Hoje

Levantara-se como o fazia todos os dias. Depois duma espreguiçadela e um olhar em volta a espreitar a cor do dia. Era a luz que crescia devagarinho deixando as sombras da noite que o acordava. Lambia-lhe a cara num beijo rotineiro e fazia-o despertar.

Hoje arrastara-se até ao chuveiro. Um cansaço quase inesperado tinha tomado posse dele durante a noite. Deixou a água correr morninha. Cobria-o agora da cabeça aos pés. Um lençol a cobri-lo e a afagá-lo. Encostou-se á parede de azulejos ainda frescos. Sentiu um arrepio mas acomodou-se. Só ouvia a água a correr. Deixou-se estar.

Ao longe, ouviu o telefone a tocar. Estranhou que a essa hora alguém quisesse falar com ele. Não era hábito.
Fechou as torneiras, agarrou numa toalha que apressadamente pôs á sua volta e correu para o telefone.
Deixou no chão as pegadas molhadas que quase o faziam escorregar. Atendeu.
Uma voz nasalada dizia-lhe do outro lado: O João deixou-nos, pá!
A seguir vieram os soluços. O João?! Ainda ontem estivera com ele. Não, não podia ser. Calma, pediu. Que se passa?
Numa forma entrecortada ouviu o que suspeitara. O amigo de tantos anos, de tantas confidências tinha partido. Sem aviso. Com um sorriso na cara. Lembras-te, pá, daquele sorriso que ele tinha sempre para nos calar tristezas?
Lembrava. Não o podia esquecer. Tantas vezes lhas calara!

Deitado agora na cama deixou as lembranças que tinha dele aconchegá-lo. Chorou. Não se lembra até quando ou quanto.
Acordou gelado. Sentiu a falta do amigo que agora só traria dentro de si.
Sabia que as memórias dos sorrisos partilhados lhe afastariam as tristezas.
Ficava com a maior das heranças. Ter podido andar a par com ele enquanto ele vivera.

Um dia encontrá-lo-ia. Percorrido também o seu caminho. E sorririam juntos.

Levantou-se, vestiu-se e foi até á esplanada onde todos os dias se encontravam. Talvez tudo fosse uma mentira. Obra do cansaço que sentira de manhã.

Ficou sozinho a olhar o mar. Um mar tão salgado quanto as lágrimas que lhe corriam.

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