O diário

Pedira-lhe um diário. Um relato que um dia partilhassem. E revivessem.

Logo que pode lera-lhe as primeiras páginas com sofreguidão.
Queria saber-se nela.
Ver-se pelos olhos que o fizeram apaixonar-se. Daquela maneira que não percebia.
Das outras vezes tudo tinha sido mais pálido. Agora que conhecia as cores que nunca imaginara existir, viajava extasiado. Numa embriaguez que em vez de lhe adormecer os sentidos lhos despertava ainda mais.

Estranhava-lhe a forma quase seca que ela usava na escrita. Perdia-se dela.
Daquela que o amava como ninguém o tinha feito.
Que descobrira nele um homem que perdera há muito entre a vida que se fez.
Da mulher fogo que fazia no seu coração fogueira.

Perdeu-a. Não soube se por tanto lhe pedir.
Se por tanto lhe querer.

Perdeu-a porque nunca a encontrou.

Os teus olhos

Os teus olhos estavam tristes, apagados.

Fui-lhes testemunha. Queria não o ter sido por tão inútil ser tal olhar.

E tu vagueavas pela casa sem rumo.
O prazer de estar e partilhar o teu espaço com os amigos de sempre já há muito não transparecia no teu rosto, agora opaco.

Mãos nos bolsos, ombros descaídos, ausente por fora e por dentro, habitavas sítios que eu não suspeitava.

Já não cabia no teu mundo. Desiludi-te pela primeira vez e vi bem o que te fiz. O orgulho e a vaidade que tinhas em mim, feriu-se. Tiveste vergonha de mostrar a ferida que te abri quando gostavas mesmo era de mostrar a “tua menina”. Com a ternura dum pai que não tive doutra forma.

Senti que nessa tristeza bailava o desapontamento. Que ela nascia de mim.
Não te pedi desculpa, então. Nem nunca mais.

Partiste cedo demais. Levou-te talvez a tristeza.

É certo que voltaste. Sonhei-te durante muito tempo.
Sempre meu amigo.
Era como se voltasses para mim e só para mim.
Sem tristeza nem saudade.

Guardei-te aí. Com a nitidez que o tempo não consegue apagar quando se ama assim.

Acompanhas-me agora. Como sempre o fizeste.
E é em ti que penso nos passos que dou.
Quero continuar a ser a tua menina e não te desiludir nunca mais.

Lá onde estás, podes falar-lhes de mim. Como eu falo de ti.

Com o coração!

O pretexto

O pretexto foi a troca de olhares. E apeteceu. Ela tinha-lhe a fome sempre insaciada. Agora, mais que nunca presente.
Gostava da forma como ele filtrava o que via. Fazia-lhe ter vontade de andar por lá também. Disse-lho.
Ele sugeriu-lho.

Quando se viram ela deixou as palavras rolar. A pressa de desvendar a magia do sentir, a vontade e o despudor de o fazer eram palpáveis na alegria que o brilho dos olhos deixava adivinhar.

Fazia-o sempre assim. Não se sabia doutra forma.
Não havia máscara que a transfigurasse.

Ele absorvia-a. Só.
Espantava-se na descoberta do mundo dela. Nas suas paixões... Na inocência das suas paixões.
Na entrega que dela emanava. Sem diques nem represas. Livre e fluida.

A doença


Uma qualquer coisa que o prendera há muito instalara-o na porta dum tempo que teimava em não se deixar avançar.
Pesado demais para um corpo que deixara a pouco e pouco desaparecer. Porque tudo desaparecia.
Só o tiquetaque metódico persistia, gotejando sem jeito de se ir.

As vozes que foram gente são agora fantasmas que povoam noites mesmo que o sol as ilumine. Tem-lhes agora medo de tão estranhas se terem feito.

De vez em quando um sorriso assoma-lhe os lábios, agora mudos.
É a presença das memórias que teimam em fazê-lo achar-se vivo.
Logo murcha de tão vago ser. E o olhar que se fixa num ponto sem destino, vagueia á procura doutros esgares.

Porque está neste lugar, não o sabe, já. Perdeu-se a razão na ausência dos que amava.
Nem sabe mesmo que lugar é este. Para quê dar-lhe um nome se não o quer para si? De que lhe valem os nomes se nada lhe dizem?
Se mesmo assim se perde, por não saber mais o que procurar…

E afunda-se, talvez subindo por tão penoso lhe parecer.
Para sempre só.

Dizem que a doença o levou ali.

"Mankind Is No Island"

Tropfest NY 2008 winner, by Jason van Genderen

O oásis existe

Apesar de já nada esperar, fica sempre uma vontade de que algo aconteça.
Para inverter magias perdidas em constantes desencantos.

É um tempo de dunas sucessivas num horizonte sem fim.
Era preciso armazenar para ter agora. Pelo tempo que fosse.
Poder sobreviver á caminhada.
Bastar o dourado da areia. O movimento do caminho a fazer. As pegadas que já se apagaram.

(Um coração não tem duas bossas!
Terá a vontade?)

O oásis existe.

Sede

Fazes-me ter sede.

Não. Não te desculpes. Nem deixes de me fazer sentir assim.
Sedenta.
Esta sede que me nasce do que vem de ti… Preciso dela.
Dá-me vontades de outras coisas que adormeci em mim. Fá-las espreguiçar.
Levanta-as e põe-nas a caminho do tempo que está para vir.

És jardineiro, sim. Destes quereres.
Desfaz-me esta secura.

Sacia-me as sedes com a água que sei, jorrar, de ti.

Grata

Foi nos teus olhos que li quanto me fazias feliz.
No sorriso aberto e nos braços estendidos que vi a alegria que te fazia nascer.

Nesse instante que retenho na memória percebi a dádiva de nos termos encontrado.

Nada entre nós foi em vão. Nada o será.

Ter-me cruzado contigo e com outros como tu fez de mim o que hoje sou.
Eternamente grata.

Pelo que sou e tenho. Pelo que posso fazer!

Por acaso

Já tinha ouvido falar dela. Ainda não a tinha visto.

Naquele dia tinha-se levantado ligeiramente indisposta. Não dormia já há várias noites e decidira tomar uma das suas pílulas. Faziam-na sempre sentir assim. Por isso as evitava. Decidiu sair, tomar ar. Deixar que o vento fresco que corria nessa manhã lhe levasse para longe aquela agrura.

Não se dirigiu ao carro. Apetecia-lhe andar.
Caminhou sem destino, sem ver, sem escutar. Começava a sentir-se melhor.
Já tinha passado, sem se dar conta, pelo cafezinho onde costumava sentar-se e ler as primeiras notícias acompanhada de um sumo de laranja natural.

Quando os pensamentos se atropelavam na sua cabeça, perdia-se de tudo. Mesmo do que a ocupava.

Acabou por parar num sítio que ainda não conhecia. Uma pequena esplanada virada para um jardim. Sentou-se. O coração estava acelerado. Não costumava andar tanto. Retomou a pouco e pouco o seu bater cadenciado.

Ao largo, uma miúda sentada na relva a brincar com uma boneca. Sozinha.
Por onde andariam os pais?

Pediu um sumo como fazia habitualmente.

Uma voz que reconheceu de imediato despertou-a. Chamavam-na.
Virou-se na direcção da voz e reconheceu-o. Começou a levantar-se quando o viu abrir os braços e aninhar-se. Na sua direcção correu a pequenina que vira a brincar.
Deixou-se cair. Colou-se á cadeira. Suspendeu a respiração.
Tinha-lhe dado, a ela, o seu nome.

Á filha que não tiveram juntos.

Como devia ser

Disse-lho logo que pode. Com a urgência das coisas que não podem ser adiadas.

Não queria fazê-la sonhar que seria só seu.
Amá-la-ia como se fosse única.
Mas seria uma entre outras. Outras que amava da mesma forma.

Ela teria somente de se deixar amar. Era só o que lhe pedia.

Disse-lhe ainda que faria tudo por ela. Que com ele estava segura, protegida, amparada. Ele seria o seu ombro quando ela se quisesse deitar nele.

Surpreendeu-se quando lhe sentiu o desapego, o afastamento.
Se lhe dava tudo…. Tudo o que sabia e podia dar… Porque lhe fugia ela?

Não a prendeu. Alargou o laço com que a envolvera e deixou-a ir.
Passou a olhar com saudade o tempo em que nada lhe havia dito.
Não se arrependeu de o fazer mas percebeu que por isso a perdia.

Ela estaria lá. Ele noutro sítio. E seria sempre assim.
Nem um nem outro deixaram de ser fieis ao que eram.
Não houve julgamentos. Nem traições.

Tudo foi como devia ser.

De tempos a tempos

De tempos a tempos dava sinal de si.
Parecia ter-se despedido ainda agora… Retomava as palavras de sempre como se nunca tivessem sido interrompidas.

Promessas antigas faziam-se novas. Acordavam-se sentimentos, desmaiados, em espanto.
O lugar era já outro e tudo permanecia como se não o fosse.

A mesma forma de sentir. O mesmo encanto.
Apesar do intervalo.

Olhavam-se os dois como o tinham feito da primeira vez.
Com a mesma ânsia de se saberem. A mesma vontade de se tocarem.

Ainda, apesar de tanto tempo de permeio!
Era assim e sê-lo-ia sempre.

Esconder-se-ia de novo até não lhe suportar a falta.
Tinha medo do que tanto amor lhe prometia.

O que vier

Havia quem pensasse saber já como tudo acontecia e nunca esperasse outra coisa.
Esses eram os que mais se surpreendiam.

Aos outros parecia-lhes natural a mudança.
Era assim que olhavam as coisas. Com olhos de ver crescer.
Olhos e coração abertos. Atentos e despertos.

Sabiam de quem hibernava. Pressentiam-lhes as metamorfoses.
Sonhavam-lhes as asas abertas, prontas para novos voos.
Sentiam-lhes o vigor e a vontade de o fazer.

Por isso, não estranhavam o que viesse. Sorriam e abraçavam-no.
Preparavam-se para novas viagens. Faziam-se ao caminho.

Consigo levavam só a vontade de navegar. Com quem também o quisesse.
O rumo, fá-lo-ia a caminhada.
Bastava estar avisado, ler os sinais, adivinhar-lhes o sentido.
E que nada os surpreendesse para além da surpresa maior que é viver.

Love me

Love me like a river does
Melody Gardot

Love me like a river does
Cross the sea
Love me like a river does
Endlessly
Love me like a river does
Baby don’t rush you’re no waterfall
Love me that is all
Love me like a roaring sea
Swirls about
Love me like a roaring sea
Wash me out
Love me like a roaring sea
Baby don’t rush you’re no waterfall
Love me that is all
Love me like the earth itself
Spins around
Love me like the earth itself
Sky above below the ground
Love me like the earth itself
Baby don’t rush you’re no waterfall
Love me that is all