Paixão

Costumavam fazê-lo sempre que a noite se deitava, deixando no ar as estrelas e uma lua qualquer.
Escutavam o silêncio a entranhar-se nas coisas e a abrir espaços para as conversas que semeavam no passear do tempo, agora só deles.
No Inverno era á lareira que tudo acontecia. Ficavam embrulhados numa manta e a olhar o fogo enquanto bebiam um vinho branco que lhes adormecia o cansaço e os deixava a divagar.
Naquele dia ele preparou dois gins com sumo de laranja. Era Verão, estava calor e a varanda foi palco. Dali olhavam as luzes na cidade que se via ao longe e a ponte que deixava adivinhar o rio.
Ele atirou-lhe com uma pergunta que já há muito tempo andava para lhe fazer, como se precisasse dessa peça para completar o puzzle que dela ia construindo.
Ela não estava á espera. Não daquela forma e naquela altura.
Qualquer bebida, mesmo que em pequena quantidade, tinha o dom de a entorpecer e a deixar a flutuar numa suave tontura. Mas a pergunta que ele lançou, caída num silêncio que se fechou, fê-la virar para ele ainda sem saber o que responder.
Soletrou-a, tentando ganhar tempo e apoderar-se da resposta para ela.
Queres então, saber o que mais gostaria de fazer na minha vida e em contrapartida a pior coisa que me aconteceu?
Sim, respondeu-lhe, e dou-te todo o tempo que quiseres. Também eu farei a mesma reflexão. Mas queria saber isso de ti.
Viu-a mergulhar no silêncio e pressentiu-a a olhar para dentro de si. Sabia que ela não se esquivaria á resposta. Nunca o tinha feito a coisa nenhuma. Esperou até que a ouviu balbuciar exprimindo um "não sei quê de coisa nenhuma". Mas a pouco e pouco as palavras começaram a crescer.
Não, nunca de nada se tinha arrependido. Do mal, do bem, da tristeza, da alegria, da dor ou do conforto. E tudo o que fora mau em algum tempo se acabara por mostrar bom.
Não sabia se era a sua capacidade de olhar para lá das coisas e pondo-se de fora ter uma melhor e mais ampla visão. Sentia até que tinha da vida o que ela lhe podia dar.
Coisas más, a pior? Se com tudo tinha aprendido e crescia...
Se alguma vez fora magoada, sofrera ou se revoltara, tinha tido não sabia como, visto e sentido o reverso da medalha. Por cada mal que lhe tinha vindo, tivera um bem maior.
E que assim como não se arrependera também nunca deixara de fazer o que quisera. Com vontade, empenho e paixão...
Ele seguia-a atentamente, sorvendo cada palavra, sentindo a par com ela. E quando ela falara de paixão, sorriu.
Sim , esta era a mulher que ele tinha dentro de si. Uma mulher paixão.
Era este sentir que lhe dava força e lhe punha o brilho nos olhos e o sorriso nos lábios. Que a fazia ir á luta, anestesiada para a dor. Pronta para tudo. Testemunhou-o.
A paixão era a sua maior força e também a sua maior fraqueza. Por isso tantas vezes se despia dela para sobreviver. Depois então, embarcar em novas paixões.
Limpou-lhe uma lágrima que teimou em cair. Conhecia-lhe as memórias que a faziam sentir assim. Não as queria vivas. Queria-as exorcizar.
A paixão, sussurrou ela e um soluço comeu-lhe as palavras diluidas nas lágrimas que deixou cair.
Ele abraçou-a e sentiu o seu corpo a esboroar-se a pouco e pouco no enlace do abraço. Viu-lhe o abandono do corpo num sorriso que ela tentou esboçar. Havia sempre nela um sorriso, mesmo trémulo.
A paixão que tantas vezes a deixara caída, era também a sua razão de vida. Na entrega a que se dava, mesmo nas pequenas coisas.
Encostados um ao outro, olharam as estrelas, sonharam com o som do mar no fim do seu rio e ficaram assim em silêncio, até que ela adormeceu.
Pegou nela com mil cuidados, e ao seu colo, levou-a para a cama. Ficou a vê-la dormir.
Soube, teve a certeza que a amaria sempre e cada vez mais.
E um dia lhe traria a paz. Aquela com que ela sonhava há muito e de que tanto precisava.
Realizar-lhe-ia um sonho que sabia pertencer-lhe.

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