O sono

Achava sempre que o sono era o motivo perfeito para se ausentar.
Dava-lhe as boas vindas deixando-o instalar-se nas pálpebras que agora pesadas desciam devagarinho. Fechava as janelas no abraço cúmplice das pestanas. Deixava-se envolver. Abandonava-se e por lá ficava até ter fome de acordar.

Havia quem a estranhasse e achasse que poderia não estar bem. Enchiam-na de perguntas a que não queria nem sabia responder. Deixassem-na dormir, desligar as luzes e entrar devagarinho no escuro que em vez de medo lhe trazia tranquilidade!

Sabia que depois, sem qualquer razão conhecida, tudo fluía melhor. As pausas devolviam-lhe a energia necessária para colher a vida.

Tanto elas como os silêncios nos deixam ouvir e fazer da vida uma melodia ritmada que acompanhamos dançando sem ruídos e correrias.

Que nunca o sono se fizesse ausência.

Hoje

Levantara-se como o fazia todos os dias. Depois duma espreguiçadela e um olhar em volta a espreitar a cor do dia. Era a luz que crescia devagarinho deixando as sombras da noite que o acordava. Lambia-lhe a cara num beijo rotineiro e fazia-o despertar.

Hoje arrastara-se até ao chuveiro. Um cansaço quase inesperado tinha tomado posse dele durante a noite. Deixou a água correr morninha. Cobria-o agora da cabeça aos pés. Um lençol a cobri-lo e a afagá-lo. Encostou-se á parede de azulejos ainda frescos. Sentiu um arrepio mas acomodou-se. Só ouvia a água a correr. Deixou-se estar.

Ao longe, ouviu o telefone a tocar. Estranhou que a essa hora alguém quisesse falar com ele. Não era hábito.
Fechou as torneiras, agarrou numa toalha que apressadamente pôs á sua volta e correu para o telefone.
Deixou no chão as pegadas molhadas que quase o faziam escorregar. Atendeu.
Uma voz nasalada dizia-lhe do outro lado: O João deixou-nos, pá!
A seguir vieram os soluços. O João?! Ainda ontem estivera com ele. Não, não podia ser. Calma, pediu. Que se passa?
Numa forma entrecortada ouviu o que suspeitara. O amigo de tantos anos, de tantas confidências tinha partido. Sem aviso. Com um sorriso na cara. Lembras-te, pá, daquele sorriso que ele tinha sempre para nos calar tristezas?
Lembrava. Não o podia esquecer. Tantas vezes lhas calara!

Deitado agora na cama deixou as lembranças que tinha dele aconchegá-lo. Chorou. Não se lembra até quando ou quanto.
Acordou gelado. Sentiu a falta do amigo que agora só traria dentro de si.
Sabia que as memórias dos sorrisos partilhados lhe afastariam as tristezas.
Ficava com a maior das heranças. Ter podido andar a par com ele enquanto ele vivera.

Um dia encontrá-lo-ia. Percorrido também o seu caminho. E sorririam juntos.

Levantou-se, vestiu-se e foi até á esplanada onde todos os dias se encontravam. Talvez tudo fosse uma mentira. Obra do cansaço que sentira de manhã.

Ficou sozinho a olhar o mar. Um mar tão salgado quanto as lágrimas que lhe corriam.

O meu país

Amontoava-se tudo duma forma desordenada. Tanto para fazer e tão pouco tempo para o desfrutar. A pilha crescia e com ela a angústia de não lhe saber o fim.
Apetecia-lhe parar. E que com ela parasse tudo. Num passe de magia.

Imaginava-se a olhar de cima calmamente. A descobrir as coisas de que perdera o rumo no meio de tanto tempo a construir. Aí deslocaria mentalmente as coisas para o lugar devido. Num mapa que desenhava a pouco e pouco estabelecendo as coordenadas com minúcia.

Algumas coisas incomodavam-na. Sempre o tinham feito. Olhá-la-ias agora do sítio em que se pusera. Afastada. Assim permitia-se vê-las de todos os ângulos. Não se deixando afectar. Afinal tudo acontecera já. Num momento qualquer. Só a marca ficava. Iriam para um lugar que já estava programado no mapa que criara. Num país de reciclar. Num país de recomeçar.

Sorria ás coisas que deixara de ver e julgava perdidas. Acarinhava-as e depositava-as com cuidado dentro de si. Fá-la-iam caminhar. E sonhar.

Quando tudo voltasse a andar tinha a certeza que continuaria a criar pilhas de coisas desordenadas. Que um dia arrumaria mesmo que a magia de parar não acontecesse.

Sabia no fundo que era vida que construía. E não há planos que previnam a desarrumação que ás vezes se instala.

Há só uma alma com a dimensão imensa de países por povoar.

Procurara...

Procurara por toda a cidade um lugar onde pudesse ficar. A viagem tinha sido comprida e estava extenuada. Farta de tanto procurar acabou por parar num bar em frente ao mar. Pediu um sumo fresco e uma sandes.

O bar estava semi-vazio apesar de ser época alta. Além dos empregados de mesa e de balcão estavam dois ou três clientes. Uma música discreta enchia o ar. Ficou a olhar através dos vidros quem passava. Deixou os pensamentos vaguear. Talvez tivesse até adormecido por instantes.
Á sua frente estava já o sumo, a sandes e alguém que não conhecia. Assustou-se. Há quanto tempo estaria ali? E porquê?

O homem que se sentara na sua mesa sentiu-lhe o medo e tranquilizou-a. Desculpa, vi-te sozinha e pensei que precisasses de ajuda. Quando te olhei melhor, reconheci-te. Não te lembras de mim?
Olhou-o com mais atenção. Sim, agora via quem era. Estava longe de o suspeitar ali. Vira-o pela última vez já há alguns anos. A pouco e pouco foram deixando de se falar. Perderam-se um do outro. Lembrava-se que ele partira para o estrangeiro á procura dum destino melhor. Desatara todos os laços para não ter de voltar e poder andar quanto tivesse de andar.

As lágrimas correram-lhe pelo rosto. Tentou disfarçá-las. Ele sorriu. Apagou-lhas com o toque suave dos dedos.
Continuas na mesma, tão real e autêntica como sempre foste. E tanto medo tive disso!

Falaram ainda durante algum tempo. Pagou a conta.
O empregado de mesa viu-os sair de mãos dadas.

E-mail

Tinha uma vontade enorme de a abraçar. Um abraço forte de que sobrassem memórias. Talvez que ao fazê-lo se transpusesse de si quanto tinha para dar.
Talvez esse abraço a fazer-se colo fosse o ninho a que podia regressar em tempo de invernia. E fosse calor e luz.
No tempo do aconchego todas as dores se apaziguavam. Libertado o corpo da amargura haveria espaço para ver e perceber melhor.

Era um abraço assim que tinha guardado para ela.
Sempre que ela o quisesse. Mesmo que as forças então estivessem ausentes. Mesmo assim. Sentia que não lhe faltaria.
Como ela agora lhe faltava. Por estar tão longe!

Sentou-se na secretária e olhou o ecrã vazio do computador. A pouco e pouco desenhou em letras alinhadas o que sentia. Só o barulho das teclas lhe interrompia o correr do desejo que queria fazer real.
Foi com o manto estendido das palavras que a embalou no abraço que nascia dentro de si.
Tecido o manto, selado o abraço, mandou-lhe num e-mail.
Correu o tempo e o espaço e viu-a na sua frente.

Por agora bastava um abraço assim. Numa tela de palavras pintada.

Crescia-lhe a vontade para mais abraços.

A Senhora dos Sorrisos

Ouvia as vozes, os risos, adivinhava as brincadeiras pelos passos que ficavam a ecoar através das paredes que os separavam.

Agora vivia sozinha mas já tivera a casa cheia. Uma vida dedicada a tantos que com ela partilhavam o espaço. Filhos, marido e até algumas vezes os netos com as traquinices que lhe vinham á memória pelos sons que as paredes fracas não abafavam.
Desejara em tempo um tempo só para ela. O canto refúgio que lhe guardasse os sonhos que não pudera sonhar. Adiados sempre para um dia qualquer. Um dia…
A pouco e pouco despediram-se de si aqueles a quem se dedicara. Aqueles que lhe ocupavam a vida e dela faziam ninho. Ficou feliz a vê-los partir e a construir também.
O marido há muito que não fazia parte da vida dela. Era agora marido de alguém noutra casa qualquer. De vez em quando via-o e confirmava a sua felicidade. Fazia-lhe bem.
Ela também ocupara e ficara na vida doutros… Por pouco tempo. Sempre por pouco tempo. Temia abalroar espaços e deixar-se abalroar.

Ia buscar os sonhos a sítios desconhecidos e acordava-os fazendo-os reais. Pintava agora. Não se preocupava com alguma anarquia que reinava entre as coisas dela. Pincéis ainda com cor de tinta, telas em cavaletes espalhadas por sítios de luz, frascos, tubinhos e mais frascos coloridos por todo o lado a espreitá-la e a chamá-la a fazer o que descobrira gostar.
Jorravam imagens de dentro dela. Imagens que tentava agarrar e transportar para aqueles painéis brancos ávidos de cor.

Eram música aqueles sons de vida que se apoderavam do seu espaço. Música de fundo a sonhos a desenrolar-se. Deixava-a invadi-la. Dançava a par com ela. E ela sorria feliz naquele canto refúgio que tantas vezes desejara.
Pendurados nas paredes sorriam para ela os rostos desenhados através da neblina, que ela sempre amara. Lugar de mistério e magia.

Conhecia agora a plenitude. Sentia-se livre e tranquila.
E partilhava-o com ternura.

Era conhecida como a Senhora dos Sorrisos.

Deu-lhe um beijo na face depois do abraço apertado. Olhou-o e disse-lhe, vou bem, fica também. Afastou-se devagar e deu meia volta. Entrou no autocarro que a levava a casa. Ele ficou a olhá-la ir. Viu-a sentar-se e acenou-lhe com a mão. Fico á tua espera, disse-lhe destacando cada palavra para ela o poder perceber. Ela sorriu-lhe e respondeu-lhe com um beijo soprado na ponta dos dedos.
O autocarro partiu e ele foi-se embora também. Levava-a nas memórias que guardavam ainda o seu cheiro. No banco vazio ao seu lado estava ainda desenhado o corpo dela. Passou por ali a mão suavemente como quem acaricia. O calor que ainda ali estava invadiu-o.
Era muito tarde já. Estava cansado. Tinham feito as maiores loucuras. E o riso dela ainda ecoava a seus ouvidos. Nunca se sentira tão feliz.
Entrou no quarto. A cama ainda desfeita desvendava os segredos partilhados. Deitou-se no lugar que ela ocupava. Tentou simular a forma como ela o fazia. Queria sorvê-la. Agarrou a almofada vazia e puxou-a até si para um abraço que já lhe faltava.
Foi quando viu um papel cuidadosamente dobrado em quatro. Para ti, dizia. Na letra que só ela sabia desenhar. Olhou para ele demoradamente como quem quer adivinhar. Prolongar este tempo fá-la-ia mais próxima. Levou o papel aos lábios, cheirou-o e assim dobrado pô-lo entre a cara e a almofada num gesto de aconchego. Adormeceu.

Acordou com uma impressão estranha que o fez coçar a cara. Era o papel que ela deixara. Acendeu a luz, sentou-se amparado por uma almofada e abriu-o.

Meu amor, deixo contigo o melhor que posso dar-te. Quero-te feliz e livre.
Quis deixar-te as melhores lembranças, as mais doces. Espero tê-lo feito. Agora vou para não mais voltar…

Levantou-se de um salto. Procurou-lhe as marcas pela casa toda. Não encontrou nada. Só ele sabia que ela ali tinha estado. Só na cama as marcas que ele já desfizera.
Tivera sempre medo que ela um dia não voltasse.
Tinha chegado o dia.

Aninhou-se no escuro e chorou.

Espanto

Há quanto tempo já não se viam! O tempo necessário para arrumar a desordem que se instalara nele quando ela partira.
E agora cruzava-se com ela. Na mesma fila de banco em que a tinha visto pela primeira vez. Numa outra cidade.
Reconheceu-lhe o jeito de se abandonar em espera. Cabeça levemente pendida, mãos nos bolsos em abandono e um pé levemente inclinado apoiado só no salto do sapato. Desenhava no ar figuras imaginárias com a biqueira. Talvez fizesse contas á vida. Talvez antecipasse assim o passo a seguir e a direcção a dar. Sempre o fizera com a mesma agilidade com que fazia dançar o pé.
Lembrou-se da forma como ela aceitava as coisas sem muitas perguntas. Como se soubesse já todas as respostas. Alinhava-se naturalmente no futuro que o presente trazia pela mão.
Não lhe conhecera nunca o espanto. Como se soubesse sempre em primeira-mão como tudo acontecia. Em todas as coisas encontrava explicação. Compreendia e via para além do explicável. Aceitava a vida sem medos.
Sempre o assustara a clarividência que lhe sentia. Parecia-lhe sempre que ela sabia mais além. Duma forma que nunca conhecera em ninguém.
Mesmo quando tudo parecia correr mal, ela sorria e tranquilizava-o. Dizia-lhe que era preciso aceitar o fim das coisas para dar lugar ás novas. Que viriam a seu tempo. Tudo ocuparia o lugar certo…

Não sabia agora qual era o seu lugar ou o que o esperava. Não percebeu nunca porque tiveram de se afastar nem como tal aconteceu. Aprendera com ela que quando um se ausenta ou parte de vez dá lugar a outro. Até um dia se encontrar a metade que faz sentido. E no entanto sentira nela a sua metade. E tudo fizera sentido enquanto andaram na vida um do outro…

Cruzava-se de novo com ela. Perguntou-se se também isto era um sinal que não devia ignorar. Se afinal afastando-se se teriam aproximado. Se faltando um ao outro teriam dado conta de quanto eram felizes quando estavam juntos.

Preparou-se para lhe dizer olá ocasionalmente como se também a ele já nada o espantasse. Esperou que ela se virasse sem desviar o olhar.

Viu-a rodar e virar na sua direcção. E o sorriso que lhe tinha preparado desapareceu. Não era ela.

A contratempo

Confundiam-na as palavras que lhe ouvia. Em tempos esperara dele que também se apaixonasse. Por ela.
Da mesma forma estranha e insidiosa que se instalara nela a paixão que sentia por ele.

Soprou o café que queria beber para engolir melhor o que lhe ficava atravessado na garganta agora seca. Precisava de dar espaço ao espanto que lhe subia do peito. De o soltar.
Bebeu-o devagarinho sem levantar a cabeça. Ainda não o queria olhar. Não sem ainda perceber o que ele queria dizer.
Olhava agora as borras de café no fundo da chávena. Raras, uniformemente espalhadas com uma mancha de maior densidade a um canto. Lembrou-se das leituras que costumavam fazer quando estava entre amigas. Das gargalhadas ao ouvir os prognósticos. Que quereria dizer aquela mancha mais forte, ali ao cantinho?

Ouves-me?
Voltou e olhou para ele. Sim ouvia-o. O problema era não o entender.
Não entender também como um homem assim lhe entrara coração dentro.
Não o disse. Calou as palavras que lhe acudiam á boca. Empurrou-as para bem dentro de si. Para o sítio onde todas as coisas acabam por desaparecer. Quando é preciso.

E pronto. É isto. Acabei sem saber como por me apaixonar por ti. És-me necessária. Sinto-o cada vez mais.
Foi então, enquanto lhe ouvia estas palavras que se despediu do que sentia. Um enorme vazio assaltou-a. Pediu outro café.

Não lhe bastava

Há um desconforto em não se poder dar na mesma medida em que se recebe. E ela sentia-o. Duma forma aguda. O esforço que fazia para ser igual deixava-a sem forças. Fugiam-lhe as palavras e os gestos em debandada.
E a cada dia crescia o desespero. Não que ela não o amasse da mesma forma. Não. Nem que lhe sentisse também a falta…
Parecia no entanto ser incapaz de mostrar tudo quanto sentia. Sentia-se amordaçada pela sua própria mão.

Talvez o facto de há muito não sentir assim a deixasse ainda anestesiada. Talvez a realidade que agora antevia ainda a deixasse incrédula. Talvez tudo fosse ainda um sonho. Sim e porque nos sonhos ás vezes queremos correr e não conseguimos… Queria mostrar-se e não podia ainda.

Só os olhos e o sorriso, o ar tranquilo que todos lhe sentiam a denunciava.

A ele, não lhe bastava.