de si.
Até que as páginas da memória fossem pó.

Assim

Foi esperá-lo. Ainda com muito tempo.
Ficou ali a ver quem passava apressado de malas na mão. A ver quem partia e quem chegava.

Já tinham pensado encontrar-se mais cedo. Afinal há dois anos que falavam, riam e choravam aos ouvidos um do outro.
Longas horas de vozes trocadas interrompidas por breves momentos e as conversas pulavam noite dentro. Até perder a hora.

Não foi preciso procurar muito. No meio de quem ia e vinha ele lá estava a caminhar na sua direcção. Como se não fosse a primeira vez.
O abraço prometido foi testemunhado por quem passava. E caminharam lado a lado como se sempre o tivessem feito. Sorriam cúmplices nos olhares que trocavam.
As vozes e as palavras tomavam corpo. Sem surpresas ou espantos. As conversas retomavam o espaço que agora se enchia doutras coisas.
Os olhos falavam no silêncio das pausas e os gestos bailavam na sinfonia das palavras.

Iriam estar juntos mais vezes foi o que prometeram quando ele se foi embora.
Sempre que a vontade de estar assim se fizesse sentir.

Estiveram por muitas vezes. Até que um dia a saudade das conversas sem rosto foi mais forte.

Nunca mais se viram. Nunca mais falaram.

Um rio


Quando olhavam para ela viam-na diferente do que realmente era. Não se interrogavam mais porque lhes sabia bem o que sentiam.
Um ar calmo e sereno, a rapidez na resposta e a fórmula que procuravam, a descoberto. Bastava-lhes o que ela lhes dizia e a forma como o fazia.
Finalmente a segurança.

Os remoinhos que dentro dela cresciam a cada momento não se vislumbravam no olhar. Nem as lágrimas que chorara se deixavam adivinhar no sorriso.

Porque teriam os outros de a saber ler se nem ela o sabia?

Descobria-se nas palavras que os outros lhe ouviam. A pouco e pouco fazia-se. Cada palavra era tijolo na construção que sentia.

E quando lhe pedia que falassem de si não o sabia fazer. Não era ainda coisa nenhuma. Era tudo e nada e isso não se podia definir. Era o tempo que passou, o momento e o tempo que estava para vir. Era o que foi e o que seria. Entre tempos.

Sentia só um rio a correr dentro de si. E a crescer.
Um rio que um dia encontraria a foz.
Seguia a corrente. Sentia-a.

Era aí que se afogava e aí que renascia.
Um dia seria rio também, enrolado nas ondas dum qualquer mar.
Saber-se-ia então.

E os outros? Que importa que soubessem dela?
Melhor seria se depois dela soubessem mais de si!

Devagarinho

Chegaram-lhe ao fim as forças. Deixou-se abater.
Doía-lhe o corpo de tanta labuta. Numa dor que a levava para lá de si.
Só o cansaço se fazia sentir.

Nem sabia já o que a levara ali. Como tudo principiara.
Até as memórias se sufocavam nas dores que o corpo gritava.
Apetecia-lhe deixar-se estar enterrada no buraco que o que sentia lhe fizera.
E deixar-se afundar. Que o peso que carregava era tamanho!

Sentia-se esvair, despedaçar-se num corpo que preferia não sentir.
Não pediu ajuda. Não o conseguia fazer.
Despedira-se há muito das esperanças que um dia alimentara.

Talvez alguém a visse desvanecer. Ou talvez não.

Não havia vontade do que viesse.
Abandonara-se.

Quando sentiu de novo não reconheceu o que podia ser.
O sono que a levara ainda lhe turvava a razão do que era.

Alguém que passou e não ficou indiferente.
Alguém que dormira já noites assim. Num gesto sem nome trouxe-lhe de volta o sentir.
Devagarinho.

Silêncio

Aquele silêncio e a quietude da hora traziam-lhe a presença das memórias sem tempo.
Sol e água em terra de sonhos que se desenhavam de esboços antigos.
Recordações a fazerem-se futuro na vontade de as fazer crescer.

Era o momento de todas as coisas viajarem de lugar em lugar.

De serem maiores. Do tamanho da alma que lhes dava fôlego.
Tempo de encontro. De verdade.
Sabia-se.

Como se no escuro se vislumbrasse melhor.
E o tempo existisse fora do tempo.

Morada

Entrou devagarinho. A pouco e pouco espraiou-se nela.
Com a ternura no olhar e a doçura nos gestos. Fez nela abrigo e morada.
E ela deixou-o ficar-se. Em espaços que ainda vazios eram seus.

Gravadas ainda estadias doutros, noutros tempos não a impediam de alojar quem quisesse pelo tempo que fosse.
Quase nunca sabia como tal acontecia.
Limpas as réstias de quem a habitava deixava-se de novo invadir.
E renovava-se. Precisava de o fazer.

Queria não mais esperar.
Saborear os instantes como se fossem uma vida.
Deixar-se ficar assim em contínua viagem com quem nela morasse, mesmo que por tempo incerto.

E tantas vezes desejou que fosse eterno!

Eu vou


Adriana Calcanhoto


Nada ficou no lugar
Eu quero quebrar essas xícaras
Eu vou enganar o diabo
Eu quero acordar sua família...

Eu vou escrever no seu muro
E violentar o seu gosto
Eu quero roubar no seu jogo
Eu já arranhei os seus discos...

Que é pra ver se você volta,
Que é pra ver se você vem,
Que é pra ver se você olha,
Pra mim...

Nada ficou no lugar
Eu quero entregar suas mentiras
Eu vou invadir sua alma
Queria falar sua língua...

Eu vou publicar os seus segredos
Eu vou mergulhar sua guia
Eu vou derramar nos seus planos
O resto da minha alegria...

Que é pra ver se você volta,
Que é pra ver se você vem,
Que é pra ver se você olha,
Pra mim...



A seu tempo

Não, não importa o tempo que se tem, dizia-lhe ele. Importa só como se vive.
O valor que se lhe dá. Nada mais.
Tempo é tempo. O sentir é maior. Sente apenas.
Quando sentes, nada mais importa.

E a dor?

Também se alivia. Também se faz coisa nova.
Deixa que aconteça o que está para vir. Que se faça caminho. No tempo que for.

E o amor?

Dura enquanto existe. E volta sempre.
Sem aviso, em outro, doutro.
Com o tempo que lhe é próprio.

E…

Calou-lhe as palavras pousando-lhe um dedo sobre os lábios. Olhou-a.
O tempo, aquele porque desesperas, trar-te-á as respostas sem te dares conta.
Fica atenta. Descansa.

A seu tempo…

O tempo

A vontade não pode mais que um só desejo.
Pode mais o tempo. A distância entre o sonho e o ser.
E é, ás vezes, tão longa!

Quando se chega esvai-se e olha-se já passado num presente que se esgota sem darmos conta.
Apetecem momentos eternos e só nos fica memória.

Memória do que foi e do que está para vir.
E a espera é medonha. Para um tempo que é fugaz!

Quando ás vezes nos parece muito perdemo-nos em tanto que há para fazer.
Quando nos parece curto esquecemo-nos de o viver.
Entre um desejo e outro, a vontade de ser no tempo que se quer.

Nem desejo, nem vontade podem contra o tempo.

Não era a noite

Não, não era a noite que sufocava. Era ele que ficava sem ar.
Uma súbita vontade de liberdade duma qualquer coisa que lhe oprimia o peito.

Destapou-se. Olhou á volta. A seu lado, ela, dormia repousada.
Tentou ajustar a almofada, mudar de posição sem que ela desse conta. Um formigueiro estranho invadia-o. Não sabia de onde nem para onde. E o ar a faltar-lhe.
Sentia-se implodir. Uma chama devorava o rastilho que sentia apequenar-se sem piedade.
Não queria perturbá-la. Levantou-se em silêncio numa ânsia de mais longe.
Percorreu o corredor ás cegas. Na cozinha bebeu um copo de água. Respirou fundo, quase se engasgou.
A luz dos candeeiros da rua estendia-se até ali. Que horas seriam?
Sentou-se e logo se levantou. Tinha de fazer qualquer coisa. Com urgência.

Há algum tempo que nada acontecia nele. Sentia-se amorfo. Respirava, só.
Vasculhava em si as ideias que tardavam em fazer-se. Sentia-se perdido na imensidão do nada.

Uma vontade a crescer em terreno baldio que não conseguia exprimir-se deixava-lhe um nó que agora parecia desatar-se.

Do outro lado da casa, ao fim do corredor que agora atravessara, uma porta fechada aguardava-o. Guardava bocados da sua alma.
Coisas inacabadas. Pincéis em copos sujos de tinta, telas desvirginadas em começo de namoro.

Foi para lá que se dirigiu, decidido. Na sua cabeça atropelavam-se em filas desordenadas as pinturas que ainda não fizera.
Pegou nos pincéis, abriu latas de tinta, tirou dum cavalete uma tela sem futuro…
As imagens corriam-lhe até aos dedos agora em ânsias de se fazerem e serem os sonhos que há muito deixara de sonhar.

Não se lembra de ter ouvido barulho nenhum. Nem do passar das horas.
Estava num sítio de que tinha saudades e não sabia.

Quando ela abriu a porta á sua procura deparou-se com o homem por quem se tinha apaixonado. Ali estava todo o vigor, a magia, a vida que sempre soubera existir.
Ficou-se a vê-lo naquele frenesim de cores e estocadas de pincel.
Devagar, deu meia volta e encostou a porta devagarinho.
Aquele era o tempo dele.

A carta

No meio das contas e de tanta coisa á solta, ela lá estava.
Num envelope azul as letras desenhadas esperavam por ela.
Abriu-a em surpresa. Há muito que não recebia cartas assim. Há muito que já não esperava nada.

Dentro as palavras sufocadas no aperto do invólucro pediam-lhe que as ouvisse.
Espalhavam-se ao longo das páginas que agora desdobrava. Reconheceu-lhes a forma. Um enovelado de que não perdera memória.

E desfilaram imagens que julgava apagadas.
E sentiu arrepios que lhe turvaram os olhos.

Sentou-se logo ali, num degrau. Encostou-se á parede. Sentia-se tonta.
As palavras dançaram por instantes.

Tantas foram as imagens que ali se cruzaram… As vontades renascidos…
Apertou a carta contra o peito num abraço em que o envolvia também. A ele.

Não. O tempo nada havia apagado.
Nem o tempo, nem a distância. Bastara um envelope azul e estavam juntos outra vez.

Sim, meu amor, ainda estás dentro de mim!

Minha música

Letra de Adriana Calcanhoto

Minha música não quer
Ser útil
Não quer ser moda
Não quer estar certa...

Minha música não quer
Ser bela
Não quer ser má
Minha música não quer
Nascer pronta...

Minha música não quer
Redimir mágoas
Nem dividir águas
Não quer traduzir
Não quer protestar...

Minha música não quer
Me pertencer
Não quer ser sucesso
Não quer ser reflexo
Não quer revelar nada...

Minha música não quer
Ser sujeito
Não quer ser história
Não quer ser resposta
Não quer perguntar...

Minha música quer estar
Além do gosto
Não quer ter rosto
Não quer ser cultura...

Minha música quer ser
De categoria nenhuma
Minha música quer
Só ser música
Minha música
Não quer pouco...

http://www.musiconline.com.br/midivoices_play.php?id=2&idsom=839

Ainda agora

Ainda agora pensava nisso.
Em como era fácil cativar quando não se queria prender. Como a atraíam as coisas que a libertavam.
E parecia quase paradoxal. Quase impossível ser assim.

Tudo era tão simples. Duma fluidez e serenidade em que se abandonava sem receios Embalada num peito feito colo. Ou á deriva como folha de Outono em correntes de água lisas e límpidas. Suavemente.

Ainda agora se deixava ir. Para lá do pensamento. Sentia só.
Ainda agora.

Confidences


Gotan Project - legendado

Compositor - Juan Gelman
Voz de Cecilia Roth

se sienta a la mesa y escribe
«con este poema no tomarás el poder» dice
«con estos versos no harás la Revolución» dice
«ni con miles de versos harás la Revolución» dice

y más: esos versos no han de servirle para
que peones maestros hacheros vivan mejor
coman mejor o él mismo coma viva mejor
ni para enamorar a una le servirán

no ganará plata con ellos
no entrará al cine gratis con ellos
no le darán ropa por ellos
no conseguirá tabaco o vino por ellos

ni papagayos ni bufandas ni barcos
ni toros ni paraguas conseguirá por ellos
si por ellos fuera a la lluvia lo mojará
no alcanzará perdón o gracia por ellos

«con este poema no tomarás el poder» dice
«con estos versos no harás la Revolución» dice
«ni con miles de versos harás la Revolución» dice
se sienta a la mesa y escribe

Regresso

É aquela batida que o acompanha sempre. Quase não deixa que acabe para a por a tocar de novo. Como um cigarro atrás de outro quando o vício se instala.
Regressa a casa.
Um regresso em que não houvera partida, como se de lá nunca tivesse saído.

Naquele Sul quente empoeirado de poentes laranja a emoldurarem o horizonte.
Sobe-lhe o cheiro a terra acabada de lavar pela chuva mole dum tempo que sem aviso a deita á terra.
Uma outra música, um ou dois pares em abandono. Roupa colada ao corpo, cabelos escorridos sem movimento no balanceio a que a música obriga. Puro contágio.
Ela, esguia, solitária. Entregue ao ritmo que dança com a música e a chuva que não deixa de cair.
Procura-lhe os olhos. Caminha para ela ensaiando os passos e as palavras.
Atravessa uma cortina tecida de finas gotas de água tépidas que descem em névoas rente aos pés ainda hesitantes.
Estica um braço, enlaça-a e rodopia com ela. A melodia que ouve vem do bater do seu coração.

Não há chuva nem música. Não há gente nem poentes.
Há um regressar a casa numa partida que nunca aconteceu nos braços duma batida que o acompanha sempre.

Blues

Outra vez. Tudo recomeçava. Por mais que tentasse tecer novas teias o rendilhado repetia-se como se nada de novo houvesse a fazer.

Nunca acreditara no destino. Ou no que lhe diziam as linhas da palma da mão.
Preferia movê-las ao encontro do outro na carícia feita abraço.
Fazer, com elas, da promessa coisa feita.

Era o milagre do querer e da vontade que a movia. Essa fé a que se entregava.

E perdia-se num ciclo onde tudo parecia não ter fim.
Não fosse a fé…

Recomeçaria até não ter de o fazer. Nunca mais.
E num crochet renovado seria mais e melhor.

Até lá não se deixaria embalar pela batida dolente dos blues que lhe habitavam a alma. Beber-lhes-ia a cadência e alimentaria neles a esperança.

Amnistia Internacional


Basta uma assinatura!

Naquele instante

Olhou-a como se nunca o tivesse feito. Despiu-se de tudo que ela lhe fora deixando. Nunca lhe havia bastado.
Sacudiu-o. Para longe de ventos que o arrastassem de novo até si.
Virou-lhe as costas.

Ela sentiu-lhe um olhar diferente. Penetrante.
Sentiu-se mesmo incomodada. Possuída. Como se entrasse por ela adentro sem permissão.

Deixou-se invadir. Há muito que o desejava.
Que ele o fizesse. Mais ninguém.
Deixou-se ser. Abriu fronteiras.
Não o queria estrangeiro em si.
Ensinar-lhe-ia as línguas do seu país.

Una musica brutal



Música de Gotan Project
Participação de
Chita Rivera e António Banderas

Do filme " Take the lead"

A contorcionista

Tinha formas únicas de ser ágil.
Formas de sentir e estar acrobáticas. Quase impossíveis.
Elástica. Moldava-se com elegância rodeando obstáculos que deixavam de o ser.
Permitiam-lhe bailados em coreografias inimagináveis.
Moviam-na músicas que só ela ouvia num ritmo que lhe pertencia desde que se conhecia.

Havia quem procurasse nela inspiração. Quem procurasse nela saciar a sede.
Perdiam-se nos seus encantos enfeitiçados nos seus gestos.
Desatinados dos rumos vagueavam sem destino.

Alheada de tudo o que á volta dela acontecia, continuava o seu bailado de contorcionista atenta á sua própria evolução.

Da primeira vez

Da primeira vez era diferente. Parecia-lhe tudo possível.
Sonhar era quase obrigatório.
E ela sabia fazê-lo. E nunca desistia de o fazer.
Nem que por vezes acordasse em pesadelo. Que acordasse! Que acordasse...
Estaria viva, recomeçaria.
Tudo seria possível uma vez mais. Até que ela o quisesse.

E haveria muitas primeiras vezes. Sabia-o.
Procurá-lo-ia. Em cada momento.

Serão tantos os momentos ainda para vir!

Se eu morrer amanhã, que me dirás hoje?

E se eu morrer hoje que me terias dito ontem? Perguntas-me de volta.
O que te digo agora e sempre. Gosto de ti. E gostarei até a memória de ti se apagar. Respondo pensando que te calo assim.
Quem gosta assim, dizes-me tu, não se apaga da memória de quem também assim gosta.
Tu sabes, sorrio, e eu também sei.

Mas, sabes, se fosse dono do futuro e soubesse que amanhã não estarias aqui faria tudo o que pudesse levar-te a sentires-te cheia de ti mesma, sem faltar a a ultima cusquice, o telefonema usual da família, a novidade do jornal das oito,a viagem do ultimo dia, tal como qualquer outro dia, com alguém por companhia.
Adormecerias vencida pelo cansaço… serena. Não saberias que o amanhã nunca aconteceria

Apetece-me beijar-te. Posso?
Abraça-me. Guarda-me. Revive-me, Arquiva-me no armazém das memórias para os tempos em que não estarei. Deixa-me fazer o mesmo contigo. Absorver-te.
Não digas nada.

Posso pedir-te um favor? Não te vás. Não ainda.
Porque tal como ontem, hoje não tenho o tempo necessário para te dizer quanto sinto… seria tanto!
E assim sendo, talvez, adiando sempre… jamais morras.
Em mim pelo menos.

E se insistires em partir, dir-te-ei simplesmente, até logo!

O diário

Pedira-lhe um diário. Um relato que um dia partilhassem. E revivessem.

Logo que pode lera-lhe as primeiras páginas com sofreguidão.
Queria saber-se nela.
Ver-se pelos olhos que o fizeram apaixonar-se. Daquela maneira que não percebia.
Das outras vezes tudo tinha sido mais pálido. Agora que conhecia as cores que nunca imaginara existir, viajava extasiado. Numa embriaguez que em vez de lhe adormecer os sentidos lhos despertava ainda mais.

Estranhava-lhe a forma quase seca que ela usava na escrita. Perdia-se dela.
Daquela que o amava como ninguém o tinha feito.
Que descobrira nele um homem que perdera há muito entre a vida que se fez.
Da mulher fogo que fazia no seu coração fogueira.

Perdeu-a. Não soube se por tanto lhe pedir.
Se por tanto lhe querer.

Perdeu-a porque nunca a encontrou.

Os teus olhos

Os teus olhos estavam tristes, apagados.

Fui-lhes testemunha. Queria não o ter sido por tão inútil ser tal olhar.

E tu vagueavas pela casa sem rumo.
O prazer de estar e partilhar o teu espaço com os amigos de sempre já há muito não transparecia no teu rosto, agora opaco.

Mãos nos bolsos, ombros descaídos, ausente por fora e por dentro, habitavas sítios que eu não suspeitava.

Já não cabia no teu mundo. Desiludi-te pela primeira vez e vi bem o que te fiz. O orgulho e a vaidade que tinhas em mim, feriu-se. Tiveste vergonha de mostrar a ferida que te abri quando gostavas mesmo era de mostrar a “tua menina”. Com a ternura dum pai que não tive doutra forma.

Senti que nessa tristeza bailava o desapontamento. Que ela nascia de mim.
Não te pedi desculpa, então. Nem nunca mais.

Partiste cedo demais. Levou-te talvez a tristeza.

É certo que voltaste. Sonhei-te durante muito tempo.
Sempre meu amigo.
Era como se voltasses para mim e só para mim.
Sem tristeza nem saudade.

Guardei-te aí. Com a nitidez que o tempo não consegue apagar quando se ama assim.

Acompanhas-me agora. Como sempre o fizeste.
E é em ti que penso nos passos que dou.
Quero continuar a ser a tua menina e não te desiludir nunca mais.

Lá onde estás, podes falar-lhes de mim. Como eu falo de ti.

Com o coração!

O pretexto

O pretexto foi a troca de olhares. E apeteceu. Ela tinha-lhe a fome sempre insaciada. Agora, mais que nunca presente.
Gostava da forma como ele filtrava o que via. Fazia-lhe ter vontade de andar por lá também. Disse-lho.
Ele sugeriu-lho.

Quando se viram ela deixou as palavras rolar. A pressa de desvendar a magia do sentir, a vontade e o despudor de o fazer eram palpáveis na alegria que o brilho dos olhos deixava adivinhar.

Fazia-o sempre assim. Não se sabia doutra forma.
Não havia máscara que a transfigurasse.

Ele absorvia-a. Só.
Espantava-se na descoberta do mundo dela. Nas suas paixões... Na inocência das suas paixões.
Na entrega que dela emanava. Sem diques nem represas. Livre e fluida.

A doença


Uma qualquer coisa que o prendera há muito instalara-o na porta dum tempo que teimava em não se deixar avançar.
Pesado demais para um corpo que deixara a pouco e pouco desaparecer. Porque tudo desaparecia.
Só o tiquetaque metódico persistia, gotejando sem jeito de se ir.

As vozes que foram gente são agora fantasmas que povoam noites mesmo que o sol as ilumine. Tem-lhes agora medo de tão estranhas se terem feito.

De vez em quando um sorriso assoma-lhe os lábios, agora mudos.
É a presença das memórias que teimam em fazê-lo achar-se vivo.
Logo murcha de tão vago ser. E o olhar que se fixa num ponto sem destino, vagueia á procura doutros esgares.

Porque está neste lugar, não o sabe, já. Perdeu-se a razão na ausência dos que amava.
Nem sabe mesmo que lugar é este. Para quê dar-lhe um nome se não o quer para si? De que lhe valem os nomes se nada lhe dizem?
Se mesmo assim se perde, por não saber mais o que procurar…

E afunda-se, talvez subindo por tão penoso lhe parecer.
Para sempre só.

Dizem que a doença o levou ali.

"Mankind Is No Island"

Tropfest NY 2008 winner, by Jason van Genderen

O oásis existe

Apesar de já nada esperar, fica sempre uma vontade de que algo aconteça.
Para inverter magias perdidas em constantes desencantos.

É um tempo de dunas sucessivas num horizonte sem fim.
Era preciso armazenar para ter agora. Pelo tempo que fosse.
Poder sobreviver á caminhada.
Bastar o dourado da areia. O movimento do caminho a fazer. As pegadas que já se apagaram.

(Um coração não tem duas bossas!
Terá a vontade?)

O oásis existe.