Morada

Entrou devagarinho. A pouco e pouco espraiou-se nela.
Com a ternura no olhar e a doçura nos gestos. Fez nela abrigo e morada.
E ela deixou-o ficar-se. Em espaços que ainda vazios eram seus.

Gravadas ainda estadias doutros, noutros tempos não a impediam de alojar quem quisesse pelo tempo que fosse.
Quase nunca sabia como tal acontecia.
Limpas as réstias de quem a habitava deixava-se de novo invadir.
E renovava-se. Precisava de o fazer.

Queria não mais esperar.
Saborear os instantes como se fossem uma vida.
Deixar-se ficar assim em contínua viagem com quem nela morasse, mesmo que por tempo incerto.

E tantas vezes desejou que fosse eterno!

Eu vou


Adriana Calcanhoto


Nada ficou no lugar
Eu quero quebrar essas xícaras
Eu vou enganar o diabo
Eu quero acordar sua família...

Eu vou escrever no seu muro
E violentar o seu gosto
Eu quero roubar no seu jogo
Eu já arranhei os seus discos...

Que é pra ver se você volta,
Que é pra ver se você vem,
Que é pra ver se você olha,
Pra mim...

Nada ficou no lugar
Eu quero entregar suas mentiras
Eu vou invadir sua alma
Queria falar sua língua...

Eu vou publicar os seus segredos
Eu vou mergulhar sua guia
Eu vou derramar nos seus planos
O resto da minha alegria...

Que é pra ver se você volta,
Que é pra ver se você vem,
Que é pra ver se você olha,
Pra mim...



A seu tempo

Não, não importa o tempo que se tem, dizia-lhe ele. Importa só como se vive.
O valor que se lhe dá. Nada mais.
Tempo é tempo. O sentir é maior. Sente apenas.
Quando sentes, nada mais importa.

E a dor?

Também se alivia. Também se faz coisa nova.
Deixa que aconteça o que está para vir. Que se faça caminho. No tempo que for.

E o amor?

Dura enquanto existe. E volta sempre.
Sem aviso, em outro, doutro.
Com o tempo que lhe é próprio.

E…

Calou-lhe as palavras pousando-lhe um dedo sobre os lábios. Olhou-a.
O tempo, aquele porque desesperas, trar-te-á as respostas sem te dares conta.
Fica atenta. Descansa.

A seu tempo…

O tempo

A vontade não pode mais que um só desejo.
Pode mais o tempo. A distância entre o sonho e o ser.
E é, ás vezes, tão longa!

Quando se chega esvai-se e olha-se já passado num presente que se esgota sem darmos conta.
Apetecem momentos eternos e só nos fica memória.

Memória do que foi e do que está para vir.
E a espera é medonha. Para um tempo que é fugaz!

Quando ás vezes nos parece muito perdemo-nos em tanto que há para fazer.
Quando nos parece curto esquecemo-nos de o viver.
Entre um desejo e outro, a vontade de ser no tempo que se quer.

Nem desejo, nem vontade podem contra o tempo.

Não era a noite

Não, não era a noite que sufocava. Era ele que ficava sem ar.
Uma súbita vontade de liberdade duma qualquer coisa que lhe oprimia o peito.

Destapou-se. Olhou á volta. A seu lado, ela, dormia repousada.
Tentou ajustar a almofada, mudar de posição sem que ela desse conta. Um formigueiro estranho invadia-o. Não sabia de onde nem para onde. E o ar a faltar-lhe.
Sentia-se implodir. Uma chama devorava o rastilho que sentia apequenar-se sem piedade.
Não queria perturbá-la. Levantou-se em silêncio numa ânsia de mais longe.
Percorreu o corredor ás cegas. Na cozinha bebeu um copo de água. Respirou fundo, quase se engasgou.
A luz dos candeeiros da rua estendia-se até ali. Que horas seriam?
Sentou-se e logo se levantou. Tinha de fazer qualquer coisa. Com urgência.

Há algum tempo que nada acontecia nele. Sentia-se amorfo. Respirava, só.
Vasculhava em si as ideias que tardavam em fazer-se. Sentia-se perdido na imensidão do nada.

Uma vontade a crescer em terreno baldio que não conseguia exprimir-se deixava-lhe um nó que agora parecia desatar-se.

Do outro lado da casa, ao fim do corredor que agora atravessara, uma porta fechada aguardava-o. Guardava bocados da sua alma.
Coisas inacabadas. Pincéis em copos sujos de tinta, telas desvirginadas em começo de namoro.

Foi para lá que se dirigiu, decidido. Na sua cabeça atropelavam-se em filas desordenadas as pinturas que ainda não fizera.
Pegou nos pincéis, abriu latas de tinta, tirou dum cavalete uma tela sem futuro…
As imagens corriam-lhe até aos dedos agora em ânsias de se fazerem e serem os sonhos que há muito deixara de sonhar.

Não se lembra de ter ouvido barulho nenhum. Nem do passar das horas.
Estava num sítio de que tinha saudades e não sabia.

Quando ela abriu a porta á sua procura deparou-se com o homem por quem se tinha apaixonado. Ali estava todo o vigor, a magia, a vida que sempre soubera existir.
Ficou-se a vê-lo naquele frenesim de cores e estocadas de pincel.
Devagar, deu meia volta e encostou a porta devagarinho.
Aquele era o tempo dele.

A carta

No meio das contas e de tanta coisa á solta, ela lá estava.
Num envelope azul as letras desenhadas esperavam por ela.
Abriu-a em surpresa. Há muito que não recebia cartas assim. Há muito que já não esperava nada.

Dentro as palavras sufocadas no aperto do invólucro pediam-lhe que as ouvisse.
Espalhavam-se ao longo das páginas que agora desdobrava. Reconheceu-lhes a forma. Um enovelado de que não perdera memória.

E desfilaram imagens que julgava apagadas.
E sentiu arrepios que lhe turvaram os olhos.

Sentou-se logo ali, num degrau. Encostou-se á parede. Sentia-se tonta.
As palavras dançaram por instantes.

Tantas foram as imagens que ali se cruzaram… As vontades renascidos…
Apertou a carta contra o peito num abraço em que o envolvia também. A ele.

Não. O tempo nada havia apagado.
Nem o tempo, nem a distância. Bastara um envelope azul e estavam juntos outra vez.

Sim, meu amor, ainda estás dentro de mim!

Minha música

Letra de Adriana Calcanhoto

Minha música não quer
Ser útil
Não quer ser moda
Não quer estar certa...

Minha música não quer
Ser bela
Não quer ser má
Minha música não quer
Nascer pronta...

Minha música não quer
Redimir mágoas
Nem dividir águas
Não quer traduzir
Não quer protestar...

Minha música não quer
Me pertencer
Não quer ser sucesso
Não quer ser reflexo
Não quer revelar nada...

Minha música não quer
Ser sujeito
Não quer ser história
Não quer ser resposta
Não quer perguntar...

Minha música quer estar
Além do gosto
Não quer ter rosto
Não quer ser cultura...

Minha música quer ser
De categoria nenhuma
Minha música quer
Só ser música
Minha música
Não quer pouco...

http://www.musiconline.com.br/midivoices_play.php?id=2&idsom=839

Ainda agora

Ainda agora pensava nisso.
Em como era fácil cativar quando não se queria prender. Como a atraíam as coisas que a libertavam.
E parecia quase paradoxal. Quase impossível ser assim.

Tudo era tão simples. Duma fluidez e serenidade em que se abandonava sem receios Embalada num peito feito colo. Ou á deriva como folha de Outono em correntes de água lisas e límpidas. Suavemente.

Ainda agora se deixava ir. Para lá do pensamento. Sentia só.
Ainda agora.

Confidences


Gotan Project - legendado

Compositor - Juan Gelman
Voz de Cecilia Roth

se sienta a la mesa y escribe
«con este poema no tomarás el poder» dice
«con estos versos no harás la Revolución» dice
«ni con miles de versos harás la Revolución» dice

y más: esos versos no han de servirle para
que peones maestros hacheros vivan mejor
coman mejor o él mismo coma viva mejor
ni para enamorar a una le servirán

no ganará plata con ellos
no entrará al cine gratis con ellos
no le darán ropa por ellos
no conseguirá tabaco o vino por ellos

ni papagayos ni bufandas ni barcos
ni toros ni paraguas conseguirá por ellos
si por ellos fuera a la lluvia lo mojará
no alcanzará perdón o gracia por ellos

«con este poema no tomarás el poder» dice
«con estos versos no harás la Revolución» dice
«ni con miles de versos harás la Revolución» dice
se sienta a la mesa y escribe

Regresso

É aquela batida que o acompanha sempre. Quase não deixa que acabe para a por a tocar de novo. Como um cigarro atrás de outro quando o vício se instala.
Regressa a casa.
Um regresso em que não houvera partida, como se de lá nunca tivesse saído.

Naquele Sul quente empoeirado de poentes laranja a emoldurarem o horizonte.
Sobe-lhe o cheiro a terra acabada de lavar pela chuva mole dum tempo que sem aviso a deita á terra.
Uma outra música, um ou dois pares em abandono. Roupa colada ao corpo, cabelos escorridos sem movimento no balanceio a que a música obriga. Puro contágio.
Ela, esguia, solitária. Entregue ao ritmo que dança com a música e a chuva que não deixa de cair.
Procura-lhe os olhos. Caminha para ela ensaiando os passos e as palavras.
Atravessa uma cortina tecida de finas gotas de água tépidas que descem em névoas rente aos pés ainda hesitantes.
Estica um braço, enlaça-a e rodopia com ela. A melodia que ouve vem do bater do seu coração.

Não há chuva nem música. Não há gente nem poentes.
Há um regressar a casa numa partida que nunca aconteceu nos braços duma batida que o acompanha sempre.

Blues

Outra vez. Tudo recomeçava. Por mais que tentasse tecer novas teias o rendilhado repetia-se como se nada de novo houvesse a fazer.

Nunca acreditara no destino. Ou no que lhe diziam as linhas da palma da mão.
Preferia movê-las ao encontro do outro na carícia feita abraço.
Fazer, com elas, da promessa coisa feita.

Era o milagre do querer e da vontade que a movia. Essa fé a que se entregava.

E perdia-se num ciclo onde tudo parecia não ter fim.
Não fosse a fé…

Recomeçaria até não ter de o fazer. Nunca mais.
E num crochet renovado seria mais e melhor.

Até lá não se deixaria embalar pela batida dolente dos blues que lhe habitavam a alma. Beber-lhes-ia a cadência e alimentaria neles a esperança.

Amnistia Internacional


Basta uma assinatura!

Naquele instante

Olhou-a como se nunca o tivesse feito. Despiu-se de tudo que ela lhe fora deixando. Nunca lhe havia bastado.
Sacudiu-o. Para longe de ventos que o arrastassem de novo até si.
Virou-lhe as costas.

Ela sentiu-lhe um olhar diferente. Penetrante.
Sentiu-se mesmo incomodada. Possuída. Como se entrasse por ela adentro sem permissão.

Deixou-se invadir. Há muito que o desejava.
Que ele o fizesse. Mais ninguém.
Deixou-se ser. Abriu fronteiras.
Não o queria estrangeiro em si.
Ensinar-lhe-ia as línguas do seu país.

Una musica brutal



Música de Gotan Project
Participação de
Chita Rivera e António Banderas

Do filme " Take the lead"

A contorcionista

Tinha formas únicas de ser ágil.
Formas de sentir e estar acrobáticas. Quase impossíveis.
Elástica. Moldava-se com elegância rodeando obstáculos que deixavam de o ser.
Permitiam-lhe bailados em coreografias inimagináveis.
Moviam-na músicas que só ela ouvia num ritmo que lhe pertencia desde que se conhecia.

Havia quem procurasse nela inspiração. Quem procurasse nela saciar a sede.
Perdiam-se nos seus encantos enfeitiçados nos seus gestos.
Desatinados dos rumos vagueavam sem destino.

Alheada de tudo o que á volta dela acontecia, continuava o seu bailado de contorcionista atenta á sua própria evolução.

Da primeira vez

Da primeira vez era diferente. Parecia-lhe tudo possível.
Sonhar era quase obrigatório.
E ela sabia fazê-lo. E nunca desistia de o fazer.
Nem que por vezes acordasse em pesadelo. Que acordasse! Que acordasse...
Estaria viva, recomeçaria.
Tudo seria possível uma vez mais. Até que ela o quisesse.

E haveria muitas primeiras vezes. Sabia-o.
Procurá-lo-ia. Em cada momento.

Serão tantos os momentos ainda para vir!

Se eu morrer amanhã, que me dirás hoje?

E se eu morrer hoje que me terias dito ontem? Perguntas-me de volta.
O que te digo agora e sempre. Gosto de ti. E gostarei até a memória de ti se apagar. Respondo pensando que te calo assim.
Quem gosta assim, dizes-me tu, não se apaga da memória de quem também assim gosta.
Tu sabes, sorrio, e eu também sei.

Mas, sabes, se fosse dono do futuro e soubesse que amanhã não estarias aqui faria tudo o que pudesse levar-te a sentires-te cheia de ti mesma, sem faltar a a ultima cusquice, o telefonema usual da família, a novidade do jornal das oito,a viagem do ultimo dia, tal como qualquer outro dia, com alguém por companhia.
Adormecerias vencida pelo cansaço… serena. Não saberias que o amanhã nunca aconteceria

Apetece-me beijar-te. Posso?
Abraça-me. Guarda-me. Revive-me, Arquiva-me no armazém das memórias para os tempos em que não estarei. Deixa-me fazer o mesmo contigo. Absorver-te.
Não digas nada.

Posso pedir-te um favor? Não te vás. Não ainda.
Porque tal como ontem, hoje não tenho o tempo necessário para te dizer quanto sinto… seria tanto!
E assim sendo, talvez, adiando sempre… jamais morras.
Em mim pelo menos.

E se insistires em partir, dir-te-ei simplesmente, até logo!