Nunca

Nunca, era uma palavra atitude que a perturbava.
Palavra final. Prisão. Inexpugnável.
Onde tudo acabava e nada mais acontecia para além do que se tinha garantido.
Como se Nunca fosse fosso e muralha. Ou o Dragão de fogo a guardar mundos por desbravar.
E tudo tivesse de ser sempre assim.

E ficava triste de a perder.

Porque todas as palavras têm um propósito. E vários sentidos.
E nós temos a força, a vontade e o saber para lhes darmos os que melhor nos traduzem.
Todas as palavras são úteis e necessárias. E precisamos delas para ir além de nós, viajar nos outros.

E descobriu-lhe outros sentidos.

O da força. O da perenidade. O da constância.
Era uma palavra de guerra. De quem vai por onde sabe. De quem conquista território a pulso. Com garra e alma. De quem não perde de vista os caminhos a seguir.
De quem Nunca desiste.

Nunca digas Nunca, ri-se da rasteira. Dos sentidos no sentido aqui exposto.
E apesar de tudo prefere, nem Sempre, nem Nunca.
Onde não há afirmações que o não são.
Porque o Povo, de há muito que sabe brincar com as palavras. E lhes sabe o lugar.

Pés nos pés

Pés nos pés e uma música no ar.
Momentos a dois em sincronia. Mais uma vez e outra e outra num rodopio que a põe tonta mas não quer parar.
Dos braços ainda pequenos, um abraço, enorme, enlaça as pernas do homem pai que a protege e guia.

Quando for grande caso contigo. Estaremos sempre os dois juntos. Só tu e eu. Pensa Maria.

E cresce assim, nos sonhos que dançam também com eles. A par com o homem que a transporta nos pés.
Vêm á baila as viagens, nas cantigas que entoa em voz tremida por culpa dos paralelos das estradas, em que são companheiros.
E os sorrisos. Cúmplices. Sente-se já mulher.

Surpreende-o no sofá, deixa tudo e atira-se para o colo. Ninho e aconchego. Casa!
Um dia a música pára. O sofá está vazio.
Maria perdeu o homem pai.
E não entende porquê. Culpam-na da ausência.
Cansara o homem a quem amava de tanto lhe querer.
Com ele o primeiro amor criança vai também. Em troca recebe a culpa que se aninha e instala para não mais sair.
Nunca mais amará como e quanto quer. Com medo de perder!

Sono vadio

Os papos nos olhos que lhos faziam pequenos, denunciavam a inquietação das noites.
O ar cansado mas calmo dizia que tudo não passava dum capricho de sono.
Um sono vadio, como ele lhe chamava.
Cansado da rotina das noites que já não lhe traziam nada de novo, ausentava-se por paragens que ele não lhe conhecia.
A principio, procurava-o por entre as páginas dum livro entre os muitos que andavam pela casa.
Tentou pressenti-lo nas músicas doutros tempos. Talvez andasse a vasculhar memórias.
Deixava-se ficar debaixo do chuveiro, de olhos fechados, a sentir o calor da água aquecer-lhe cada pedaço de pele até ficar engelhada. E via o sono a brincar nas nuvens de vapor.
Colava-se ao espelho e pedia-lhe legendas nas adivinhas que lhe segredava.
Acabava com uma amálgama de palavras e imagens que não sabia de onde vinham. Apagava-as com a toalha. E de repente, mirava-se e pedia ao sono que deixasse de se esconder.
Derrotado pelo cansaço caia em cima da cama ainda fria. Secava as últimas gotas nos lençois que agora o cobriam e fechava os olhos. No escuro do quarto ficavam as estrelas dentro dos olhos a bailar.
E num sítio qualquer viajava o sono vagabundo. Longe, sem destino.
Á procura, não sabia ele, de quê. De nada e de tudo. Se calhar só de distância e liberdade.
Nas voltas que dava prendia-se nos lençois em que de manhã se vinha enrolar o sono.
Encostava-se devagarinho pousando os dedos nas pálpebras e um respirar quente e cadenciado no peito. Tomava conta do corpo levando-o, exausto, a desligar-se lentamente.
Apagavam-se as estrelas no firmamento dos olhos e adormecia finalmente.
Tarde demais, sempre.
A noite já se levantava para ir para outras paragens. O dia fazia a rendição de turno.
Ao fundo do sono que só agora viera, chega o som irritante do despertador.
Como se uma mola fosse accionada levanta-se dum pulo. Felizmente fizera a barba na espera do vadio. No corpo o cheiro e o sabor a banho recente dão-lhe tempo para esticar a preguiça que se encolhe e lhe pede cama.
Engole um café feito na véspera que aquece no microondas. Não há tempo para mais.
Em cima da mesa, uma maçã em que pega para comer no elevador, serve-lhe de pequeno almoço.
Nos olhos leva os papos que lhos fecham. Para que ninguém lhos suspeite, pôe os óculos escuros que só tira a meio da manhã.

Um dia vai ajustar contas com tanta vadiagem dum sono que começa a desconhecer e a sentir saudades.

O teu sabor

Há coisas que não levantam poeira nem aragem de tão leves serem.
Que são como o ar que respiramos no meio do mato.
Com o cheiro ás coisas boas da infância e lembranças de piqueniques com jogos de esconde-esconde á mistura.
Assim como acordar com a luz do sol todas as manhãs quando o sono já se foi e apetece pular da cama.

Essas coisas têm o teu sabor.

Um sabor que não precisa de crescer em nós, nasce connosco.
Como se fosse um radar. Assim que se encontra igual, sabe-se que se está bem, reconhece-se.

Lembras-te quando as palavras se atropelam a dizer o mesmo ao mesmo tempo?
E quando a gargalhada nasce sem saberes ainda o que te vou contar?
Ah! E quando as minhas lágrimas não caem, amparadas no dique dos sorrisos que me plantas... Não posso esquecer.

E tinha de ser... Olharmos na mesma direcção e vermos as mesmas coisas.
Querer fazer doutra forma e ser igual. Como em reflexo. Num espelho perfeito num dia de luz sem igual.

E como eu gosto do teu sabor!

Encostada

A porta estivera sempre encostada.

Pretendeu durante muito tempo que atrás dela e para sempre ficaria tudo o que não pudera concretizar. Fizera-se força e dissera para si que tudo acabara atrás da porta que deixara de propósito assim.
Virara-lhe as costas e avançara. Pensava que era capaz. que era assim que teria de ser.
De quando em vez sentia-lhe as correntes que traziam o desconforto das coisas que tinha deixado sem viver.
Era quando se recolhia no arrepio que lhe corria o corpo apalpando-lhe o vazio que ela teimava em desprezar.
Plantava-lhe sonhos fugazes. Como se pudesse fazer de conta de que nada aí tinha tido lugar.
Como se nada ainda aí existisse.
E uma porta encostada num lado qualquer da vida deixasse de ser o que era.
Como quando era criança e fechava os olhos. E desaparecia.

Neste terreno sem pousio nem descanso nada teria vida. Nunca.
Tudo teria de tomar o seu lugar. Percebê-lo. E o que tivera inicio teria de ser finalizado.
Num lugar com o seu nome e feitio. No seu lugar.

Era já tarde, a tarde dum dia cheio das coisas surpreendentes que os dias trazem, quando a porta se escancarou.
O espanto foi a primeira coisa que se lembra de ter. Não da porta se ter aberto.
Mas de ser ele a abri-la. Como se nunca tivesse estado atrás dela. Ou ausente.
Olhou-a com olhos de ainda há pouco e recomeçou a conversa na virgula que tinha ficado pendurada.

As promessas de amor eram as mesmas. A paixão continuava acesa.
Olhou-o incrédula. Estremeceu. Surpreendeu-se por continuar de pé porque as forças lhe fugiram sem destino. Foi quando do coração cresceram braços, aqueles que a razão não conhece, e sem mais nada decidiu dar rega á sementeira.
Durante aquele tempo todo só aquele sonho tinha criado raiz e alastrado nela.

Pensou, apesar de tudo, por quanto tempo estaria a porta aberta. Quando a voltaria a encostar ou se finalmente a fecharia.

O vazio

Era á hora em que todos se deitavam e as luzes se começavam a apagar uma a uma em cada divisão da casa a par com os ruídos normais de quem acaba os dias que o vazio se instalava.
Vinha devagarinho com um ar manso e encostava-se aos lugares ainda quentes, com o cheiro das coisas de todos os dias.

Ela afundava-se na cama, debaixo do aconchego conhecido do edredon de penas, leve e suave, e deixava-se cair num quase abandono. Sentia-se planar, liberta da vida, sem pesos, sem memórias e sem tempos, num voo despido de partidas e chegadas. Num espaço que não existia senão aí. Onde nada e tudo tinha lugar. E tudo podia ou não acontecer.

Porque o vazio não é senão um campo lavrado em ânsia de sementeira.

A minha infância.

Se a vejo ainda aqui, se a ouço, se a cheiro e sinto ainda assim tão presente, só pode pertencer-me agora sem nunca de mim se ter ausentado.
Escondida, sim, numa memória arrumada por não haver tempo no tempo da vida. Mas sempre comigo.

No riso leve, na lágrima fácil, no espanto, na descoberta de tanta coisa!

Nos medos também. Porque ainda não se calaram os medos. Abafados só, camuflados. Porque gente grande não tem medo. Não pode, não deve.

Medo de ficar sózinha, sem colo. De não voltar a ver o que se julga ter. De que nada aconteça como se sonha. Dos silêncios. Das coisas que não se sabem ler. Do que não se conhece ainda.
E no entanto navegar por outros mares sem saber marinhar.

Como quando ensaiava os primeiros passos e as primeiras palavras e o mundo se alargava. E eu com ele.

Inscrita na memória dos sentidos, procuro-a e sorvo-a. Reconheço nela a força que tenho. A raiz do meu querer. Sou o que a minha infância fez de mim.

Cupido,procura-se!

Igualzinho aos que havia dantes. Reboludo, pequenino, com bochechas rosadas e cara de anjo. Asas também, brancas, vaporosas, com aquelas penas sem peso, suaves e fofas que só imaginamos.
Terá de ter um ar inocente, um sorriso maroto e uns olhos muito atentos. Porque este que procuro, terá de saber o que levamos uma vida a aprender.
A visão terá de ser apurada. A pontaria certeira. Sim o velho arco e flecha também são necessários.
Deverá saber ver para além das coisas e das pessoas.
E se tiver capacidade para prever o futuro, ainda melhor.
É que a dor duma seta, a enterrar-se no peito, magoa mesmo. Duma forma inexplicável.
Devia sentir-se uma única vez na vida e os efeitos serem eternos.
Quem fosse atingido, deveria amar sempre da mesma forma incondicional ou em crescendo.
Isso! Deveria ser assim.
Talvez um toque duma qualquer mezinha na ponta da seta o pudesse transmitir... Quem sabe?
Assim, como um virus sem cura!

Amelia


Edouard Locke - Amelia

Sou casulo

Renasço dentro de mim.
Transporto agora promessas germinadas. Promessas de sonhos feitas.
O amanhã. A vida para além do que hoje sou.
Agora estou entre um dia e outro. Entre o que era e serei.

Num casulo por ti plantado.

Sei

Sei que partirás um dia.
De te perder não tenho medo. Porque teria?
Afinal nunca me pertenceste. Só é meu o que recordo de ti. E isso não mo levas nunca.
Depois, conheço-te os sonhos viajantes. A espera de coisas maiores e o medo de teres só o que julgas ter.
Não basta nunca o que te chega ás mãos. O que descobres e sentes...
E eu?... Sou parcela do todo que está para vir.

Por isso um dia sem me dar conta, estarás para lá dos sonhos em que te criei.
Na tua ausência serei outra. Como o sou sempre distante do que amo.
Procurarei alivio num lado inverso de mim. Talvez nem te espere mais. Nem o queira.
E seja outra em alguém que não conheço e nem suspeito.

Mas até que te vás, estarei e serei o que sou agora. Tua. Até que partas. Porque o farás.

Sei. Preferia não saber.

Não

Não, não me despedi de tanta coisa que em algum tempo deixei de te dizer.
Sussurei-o ao mar em todas as manhãs que não te sentia.
Sei que embala os meus monólogos na espuma branca que carrega na ponta das ondas.

Um dia surpreender-te-á, beijando teus pés na areia molhada. E quando se recolher deixará escrito tudo quanto me ouviu.

Saberei se me ouviste, quando um dia, em vez de visitar o mar, acordar ao teu lado.

Ensaio

Hoje não usaremos as velhas palavras. Aquelas que de tanto serem ditas perderam já a cor e o cheiro.
Hoje ensaiaremos outras. Primeiro em surdina, porque lhes pressinto a vergonha.
Não a vergonha por serem feias, tristes ou estranhas... Mas a vergonha de não te saberem ainda.
Serão rubras de espanto ao ouvirem-se. Darão as mãos, primeiro num toque suave e fugidio. Depois dum breve arrepio reconhecer-se-ão. E num espaço vazio inventado por nós, dançarão á roda das coisas por dizer.
E em vez da palavra antiga que um dia foi desejo e não se fez verbo, sentiremos em nós a coreografia em sons e gestos que a palavra, agora nova, sabe viver.

Esta que agora inventei, di-la-ei dentro do teu corpo. Só tu a saberás e poderás recriar pelo tempo da sua eternidade.

A casa


A casa com que ela sonhava não tinha portas, janelas nem mesmo paredes.
E foi assim que a construiu. Num sitio de sol, árvores e rios a correr.
Em cima dos quatro pilares ficou um telhado de vidro para espreitar as estrelas e o céu quando dormia.
Com o tempo houve quem se juntasse a ela. Gente que com ela falava das coisas simples.
Gente que ia e vinha quando tinha de o fazer. No meio de todos e á vista de quem passava, espalhavam-se os risos e os afectos. Vivia-se a calma e a raiva dos dias. Apagavam-se as lágrimas no calor dos sorrisos.
De voo em voo ficavam as marcas e as histórias que sobreviviam a quem dali saísse. Para voltar quando quisesse.
Foram muitos os passantes. Muitos os que ficaram. E muitos os que de longe viam e cobiçavam.
E nunca ficaram a saber. Porque achavam que já sabiam tudo. Comentavam entre si o que pensavam. De quando em vez albergavam-se debaixo daquele tecto. Estranhos a tudo, habituados ás casas escuras onde viviam, espalhavam as dúvidas dum viver assim.
Em pouco tempo havia quem atirasse pedras que feriram quem por lá andava.
Foi quando ela ergueu paredes. E mesmo assim, deixou aberturas para a vida entrar.
Todos podiam lá ir e de lá sair. Mas desconhecendo o que encontrariam alguns passariam ao lado. Poucos se atreveriam a passar a barreira que ela erguera.
Quem quisesse julgar, que o fizesse. Do lado de fora das entradas que ainda deixara.
Entradas que um dia fechou com portas. Não podia deixar passar a tristeza, a mágoa, a afronta e toda a dor que vinha também.
Deixou o sonho que tivera, para se proteger. E proteger os que reunira junto de si.
Na sua casa outrora escancarada, abria-se agora, só para o mundo daqueles que a pouco e pouco conquistaram um espaço que lhes dava sem reservas. Fechava-o para quem não podia entender.
E mesmo assim via o mundo e prolongava-se para além dele, nunca o deixaria de fazer. Porque as portas desvendavam segredos a quem os soubesse entender e continuariam a abrir-se ao som das melodias que dentro de si bailavam.
E a dança da vida, e com quem ela dançava em liberdade, nunca a deixaria morrer dentro de si.

A carta

Incomodavam-na os lugares anónimos. Os sítios sem cheiro de gente e alma de quem por lá passa. Faziam-na querer nunca lá ter passado e davam-lhe uma tristeza que não entendia nem sabia acalmar.
Então para onde quer que fosse e fosse qual fosse o tempo que aí estivesse, plantava coisas suas no espaço á sua volta. Ás vezes bastava uma flor que encontrasse na sua passagem. Um ramo de qualquer coisa que encontrasse abandonado. Como se ao dar-lhe casa estivesse também a ganhá-la. A pouco e pouco as coisas tomavam os seus contornos e prolongava-se para alem de si com uma leveza que lhe fazia falta.
Para ali, levara consigo, numa caixa que um dia abrigara um par de sapatos, objectos que há muito a acompanhavam. Pedaços de vida que a fizeram ser o que era.
Naquele dia, deixara-se ficar sózinha. Precisava de o fazer. Poderia assim parar um pouco, olhar-se e perceber como estava tudo á sua volta. O silêncio que ficara quando todos saíram, apaziguou-a. Estar assim fazia-lhe sempre bem.
Olhou á sua volta e decidiu vasculhar e ordenar as suas coisas. No quarto pequeno, espalhou tudo sem dó. Não havia gaveta que ficasse ocupada. Peça a peça, tudo foi retomando o sítio, mesmo que fosse já outro, numa reorganização que urgia fazer.
Tudo tinha um sentido que vinha de dentro de si. Tudo ganhava uma nova dimensão assim.
Deixou para o fim a caixa de sapatos que um dia forrara e transportava os seus "segredos".
Um alfinete que pertencera á unica avó que conhecera, botões enormes, forrados a veludo preto dum casaco vermelho de fazenda que tivera em miúda, fotografias gastas de gente que sabia ter sido da família e de quem ouvira histórias...
Coisas que nada significavam para os outros. Sabia.
No fundo um papel dobrado em quatro, o mais importante, amarelado e com os vincos a fazerem aberturas que ameaçam a sua integridade. Desdobrou-o com cuidado e abandonou-se á leitura. Era a última e agora única testemunha da existência daquele homem que ainda habitava dentro dela. Já sabia de cor o que agora lia, mas naquela altura tudo lhe parecia novo e podia regressar ao tempo em que ele tinha existido. A um tempo que não era de saudade mas de alegria...
Absorvida não se dá conta do tempo até que surpreendida pelo abrir da porta principal, arruma a carta ao som dos risos que se aproximam.
Era tempo de regressar e ir ver o que se passava com os colegas que partilhavam o apartamento consigo. Olhou para o quarto, escondeu os últimos vestígios da sua viagem e foi ter com eles.
No ar ficaram os risos de quem ainda teria muitas marcas a pôr na vida. Os dela também.

Paixão

Costumavam fazê-lo sempre que a noite se deitava, deixando no ar as estrelas e uma lua qualquer.
Escutavam o silêncio a entranhar-se nas coisas e a abrir espaços para as conversas que semeavam no passear do tempo, agora só deles.
No Inverno era á lareira que tudo acontecia. Ficavam embrulhados numa manta e a olhar o fogo enquanto bebiam um vinho branco que lhes adormecia o cansaço e os deixava a divagar.
Naquele dia ele preparou dois gins com sumo de laranja. Era Verão, estava calor e a varanda foi palco. Dali olhavam as luzes na cidade que se via ao longe e a ponte que deixava adivinhar o rio.
Ele atirou-lhe com uma pergunta que já há muito tempo andava para lhe fazer, como se precisasse dessa peça para completar o puzzle que dela ia construindo.
Ela não estava á espera. Não daquela forma e naquela altura.
Qualquer bebida, mesmo que em pequena quantidade, tinha o dom de a entorpecer e a deixar a flutuar numa suave tontura. Mas a pergunta que ele lançou, caída num silêncio que se fechou, fê-la virar para ele ainda sem saber o que responder.
Soletrou-a, tentando ganhar tempo e apoderar-se da resposta para ela.
Queres então, saber o que mais gostaria de fazer na minha vida e em contrapartida a pior coisa que me aconteceu?
Sim, respondeu-lhe, e dou-te todo o tempo que quiseres. Também eu farei a mesma reflexão. Mas queria saber isso de ti.
Viu-a mergulhar no silêncio e pressentiu-a a olhar para dentro de si. Sabia que ela não se esquivaria á resposta. Nunca o tinha feito a coisa nenhuma. Esperou até que a ouviu balbuciar exprimindo um "não sei quê de coisa nenhuma". Mas a pouco e pouco as palavras começaram a crescer.
Não, nunca de nada se tinha arrependido. Do mal, do bem, da tristeza, da alegria, da dor ou do conforto. E tudo o que fora mau em algum tempo se acabara por mostrar bom.
Não sabia se era a sua capacidade de olhar para lá das coisas e pondo-se de fora ter uma melhor e mais ampla visão. Sentia até que tinha da vida o que ela lhe podia dar.
Coisas más, a pior? Se com tudo tinha aprendido e crescia...
Se alguma vez fora magoada, sofrera ou se revoltara, tinha tido não sabia como, visto e sentido o reverso da medalha. Por cada mal que lhe tinha vindo, tivera um bem maior.
E que assim como não se arrependera também nunca deixara de fazer o que quisera. Com vontade, empenho e paixão...
Ele seguia-a atentamente, sorvendo cada palavra, sentindo a par com ela. E quando ela falara de paixão, sorriu.
Sim , esta era a mulher que ele tinha dentro de si. Uma mulher paixão.
Era este sentir que lhe dava força e lhe punha o brilho nos olhos e o sorriso nos lábios. Que a fazia ir á luta, anestesiada para a dor. Pronta para tudo. Testemunhou-o.
A paixão era a sua maior força e também a sua maior fraqueza. Por isso tantas vezes se despia dela para sobreviver. Depois então, embarcar em novas paixões.
Limpou-lhe uma lágrima que teimou em cair. Conhecia-lhe as memórias que a faziam sentir assim. Não as queria vivas. Queria-as exorcizar.
A paixão, sussurrou ela e um soluço comeu-lhe as palavras diluidas nas lágrimas que deixou cair.
Ele abraçou-a e sentiu o seu corpo a esboroar-se a pouco e pouco no enlace do abraço. Viu-lhe o abandono do corpo num sorriso que ela tentou esboçar. Havia sempre nela um sorriso, mesmo trémulo.
A paixão que tantas vezes a deixara caída, era também a sua razão de vida. Na entrega a que se dava, mesmo nas pequenas coisas.
Encostados um ao outro, olharam as estrelas, sonharam com o som do mar no fim do seu rio e ficaram assim em silêncio, até que ela adormeceu.
Pegou nela com mil cuidados, e ao seu colo, levou-a para a cama. Ficou a vê-la dormir.
Soube, teve a certeza que a amaria sempre e cada vez mais.
E um dia lhe traria a paz. Aquela com que ela sonhava há muito e de que tanto precisava.
Realizar-lhe-ia um sonho que sabia pertencer-lhe.

Momentos

Há momentos em que o sentimento acorda dentro de nós. Um qualquer, sem hora marcada.
E na surpresa enfrentamo-lo pequeninos. Por isso tudo nos parece tão grande. Na dor, na saudade, na solidão.
Porque o nosso tamanho nunca é maior que tais dores. E elas como gigantes apoderam-se de nós.
Mas um dia... um dia batemos-lhes o pé!
Porque dentro de nós cresce sem parar uma alma dum tamanho sem medida!

De que são feitos os sonhos

Não. Os sonhos não se desenham nas nuvens. Nem o paraíso é o sítio onde pertencem. Os sonhos fazem-se e cumprem-se nos dias que vivemos. Entre o sol e a lua. Entre o querer e o não querer. No antagonismo dos sentires que dentro de nós cohabitam. Nas histórias de que se faz uma vida, passo a passo.

Ás vezes de portas fechadas. E de recuos ou travessias por caminhos que nunca nos convidaram. De entradas inesperadas por lados traseiros e escondidos. Por sitios de sombra.
De desvios apertados que nos fazem contorcer e encolher.
De recusas. De impedimentos abruptos que tolhem o passo. De dores inimagináveis.

E o que parece vulgar. E o que se constrói pesadelo. Nasce num sonho, gerado dentro de nós pelo tempo que lhe for preciso.

Small things

Coisas pequenas do tamanho imenso da alma de quem as pressente.
Gestos perdidos, ocasionais, simples, expontâneos.
Um "não" agora, para muitos "sins"que nunca se ansiaram e surpreendem.
E o caminho feito de pequenos passos, a cumprir-se. Nunca como se sonha, mas como deve ser.
Num remoinho de pequenas coisas a fazerem-se grandes.
Um sorriso que ilumina o dia. Uma palavra que conforta. Uma mão que ampara. Um ouvido que escuta. Uma voz que serena. Um olhar que nos lê e entende.
E a vida cheia de coisas pequenas, que a fazem maior e mais completa.
Como se em cada pequena coisa se encontrasse a verdadeira essência de todas as coisas.
E a razão de todas elas fosse afinal tão pequena assim. E simples, como o são as coisas que julgamos pequenas.
Coisas pequenas com o tamanho que lhes queremos dar.

D'Amizade

Magoou-a de ferida aberta. Retorcida, moída, escancarada. Aos olhos de todos. Sem dó.

Sem contar, apanhada no meio duma tempestade que nascera em coração alheio, dobrou-se na dor sentida. Num turbilhão de emoções, afunda-se no buraco que sente crescer em si. E cai em rodopio, numa tontura sem fim. Nos olhos agora doridos não passa a luz. Uma névoa cerrada devolve-a á estranheza dum golpe assim. Como? Porquê?
E as respostas tardam, porque não as há. Só a maldade pura sustenta um golpe assim. E lhe dá forma sem razões.

Sente-lhe o sorriso cravado nas costas. Os olhos, vigilantes, nos gestos que enuncia. Á procura duma mulher derrotada. Em busca da sua vitória.

E é aí, onde lhe procuram a fraqueza, que vai buscar a força. Uma força indomável. Maior que o seu próprio tamanho. Maior do que alguma vez pensara poder ser.
A força de continuar a ser quem é. Direita, de pé e cabeça erguida, como se nada a pudesse perturbar. Dentro de si tudo pode acontecer. Ele nada testemunhará.

E a raiva... E a revolta... E uma sensação de injustiça... E a dor incontrolada a crescer dentro dum peito que não cresce ao tamanho que lhe é exigido!
Só a indiferença, o desprezo e a essência do que transporta em si são armas neste combate surdo.

É nas palavras amigas que encontra apoio. Que vê como a vêm. Como ela se julga ser.
É na solidariedade. Na oferta pronta para uma guerra que não quer fazer, que reencontra os amigos guerreiros, de que não dava conta.
Num ninho construído de mil gestos e palavras, que reencontra a paz.
No buraco em que se despedaçara encontra outras luzes e um conforto a que estava alheada.

Não tinha perdido nada quando foi atingida. Foi a prova que nunca tinha procurado, de que nunca estaria só.
Desta ferida com que ele a marcou, resta uma tatuagem forte e eterna.
Da amizade que se constrói sem se saber. Dos amigos que transporta com ela, sem pedir.

E forte, serena como nunca, enfrenta-o segura. E a quem vier. Da mesma forma. Em paz!

Seria em ti o principio

Ilustração do meu amigo Pedro Nogueira das Margens Confluentes- The Peblle
Há coisas que não se explicam de forma alguma. São coisas que vão para além dos nomes.
As palavras mancham-nas. As vozes alteram-nas. Os silêncios perturbam-nas.
Há coisas que só se sentem. Sem mais.

Há sitios onde tudo parece acontecer naturalmente e em harmonia. Como se não houvesse outras formas. E tudo fosse simples. E a lisura existisse. E mesmo as coisas ásperas fossem macias e não causassem arrepios. Há sitios assim.

Há pessoas que mesmo longe, estão perto. Que nos ocupam sem tirar espaço. Que nos enchem vazios inimagináveis. E nem sabem que o fazem. Cuja lembrança nos desperta sorrisos. E que sabem como nós. Da mesma maneira. Sem esforço. Como se houvesse um qualquer laço invisivel, uma qualquer ligação... que não prende, mas liberta!

É de ti que falo , sim. Do que não sei traduzir em palavras. Do que só sei dentro de mim num espaço sem línguas que o mundo conheça.
Mas sei que se um dia fossemos chão... Tu um seixo e eu areia em leito de rio, reencontrar-nos-iamos na mesma sintonia. Só poderia ser assim. Em todos os tempos e de todas as maneiras.
Ver-te-ia nas tuas brincadeiras que acalmaria nas quedas e tropelias. Cansado um dia, recolher-te-ia em meu manto e seria em ti o principio para novas vidas longe e sempre dentro de mim.

É isso que quero ser agora e sempre: O principio em ti.
O principio dos tempos, o inicio de todas as coisas.
Quando ainda há todo o tempo para que tudo se faça.
Quando tudo é ainda possível e nunca é tarde.
Ser forma de veres as coisas sempre novas, de diferentes perspectivas e em renascida esperança.
Como se cada dia, fosse sempre o primeiro e a força para o enfrentar, sempre, eternamente renovada.
Assim, genuinamente inocente, pelo tempo que te for dado.

Nela...

Como se tudo fosse novo ainda. E o tempo... Nunca tivesse existido.
Nem as coisas que o tempo traz. E pendura a esmo em cantos que um dia percorreu.
Como se nada aí tivesse ficado.
Vive cada dia como se fosse o primeiro. Num espanto de dor ou alegria que desconhece verdadeiramente. Sem matriz. Como se não houvesse memórias ou tempo para as construir.
Na pressa da vida que teima em fazer.

Sabe de si só. Do sitio que habita. De quem a precedeu. Nada mais.
E nem a si conhece. Nem em si se ampara. Estranha o que sente. Não entende. O medo, o vazio, a tristeza que por vezes se instala... e a vontade de se alongar em alguém. Que não vê. Que não a vê!
Sonha o abraço que imagina colo em alguém sem rosto, nas noites que lhe restam.
Lê as estrelas á procura dum rumo que imagina existir. Não sabe para onde, nem para quê.
Uma dor aguda no peito, desperta-a. Não sabe de onde lhe vem tal dor. Não reconhece a cicatriz que agora vê. Não sabe como lhe foi plantada. Nem sabe como a arrancar.Tem medo. Corre para fora de si.
Vê-se trancada. Sem chaves. Sufoca. Estende os braços para ninguém.

Ao fundo, na nesga da noite, a luz. O ar.
Um esforço maior. Um espasmo. Um choro, um grito. A vida!
Tanta porta para abrir... Tanta para fechar!
E a correria do tempo ou a pressa que leva, que não a deixam descansar!
E o medo de não ter ninguém e de nunca poder parar.

Como lhe apetecem passeios curtos num espaço a inventar. A luz. A paz.
Um tempo sem tempo.
E não precisar de nada mais. Nem de ninguém.

Abraçar dum só gesto, duma só vez o mundo e a vida e bastar-lhe isso!

The secret

Não é mais um segredo. Agora partilhado será de cada um a decisão de o por em prática. No fundo, a cada passo e decisão nossa, não podemos deixar de pensar. Desta forma, tendo a consciência da importância do que pensamos, podemos com certeza condicionar e determinar melhor o que queremos construir. A pensamentos positivos!

Gosto de gostar

Gosto de gostar. É a unica coisa de que tenho certeza.

Da empatia que sinto nos outros. Da sinfonia das estrelas, do mar e do vento.
Do arco-íris e todas as outras cores para além dele. Dos contrastes, dos opostos, das combinações dificeis.
Da chuva, do tempo triste. Do Outono. E a natureza em mil cores.
Das outras estações também. Do frio que convida á lareira. Do Sol a renascer em tudo quanto toca. Dos passarinhos, dos ninhos...

E as memórias? Tocadas em momentos que julgamos apagados?
As que nos dão sentido. E nos fazem perceber como somos. Nos agarram á vida, á terra... Mesmo em voo. Que como um farol, nos mostra a que lugar pertencemos.

Gosto de dar. Quando dou sou inteira. Sou em mim e nos outros.
De receber. Coisas simples. Sorrisos.
São energia pura. Adoro despertar sorrisos. Sinto-me poderosa. Como quando os recebo.
Saber que precisam de mim e que faço a diferença. Sabe-me bem.
Saber-me cor num mundo cinzento em alguém.

Gosto de ser a calma e a paz no coração dos que passam por mim.
De ser amparo, colo e aconchego...

Dói-me não ser capaz de gostar. E corro e procuro sempre razões para gostar.
Seja onde for e como for.
Importante mesmo é fazê-lo. E gostar de o fazer.
Até porque, gosto de gostar!