A carta

Incomodavam-na os lugares anónimos. Os sítios sem cheiro de gente e alma de quem por lá passa. Faziam-na querer nunca lá ter passado e davam-lhe uma tristeza que não entendia nem sabia acalmar.
Então para onde quer que fosse e fosse qual fosse o tempo que aí estivesse, plantava coisas suas no espaço á sua volta. Ás vezes bastava uma flor que encontrasse na sua passagem. Um ramo de qualquer coisa que encontrasse abandonado. Como se ao dar-lhe casa estivesse também a ganhá-la. A pouco e pouco as coisas tomavam os seus contornos e prolongava-se para alem de si com uma leveza que lhe fazia falta.
Para ali, levara consigo, numa caixa que um dia abrigara um par de sapatos, objectos que há muito a acompanhavam. Pedaços de vida que a fizeram ser o que era.
Naquele dia, deixara-se ficar sózinha. Precisava de o fazer. Poderia assim parar um pouco, olhar-se e perceber como estava tudo á sua volta. O silêncio que ficara quando todos saíram, apaziguou-a. Estar assim fazia-lhe sempre bem.
Olhou á sua volta e decidiu vasculhar e ordenar as suas coisas. No quarto pequeno, espalhou tudo sem dó. Não havia gaveta que ficasse ocupada. Peça a peça, tudo foi retomando o sítio, mesmo que fosse já outro, numa reorganização que urgia fazer.
Tudo tinha um sentido que vinha de dentro de si. Tudo ganhava uma nova dimensão assim.
Deixou para o fim a caixa de sapatos que um dia forrara e transportava os seus "segredos".
Um alfinete que pertencera á unica avó que conhecera, botões enormes, forrados a veludo preto dum casaco vermelho de fazenda que tivera em miúda, fotografias gastas de gente que sabia ter sido da família e de quem ouvira histórias...
Coisas que nada significavam para os outros. Sabia.
No fundo um papel dobrado em quatro, o mais importante, amarelado e com os vincos a fazerem aberturas que ameaçam a sua integridade. Desdobrou-o com cuidado e abandonou-se á leitura. Era a última e agora única testemunha da existência daquele homem que ainda habitava dentro dela. Já sabia de cor o que agora lia, mas naquela altura tudo lhe parecia novo e podia regressar ao tempo em que ele tinha existido. A um tempo que não era de saudade mas de alegria...
Absorvida não se dá conta do tempo até que surpreendida pelo abrir da porta principal, arruma a carta ao som dos risos que se aproximam.
Era tempo de regressar e ir ver o que se passava com os colegas que partilhavam o apartamento consigo. Olhou para o quarto, escondeu os últimos vestígios da sua viagem e foi ter com eles.
No ar ficaram os risos de quem ainda teria muitas marcas a pôr na vida. Os dela também.

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