Não sabia

Não sabia até que ponto sentir-lhe a falta lhe podia fazer ver quanto o amava.

Preferia sentir-se livre de tais amarras, sempre.

Sentir-se capaz de amar sem sentir desejos de ter sempre consigo a presença.
Saber viver das imagens, dos sons, dos cheiros que as memórias tão bem sabiam preservar e lhe ofereciam de mão beijada sempre que precisava delas.
Toda a sua vida se enchia assim simplesmente, inspirando e expirando sem que nunca faltasse alimento.
Não lhe sentia a fome.

E agora, ao sorver-lhe as memórias deu-se conta de quão pouco tinha. Dum vício a crescer e de como quando de vez em quando lhe apetecia uma colherada a mais e não a tinha.

Sim. Amava-o. Demais.

Um abraço

No abraço que me dás preciso de me sentir livre.
Poder dançar dentro dele a alegria do amor que sinto por ti.
Folgadamente. Sem apertos nem constrangimentos.
Não, não quero fugir do abraço que me estendes.

Gosto quando os dedos se juntam cruzando-se num enleio também ele abraço. Gosto assim. Desse duplo abraço que sem prender me conforta e não sufoca. Nunca.
Não é um abraço apertado que não me deixe respirar sem o teu sopro.

Somos os dois, em dois corpos separados, na mesma dança. E é assim que mesmo, ás vezes, em passos trocados a nossa dança se constrói: num abraço de espaços definidos e assumidos. Num abraço onde só cabemos nós e mais ninguém.

Um abraço na medida certa.

The show


Já não tenho idade para andar tão depressa e tanto! Sentou-se ofegante mas com a avidez bem desperta de falar com quem a escutasse.
O médico mandou-me fazer exercício. Não posso engordar mas agora comia qualquer coisinha.
Quer uma bolacha? Perguntou-lhe alguém a seu lado. Uma bolacha não que engorda, se fosse uma peça de fruta…
No entanto a oferta encorajou-a no seu exercício que poderia deixar de ser unicamente um monólogo. As danças que fazia tantas vezes sozinha podia agora fazê-las com um par. Mesmo que fosse ela a comandar ou tão-somente a ser observada.

Comecei aos 16 anos a fazer estas viagens com a minha mãe. Para o casino, jogar nas máquinas. Para um pouco e pergunta. Não joga, pois não? Não espera pela resposta. Não o faça. Logo que começa nunca mais acaba. Tenho 80 anos e não consigo parar. Gasto quanto tenho todos os meses neste casino. Não tenho dividas mas não tenho nada.

Continua a história de solidão que vive entre desejos de morte e histórias mais ou menos picantes com algumas palavras que pede licença para dizer. Ri e chora no intervalo da inspiração e da expiração. São os humores que lhe alimentam a vida.

Entra no comboio que a leva ao destino todas as semanas. Religiosamente. A principio com a mãe. Agora sem ela. Continua a história dos empregos, dos biscates. De como procura e encontra na roupa usada dos outros a que veste de forma digna. De como mesmo assim se sabe gozada por quem a vê passar. Porque lhe conhecem o vício e sabem que debaixo da máscara que tão bem sabe pôr há só uma velha viciada sozinha que vive numa casa grande de 3 pisos que um dia foi sua e agora habita por contrato até um dia qualquer.

Quase á chegada sem se saber porquê o comboio pára antes de qualquer estação.
O silêncio interrogativo instala-se. A voz dela quebra-o. Alguém tem alguma coisa que se coma? Todos a olham admirados. Ninguém responde. O comboio arranca de novo. É que ela não comera nada desde o meio-dia. Não tinha dinheiro para jantar e na ânsia do jogo esquecera-se de usar o vale que o casino lhe dera para comer uma refeição leve antes de apanhar o comboio.

Não queiras saber de mim



Rui Veloso e Mariza ao vivo

A folha

Ela entrou timidamente espaço dentro. Lufadas de ar empurravam-na devagarinho a tempos inusitados e faziam-na avançar por sítios desconhecidos. Mais folhas a esperavam. Doutras formas, doutras cores e tamanhos, já arrumadas em cantos onde nenhum vento as pudesse perturbar. A pouco e pouco ela avançava. O desconhecido começava a fazer parte dum território ganho entre medos e ansiedades. Afinal eram só passos e o que vinha não era mais que o que passava. Ela abandonava-se. Até que tranquilamente poisou. Num canto onde o fôlego do ar se deixou descansar e a libertou de receios deixando-a aninhar-se num lugar a que chamou casa até nova viagem

Boa noite meu amor.



Acordou com ele a olhá-la preocupado. Que tremia e os seus olhos não paravam. Sentiu que tinha de a acordar Pressentiu-lhe um pesadelo e não podia deixá-la continuar a deixá-la dormir assim. Ela largou uma gargalhada cristalina e abraçou-o a confortá-lo. Na verdade o sono que tinha, porque sonhava na realidade era uma anedota pegada. Contou-lho de rajada e riram os dois. Do sonho, do engano. Do amor que os unia.

Ás vezes tinham manhãs assim. De outras vezes era só ao abraço.

Em si

Era tarde apesar de ainda parecer cedo para que tudo acontecesse. Era tarde porque o sol se despedia. O laranja se substituía ao azul sem manchas de algodão doce que lhe lembrava carrosséis e música de bailes populares.
Uma tarde a fazer-se noite. E as decisões sem tempo feito a tardarem por estarem longe de ser maduras.
Talvez houvesse um destino igual àquele que fazia as noites acordarem os dias depois de sonos inquietos ou tranquilos ou até de muitas insónias que visitavam as estrelas que ora brilhavam ora brincavam de esconde-esconde. Talvez.
E nem fosse preciso decidir o que já estivesse por si só decidido há muito tempo. Se calhar a viagem far-se-ia onde agora estava. Sem de si arredar pé. E nem fosse preciso atravessar meio mundo, cruzar tanto mar! E para quê, afinal?
Que respostas podia encontrar que não lhe tenham já sussurrado ao ouvido e teimosamente tenha ignorado?

Quantas vezes o que procuras está tão só dentro de ti? Dizia-lhe a mãe.
Dentro de mim? Que sei eu? E vasculhava-se quase em desespero.
Perdia-se na amálgama de tanto querer.
Descobria por vezes que era no silêncio das perguntas que encontrava as respostas.
Que quando nada pedia tudo lhe era dado. Pasmava.
Ao esvaziar-se preenchia-se. Era mais. Melhor. Completava-se.

Era preciso ser cedo por muito tempo, até ser preciso. O tempo dir-lhe-ia a tempo o tempo certo.
Até lá as noites dormiriam, os dias acordariam, as estrelas fariam os seus jogos com quem lhes fizesse companhia.
A vida, essa, acontecia. A seu tempo.

Pontualidade ou falta dela

Era extremamente pontual. Nervosamente pontual. Tinha um relógio inscrito no ADN. Talvez. E a mania de lhe andar á frente. Sempre. Doíam-lhe os nervos dos atrasos que antecipava aos outros. Doíam-lhe as esperas mesmo sem as ter feito.

Conhecera-a quase por acidente. E de repente sucederam-se os telefonemas que não paravam. A vontade de a ouvir não cessava. Não havia tempo nem hora desadequada para o fazer. Dedilhar o teclado e esperar que ela atendesse. Não importava a espera.
Quis conhecê-la melhor. Convidou-a para jantar. Uma e outra vez.
Uma noite deixaram-se ficar até ao abraço e ao beijo que lhes deu vontade de mais encontros.
Combinaram-nos. Datas e horas.
E o seu relógio biológico julgou-se pressionado. Entrou em alerta.
Afastou-se.

De quando em quando manda-lhe uma mensagem, um beijo em ar de promessa ao que ela responde educadamente. Ás vezes convida-a mas não aparece. Inventa uma desculpa que ela já sabe existir. Não se surpreende. Sabe que ele estará sempre lá mas nunca com ela.
Por vezes irrita-se. Depressa se acalma. Irrita-se porque se deixou amar e amou. Irrita-se porque perdeu sem ter tido.

Hoje voltou a mandar-lhe uma mensagem. Tenho saudades. Ela deixou cair uma lágrima. O namorado perguntou-lhe, que tens? Respondeu-lhe, nada meu amor. Coisas minhas, Faltas de pontualidade. Atrasos.
O namorado encolheu os ombros. Ás vezes não a entendia.

O tempo



"Le temp qui rest"
Criação original sobre um texto de J.L. Dabadie pour e para Serge Reggiani

No lado errado da vida

Era ela. Só podia ser. Tinha-a encontrado. Do nada. Por mero acaso.
Nas palavras que sempre achou que lhe ouviria. Na voz que sabia pertencer-lhe. No sorriso que só ela saberia expressar. Nos gestos que só ela desenharia.
Era ela. Na forma como andava. Como sempre a tinha sonhado.
Aquela e mais nenhuma.
Como se finalmente a resposta a todos os seus anseios se tivesse feito presente.
Deixou o olhar preso nela. Talvez por demais evidente. Dariam por certo conta de tal espanto.
Viu-a dirigir-se a si. Acompanhada. Era João o seu velho amigo de universidade. Que vidas!
Manuel dá cá um abraço! Há tanto tempo. Que tens feito?
Vieram as histórias e as apresentações.
Ela, também desse tempo partilhara algumas vivências. Recordava-o agora.
A semente do sonho que deixou crescer dentro de si.
Dá-nos os parabéns Manuel. Vamos ser pais.

Do resto não se lembra. Abateu-se um nevoeiro. Igual ao que vivera nos últimos tempos confinado aos tempos entre a casa e o trabalho. Num querer sem saber o quê. Num desejo sem objecto.
Talvez a tivesse esperado enquanto terminava relatórios ao computador embriagado pelo som monótono das teclas em noites sem fim.
Esperou-a também no fundo dum copo sentado sozinho no balcão dum bar qualquer sem mais ninguém, fora de horas.
Algumas vezes esperou-a nos braços doutras mulheres que já não recordava por não lhe saberem a nada.
E em milhentas filas de transito, nas caras de quem conduzia quando se dirigia para o trabalho.
Sabia que sempre a esperara… no lado errado da vida.