A caminho

Sabe-se a caminho. Sabe que não deve ir por aí. Conhece os perigos. Sente-os já.
E sonha com o percurso. Porque não o consegue evitar.
E sonha com o fim. Porque o tem assumido.
Evita falá-lo. Para não se ouvir. Mas pre(se)sente-o.
Antecipadamente.
Ouve Caetano Veloso e reconhece-se no futuro.

"E agora, que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a esquecer.
Você só me ensinou a te querer.
E te querendo, eu vou tentando-te encontrar.
Vou-me perdendo buscando em outros braços seus abraços.
Perdido no vazio doutros espaços do abismo de que você se retirou
e me deixou aqui sózinho.
...
E te querendo eu vou querendo me encontrar"

E mesmo que se perca, embala-se na viagem que anseia e desespera fazer.
Mesmo que depois seja esta a música a dizê-la.
Mesmo que seja para o abismo o destino.
Porque não o pode contrariar

Em desnorte

Intranquila.
Porque O adivinha. A Ele através doutro.
No gesto terno, no olhar doce, no sorriso. Na voz em pausa. Pressente-O.
Como se se cumprisse agora o que tanto sonhou.
Como se Ele voltasse de onde esteve sempre. Só para ela.
Mas ainda impossível e longe.
Inquieta-se.
Não lhe sai de dentro. Cresce. Invade-a. Sem licença. Em violação.
Quer fugir. E ficar.

E o abraço. Só o abraço a tranquiliza.

Recolhe-se. Força-se. Quer esquecer. Deixar de sentir.
Voltar de novo á serenidade

Tem de deixar o abraço.
Deve. De novo.
E de tão ocupada, sente-se vazia.
Em desnorte.

Alegria ou Tristeza

Foto de Paper
As fotografias do Paulo são a esperança que ele não sabe acesa e a força que ele não conhece em si. São da mesma intensidade da dor que o consome.
A Alegria é-lhe alheia. Não lhe pertence ainda. Sem saber, procura-a. Pinta-a em tons que a ele fazem falta.
Apesar de tudo tem um olhar que amplia mundos. De cores sem fim.

Silêncio

O Jorge é um poeta. Um poeta de alma. Um poeta de carácter. E quando fala as coisas tomam clareza. Definem-se. Mostram-se. Desnudam-se mesmo.
Por isso me atrevo, e não devia, a partilhar o tanto que me dá. Perdoe-me Jorge!
Mas, lembra-se quando me disse isto?
Recordo-lho. Falávamos da solidão como sendo o ar que se respira, quando se entra, nas paisagens da alma. Como tão bem o diz.
E acrescentava, quando mais fundo olhamos para uma paisagem, mais silenciosos ficamos, como se entrássemos num lugar onde os sentimentos são mais profundos que as palavras.
Silêncio. Porque nada há para dizer. Nunca se sabe como dizer tudo o que se gostaria de dizer.
Faltam as palavras. Sobram as emoções.
E, no entanto, estamos sózinhos.

Só me falta...

"Já fui Moço, já fui Homem, só me falta ser Mulher!"
verso num poema de Zeca Afonso na voz de António Ataíde
E a homossexualidade veio á baila.
Curioso!
Pensava que se falava de ser algo maior. De conhecer e ser para além do que se é. Um propósito de todos.
Não que a homossexualidade me perturbe ou ofenda.
Ofendem-me as pessoas más. Perturbam-me as que deliberadamente o são.
As escolhas, as opções, o que se é, os caminhos, a cada um pertencem.
A maldade atinge todos. Causa tristeza, amargura e tantas dores!
E nunca lhe somos indiferentes. Ninguém lhe e indiferente. Nem quem o mal provoca, o é.
Porque deliberado, ensaiado, praticado, é em sua função. De fazer mal. Ser mau.
Inquieta-me a ignorância e o contentamento de se julgar saber tudo. Ficar pelas coisas tomadas por absolutas.
Não abrir portas. Não arejar. Não almejar.
Preocupa-me a ausência de dúvida. O pôr de parte o que se desconhece. Fere-me.
Isto sim! Pouco mais coisas o fazem.
Não. Nada disso quer dizer.
Decididamente é ir mais longe, ser mais alto.
E concordo. É uma frase sublime!

Na rua

Desenha sons como quem faz garatujas.
É de brincar, o acordeão que tem. A vida não é de brincar.
Arrecada as moedas que lhe dão para que esteja sempre vazia a taça que põe á frente.
Enrola-se em si. Para não se ver. Nem a quem passa.

A mãe, ao longe, vende martelinhos para o S. João. Ao lado a cadeira dum bébé que não se vê.

Onde vives, és de longe? Ali, aponta ele com a cabeça. Na mãe.

Vive em cada lugar que a mãe ocupa, não importa onde. Mãe é casa. Abrigo. Segurança.
Vive...

S. João

Espalham-se pela cidade á espera de quem os queira. Para uma noite diferente, a saudar o verão, em homenagem ao santo padroeiro. Reflectem-se vaidosos em protagonismo datado.
Porque é dia de S. João.

Sonhar-te

Sonhar-te?
Não consigo.
És real. Existes.
Sonhar-te?
Não preciso.

Eu sei!

Impacienta-se.
Sim , professora, eu sei! A terra é assim, redonda como uma bola.
Faz o gesto com as mãos para que ela perceba melhor.
E depois, vai girando sempre asssim, está a ver?
Desacelera o movimento e diz-lhe fitando-a nos olhos.
Mas, muito devagarinho. Sossega-a.
Para nós não sentirmos!

Sansão


Samson Regina Spektor
...
Beneath the stars came falling on our heads
But they're just old light
Your hair was long when we first met
Samson came to my bed
Told me that my hair was red
Told me i was beautiful and
Came into my bed
Oh i cut his hair myself one night
A pair of dull scissors in the yellow light
And he told me that i'd done alright
And kissed me till the morning light

You are my sweetest downfall
I loved you first

Flô


Tinha uma adivinha no nome de que ninguém suspeitava. Denunciava-se para que a soubessem. Era um nome vulgar. Nome de flor, que foi, nome de gente também.
Nome nas mulheres da sua terra. E, em canteiros que, bordeavam portas e cancelas.
De mil nomes e mil cores, enraízadas em troncos fortes e espinhosos.
Flor protegida por si, dos demais. Perfume que atrai. Beleza que doi.
Cores dum arco-íris em terra.

Desfeia-se, pétala a pétala, para enfeitar novos jardins. Jardins onde se semeia esperança de felicidade para sempre.

Presa entre páginas dum livro, lido vezes sem conta, faz repousar a memória duma despedida ou dum instante de amor. Em flor.
A Flor.

Ou Flô , como ele lhe chamava, na sua lingua criança. Flô, porque continha todas as flores, formas, cores,odores...
Era todo um universo contido no nome vulgar de Mulher. Flô.
Flô, agarra-me Flô!

Esta noite

Deitei-te dentro de mim. Para que embalasses comigo, os sonhos que me pediste para sonhar.

O Inferno d'Antes

Havia inferno,sim. Lembrava-se bem.
Era um sitio, guardado, no fundo dumas escadas muito compridas. Escuro, muito escuro, onde, à noite, se dançava com socas de ferro. Entre muitos gritos e fartas fogueiras.
Mas, só á noite. Como os pesadelos quando desce o sono.



Sabia-o

Ela sabia-o.
Não porque achasse que era assim. Olhava-se e via-se igual. Ás vezes, feia até.
Em tempos tinham-lhe dito que não era bonita mas, a simpatia, que irradiava, fazia-a assim. Bonita.
Talvez fosse isso. O sorriso e o bem-querer, que a tornasse visível.
Sabia que olhavam para ela. Sentia-o. Mas convivia com isso, sem disso, fazer caso.

Quando entrou no café, para o vicio da manhã, ia em fugida.
Posso dizer-lhe uma coisa?
Sim, diga. Pegou no saco que levava e no café acabado de servir e dirigiu-se ao homem que lhe fizera o pedido. Tinha-o já visto em conversa com amigos. Supunha que iria saber algo que tivesse a ver com eles.
Desculpe, preciso dizer-lhe uma coisa, não me leve a mal.
Esperou.
A senhora é “boa como o milho”!
Espantou-se e calou-se no espanto que não a deixava falar. Pois se nem sabia o que poderia fazer!
Ele corrigiu, perante o incómodo que viu provocado. Sabe…é bonita, elegante.
Ainda sem recuperar, sabendo que outros se uniram a ela no espanto, balbuciou em surdina que agradecia a gentileza. Mas por favor…não volte a dizer-me mais nada. Guarde-o para si.
Mas, se há tanto tempo o guardo? Respondeu. Desculpe, então.
Á procura do sentimento que devia vestir, que os sentimentos, ás vezes, não se revelam. Que os registos não estão ainda feitos… a razão não os aprendeu, saiu do café com a chávena a meio.
Sentiu raiva, reconheceu-a. Raiva de não saber expressar-se, de não saber que sentir.
Entrou no carro, acelerou.
Chegou a casa com a lágrima a bailar na dúvida de cair.

No fundo… ternura.
Pela simplicidade. Pela espontaneidade. Pela verdade que, também, sentira.
Porque em vez de olhares, ouviu a voz que os acompanha. Da forma mais rude e simples que alguma vez imaginara.

Stória, stória


Stória, stória. Furtuna di seu, ámen. (Cabo Verde)

É um mundo, muito escuro, como um poço sem fundo. Frio e negro.
Porque, também, é frio o mundo…
É uma menina muito triste, tão triste como um dia de chuva em que as lágrimas caiem do céu em torrente.
É um espaço sem fim e sem princípio.
No ar soam ruídos, afinam-se orquestras. Sem instrumentos visíveis.
Adivinha-se tudo e tudo se teme.

Como num colo, que não sabe, ela enrola-se em si num buraco de terra que cavara com as suas mãos e com lágrimas que deitara sem perceber.
Quando fecha os olhos com força, vê para seu encanto, mil pontos de luz que não conhece, senão assim.
Quando fecha os olhos devagar, sonha com as cores que adivinha existirem.

Um dia não lhe chega o mundo que tem.
Nos sonhos e pesadelos cresce o desejo doutras coisas.
Desaninha-se pela primeira vez.
Uma mão fechada a abrir-se. Um braço tolhido a esticar-se. Um olho e depois outro, abertos. Mexe-se. Todo o corpo ainda dorme.
Desajeitada mas firme deixa o poiso que a embalara e parte.
Braços abertos, estendidos, sentidos alerta, tacteia espaços e sons. Que, tantos há!
Atreve-se em constante balanceio.
Tudo tão novo e tão velho. Tão seu ainda. Só seu.

Tropeça agora sem amparo. Tomba. Tacteia de novo.
Pressente, sente, igual. Outro.
A cada gesto novo responde um gesto repetido. A cada som, um som.
É tocada. Encolhe-se, quer ninho, outra vez.

Abre-se. Sabe bem. Melhor que o colo que sempre teve.
Adivinha duas estrelas que a fitam. Sente agora o calor que delas emana. Aquece.
Vê-se em reflexo de si. Descobre-se enfim…
Entende-se então.

Para isto, é gente!

Olhar-te-me

O que te apetece fazer? Pergunta-lhe então.
O que fazemos agora, responde, ver-me pelos teus olhos. Veres-te pelos meus.
Endireita-se, roda um pouco, deixa que os seus olhos fitem claramente os dela. Pede-lhe, que vês?
Sou ainda reflexo. Mais tarde, olharei sem me ver.
Fecham os olhos e esperam mais tarde.

Coisas pequenas


Coisas pequenas,
são coisas pequenas.
São tudo o que eu te quero dar.

Estas palavras, são
coisas pequenas
que dizem que eu te quero amar.

Amar, amar, amar
Só vale a pena,
Se tu quiseres confirmar.

Que um grande amor,
não é coisa pequena,
que nada é, maior que amar.
...

Madredeus

Nação

Iço minha bandeira
em teu mastro.
Sou uma nação, por ti
povoada.

(nascem de meus dedos,
palavras...
hinos,
do que, por ti, sinto.)

Que magia...?

Todas as manhãs, assim que o sol ilumina as frestas das persianas mal corridas, esgueira-se sorrateira, deixando o volume do seu corpo, dormindo ainda.
Desce as escadas, encostada às paredes que, agrestemente, a amparam. Suspira ais, porque lhe pica a parede, mas engole-os, não se desfaça o silêncio.
Percorre a casa em direcção á sala onde está a televisão. Carrega no botão e sobe apressadamente para o sofá. Compõe-se a jeito e arregala os olhos, para nada perder.
Apercebe-se então da sua nudez. Dorme á vontade. Só a cuequinha a aconchega. Ali, meia nua, protege os pequenos mamilos, para não ser vista em tais preparos, pelos homens da televisão que lhe interrompem os desenhos animados.

Um dia também quer entrar naquela caixa, onde tanta gente vive.
Como se tornavam eles, pequeninos? Que magia haveria, que lhes permitia ali entrar?
Escorrega do sofá, baixa-se e quase de gatas chega á mesa onde estava o grande ecrã. Levanta as saias á mesa e nada de estranho descobre. Nenhuma possibilidade se adivinha. Rodeia então a mesa. Por trás da televisão, aquelas frestas, são de certeza, a solução para o seu problema. É por aí que entra toda a gente. Mas como o fazem? Se ela, tão pequenina, não cabe lá?

Senta-se de novo, agora, atenta aos “bonecos” que deixara a meio. Talvez, nas histórias que ouve, se desvende o segredo que quer saber.
Amanhã, como ontem, fará o mesmo.
Quando for grande, vai perceber.

Leio-te

Sinto-te.
Como quem lê um poema,
gesto a gesto.

Um dia,
recitar-te-ei de cor.

Grães de areia

Em voo para lá do Arco-iris


Ouviamos "Somewhere over the rainbow" e a frase destacou-se. "Birds can fly... why dont i?"
Disse-lhe, sabes que sonho que voo? Riu-se. Que o pai dele também o sonhava. E um dia, ele, o quiz fazer tambem...
Continuou.

Eu já voava. E no meu sonho, agora, tinha quem voasse comigo.

A Fala


"... Gramática de sal e maresia
Na minha lingua há um marulhar contínuo.
Há nela o som do azul. O tom da viagem.
O azul. O fogo de santelmo e a tromba de água. E também sol. E também sombra.
Verás na minha lingua a outra margem."
Manuel Alegre, excerto do poema A Fala

Metade


Que a força do medo que tenho
não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito
não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio.


Que a música que eu ouço ao longe
seja linda, ainda que triste.
Que a mulher que eu amo
seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida
e a outra metade é saudade.


Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que eu ouço,
mas a outra metade é o que calo.


Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz que eu mereço.
Que essa tensão que me corroe por dentro
seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso
e a outra metade é um vulcão.


Que o medo da solidão se afaste,
que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto o doce sorriso
que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei...


Que não seja preciso mais do que
uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo,
mas a outra metade é cansaço.


Que a arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é a platéia
e a outra metade, a canção.


E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor e a outra metade...

também.

Oswaldo Montenegro

Capas negras

Capa negra, rosa negra
bandeira de liberdade


"Eu sou livre como as aves
e passo a vida a cantar
coraçao que nasceu livre
não se pode acorrentar"

Adriano Correia de Oliveira

Negras, porque são da noite. Dos copos, das farras. Das tertúlias. Dos segredos, dos temores e das confidências.
Esvoaçam pelas cidades, que os albergam, em busca do que perseguem. Por entre a boémia as noites mal dormidas, vencidas até, em frente de livros que têem de sorver, em busca dum conhecimento maior. Da vida.
Capas que albergam sentires que os poetas declamam.
Capas que escondem quem se é. E revelam quem se quer ser.

O velho Casino Oceano


Mostra-se agora renovado. De cara lavada, olha de lado o outro que é seu vizinho. Esse vestiu roupa nova, e a cara que mostra, não lembra outros tempos. Aposta na modernidade. Mas, a beleza, não é moderna ou antiga. É eterna.

Meu nome?


"O meu?! Chamo-me Acácio. Os dois últimos nomes são de meu pai, o outro, não sei a quem pertence. Da minha mãe, não é!
Não sei como foi... Os meus papéis, já tinham isso escrito. Não posso fazer mais nada... Disse-o um senhor de fato, muito aprumado e com ar sério, que mos entregou em mão."

Eugénio


" Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite. O amor da transparência é a minha fraqueza, mas a minha força tambem.
Quanto a mim, gosto das palavras que sabem a terra, a água, aos frutos de fogo de Verão, aos barcos no vento; gosto das palavras lisas como seixos, rugosas como o pão de centeio. Palavras que cheiram a feno e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol."
Poética, Eugénio de Andrade, folheto de exposição "Eugénio de Andrade-30 anos de trabalho"(22.Outubro a 15 de Novembro 1976)

Abraço


Olho-te nos olhos, calma e docemente...
- Fecha-os agora, para não me perderes. Abraça-me.
Se os fecho, beijo-te. E abraço-te sim.
- Leva-me na memória quando fechares o abraço. Não distraias o olhar.
Sim, completamente. Tenho-te na memória.

Espera...

Espera!
Não te vás ainda...

Há tanto para dizer e fazer.
Hoje só isto

És mim
Quero-te assim!

O Músico

" Tenho saudades das memórias, que o futuro me há-de trazer"
Calou-se e olhou em frente, como se o estivesse a pressentir.
Olhei-lhe a idade.
Perguntei-me, como ter saudades? Ou memórias do que está para vir?
Porque nada há para trás, que valha a pena?
Respondi-me, porque se sonha!

Era músico. Na sua alma, nasciam pautas onde bailavam colcheias e mínimas.
Uma sinfonia a crescer. Que, um dia, seria tocada.

O que fazemos tem devir. E retorno também.

Sonhava os aplausos e praticava a vénia que faria, de batuta na mão.
Por isso, tinha saudades e memórias do que está para vir.
Nos sonhos, que lhe davam força, para correr, com partituras debaixo do braço, dum lado para o outro. Aturar alunos sem garra. Cumprir prazos de entrega. Entreter tertúlias, onde se falava dos tempos que temos para viver.
E tantas coisas para fazer!
Haviam as sonoridades da sua terra, as vozes que nunca se mostraram. Haviam, mil melodias de todas as cores, a nascerem em murmúrios e a fazerem-se obra em faixas de cd's.
E, as vozes, que eram para domar e as orquestras, para as abraçar, pertencem-lhe todas e a todas anseia.

Terão os sonhos devir?
E retorno? Também?
Têm de ter. Tem de ser assim.

Os olhos fitos no infinito, voltam a nós, a mim. Um sorriso ilumina-lhe o rosto. Sorrio com ele. Acreditamos os dois.
Mas, sossego a saudade. Porque este momento é muito mais importante. O de a declarar.
E voar para lá dela, num futuro que há-de vir. Virá!

Johnatan Livingstone Seagull


Lembro-me, ainda, claramente e ouço em mim a música que o acompanhou. Foi ,talvez, uma das coisas mais importantes ou a que mais me marcou, para a vida inteira. A história, em filme, de Fernão Capelo Gaivota.
Sei que, naquela atura, prometi a mim mesma, voar sempre, mesmo que na adversidade.
As asas não me cresceram, mas os voos, fi-los. Uns dentro, outros fora de mim.
Percebi que, muitas vezes, me desampararia na queda.
Percebi que, se o quisesse, de novo me ergueria em voo.
A força, essa, tirá-la -ia do que, em mim, ia crescendo a pouco e pouco. Seria então, cada vez mais forte e iria mais além.
Mesmo frágil, teria forças.
Era ainda miúda, bem sei. Talvez, por isso, mais ávida ainda. Com uma permeabilidade maior tambem. A vontade de saber era maior que o tamanho que tinha. Foi sempre maior.
Mas se até, as pequenas e frágeis gaivotas, eram assim...


Meu tio, tinha morrido há pouco tempo. Continuava, no entanto, comigo. Assim, prometi-lhe que voaria. Que ele me veria voar. Queria que ele continuasse orgulhoso de mim. E contasse as minhas histórias, a quem, com ele estivesse.
Quando minhas asas fraquejam, deve sabê-lo, chamo por ele: "Father...."
E, em esperança, plano e guio-me através dos ventos.

Richard Bach autor do livro Fernão Capelo Gaivota, era piloto da Força Aérea Americana, após dar baixa no fim dos anos 60, resolveu dedicar seu tempo á literatura.Richard Bach diz ter ouvido uma voz contando- lhe a história de Fernão e passou a escrevê-la, nenhuma editora quis publicar seu livro.Nos anos 70 finalmente Fernão Capelo Gaivota foi publicado, o sucesso foi tão grande que o livro foi adaptado para o cinema.Depois de 10 anos o livro foi o mais vendido no mundo inteiro.

Porto sentido

O crachá do Porto

No fundo, esquecido, como se nada valesse, no fundo duma caixa com brilho de novo e cheiro a velho, jazia envergonhado. Encolhido mas sedento. De novas aventuras sentidas. Azul e ouro debotado. O crachá do Porto. Antes viajante orgulhoso de lapelas de casaco. Por tantos lugares e sentires. A prova dum amor a uma terra , a um clube. Não tão glorioso como no presente mas com a glória de ser amado por quem e como foi.
Maria esboroou-se. Era de novo a presença dele que consumia o ar que respirava. E sonhou. Regressou ao tempo em que dançava com ele pés nos pés. Os braços pequenos á volta das pernas e a valsa sentida que o coração ritmava. Eram um só e só um do outro. Naquele tempo e para sempre. Nada nem ninguém cabia naquele aperto que nunca iria acabar. Não podia. O coração inchou. O peito tremeu e ampliou-se para o albergar. Um homem tão Grande precisa dum coração á medida. E Maria decidiu que queria um coração do tamanho do mundo. Do mundo de tantas coisas...
Há tanto tempo! E podia ser agora, tão presente estava o sentir.
Do tempo em que Maria “sabia” que se nasce com nome e os pais que nos calham. Como escolheste os teus pais, Maria? Como?! Se já cá estavam...
A cor dos olhos, a vida que temos, as cores de que gostamos, os sabores, os afectos, os clubes pelos quais vibramos, tanta coisa com que se nasce e não conhecemos. E as memórias de Maria não tinham ainda esses registos. Era preciso que as coisas e os outros lho lembrassem. E eu, a que clube pertenço? Por quem vou vibrar? Quem me vai levar a correr mundo e a viver na ânsia do que for? E o Homem do crachá, na sua imensidão disse-lhe: Tu? Tu és do Benfica.
Maria parou. Como podia ter nascido noutro clube se lhe parecia serem o mesmo: ela e aquele homem, um só! Que mistério era aquele?
Mas ele sabia. Só podia. Ele era o detentor de todas as coisas. De todas que ela aprendera a amar. E ia amar muitas mais. Nesse momento Maria aprendeu que no seu coração muitos mundos iriam caber.
E Maria ainda hoje é do Benfica. Com uma gratidão enorme pelo Homem do Porto. O homem que soube descentrar-se e mostrou uma capacidade de amar que Maria quer sentir. Por isso ainda hoje o coração de Maria cresce no exercício constante da vida.
E, às vezes, ao lado do coração de Maria, viaja o crachá do Porto que para sempre se alojou no seu interior.
Como o Homem a quem pertencia. E pertence, pois então!

Tudo, quero tudo.

Quero deitar-me na tua sombra para te conhecer melhor

Cada um sente o que sente, de acordo com a medida das coisas e é o que é, na relação que tem com elas. Por isso as escolhas diversificadas.
Há os que se satisfazem com o que têm. E nada lhes faz falta.
Há os que nunca se satisfazem. Procuram sempre mais e melhor ( às vezes, na nossa dimensão, pior ).
Há os que têm consciência das suas limitações. E há os que não têm. Há também os que tendo não se satisfazem. Outros há que nem por isso.
Desta convivência de estados advém resultados e sentires diferentes.
E a alteridade que nos é devida poder-nos-á fazer perceber porque todos nós, seres únicos e diferentes, não (re)agimos às mesmas coisas da mesma forma.
È razoável quando calamos a nossa dor com a dor maior dos outros. Não é razoável, não a pretendermos curar. As feridas gangrenam por falta de tratamento e amputam-se coisas em nós , de que necessitamos.
Assim, se eu puder andar e não o fizer ou não me deixarem, limito-me ou insatisfaço-me.
Se não puder andar tenho de o fazer munindo-me de outras armas ou apaziguar-me. É a reacção a estas possibilidades e impossibilidades que me faz viver.
Com amargura, ou em paz.
Ou em desequilíbrio como prefiro ( no sentido que o desequilíbrio leva a novos caminhos).
É a medida que tenho, do que me envolve, do que sou, das minhas capacidades ou incapacidades, que me dá sentires diferentes . E me faz sonhar.


Porque há sonhos que nunca deixam de o ser. Nunca deixa de ser importante sonhar. Porque, (frase feita) “ Sempre que um homem sonha o mundo pula e avança”.
È verdade que em relação a tantos outros deveríamos ser felizes, no sentido da quantidade. Temos mais.
Mas sabemos usar tão bem o que temos como os outros que nada têm?
Há tempos, um amigo perguntava-me a respeito de pais e educadores de crianças com deficiências mentais “Como podem eles não enlouquecer?”. Respondi-lhe “Tendo a medida das coisas”. Conhecendo os limites, ajustando-se ao estado sem deixar de sonhar para poder investir.
E é assim que (sobre)vivemos.
Quem é que pode não querer nada?
Só os que já tudo tiveram. E tudo, foi demais.

Assim como o sonho, a náusea é vital. Não nos pode é turvar a vista.

Cinco horas


Minha mesa no Café,

Quero-lhe tanto... A garrida

Toda de pedra brunida

Que linda e que fresca é!

...

Sobre ela posso escrever

Os meus versos prateados,

Com estranheza dos criados

Que me olham sem perceber...


Sobre ela descanso os braços

Numa atitude alheada,

Buscando pelo ar os traços

Da minha vida passada.

...

Nos cafés espero a vida

Que nunca vem ter comigo:

-Não me faz nenhum castigo,

Que o tempo passa em corrida

...

Paris, Setembro de 1915


Mário de Sá Carneiro in Indicios de ouro

A rasgar pedra


Em sinfonia de pausada cor, instala-se e anima um pedaço de muro, parede. É assim o azulejo.

São gansos, senhor...


Pata acolá, pata aqui,
Filha de reis a guardar patos,
foi coisa que nunca vi.
Na cabeça pequenina de Maria, não cabia explicação para não ser filha e não ter pais. Todas as outras crianças que conhecia, viviam entre pais e irmãos. Maria, não.

Por isso, quando ouvia a história da "Princesa que guardava patos", sonhava.

Que, também ela, era princesa. Que, tambem ela, por alguma maldade, tinha sido tirada a seus pais.

Algo lhe dizia que na sua tez estava a resposta. Tão morena e ao mesmo tempo, tão amarela tambem!

Criou a sua própria história que não contava a ninguem. Embalava-a nos seus sonhos, quando só sonhar, podia.

Tambem ela um dia, fora princesa. O pai negro, para lhe justificar a cor, era rei dalguma tribo africana. A mãe, talvez chinesa. E assim, resultava a mistura que, lhe estranhavam.

Em viagens por terras distantes, o encontro dos pais. Ela, a semente que desabrochara. A vergonha, a culpa, os erros dos pais, que adivinhava, fizeram-na para longe, viajar. E guardar patos.

Um dia, seria a princesa que julgava então ser.

Aos pais, não os queria encontrar. Sabê-los, chegava-lhe.

Aos filhos, quando os tivesse, não os queria perder. Outras histórias e outros sonhos haveriam de os povoar.

Seriam o final feliz, das histórias que ouvia contar, a quem a criou.

Porque afinal, todas as histórias tinham um final feliz.

Destroços

Foi um grande barco. Atravessou muitos mares. Um dia ficou aqui. Não, que não se tivesse tentado uma saída em glória. Não, que não se tivessem feito os maiores esforços, por muito tempo.
Aqui ficou à semelhança de rochedo. Em lembrança. Abraçado pelo mar.

...entre o alvo e a seta

Aquele era o tempo, em que as mãos se fechavam

E nas noites brilhantes, as palavras voavam

E eu vi que, o céu me nascia dos dedos

E a Ursa Maior eram ferros acesos.

Marinheiros perdidos em portos distantes,

Em bares, escondidos em sonhos gigantes.

E a cidade vazia, da cor do asfalto.

E alguem me pedia que, cantasse mais alto

Quem me leva os meus fantasmas?

Quem me salva desta espada?

Quem me diz, onde é a estrada?

Aquele era o tempo em que, as sombras se abriam,

Em que, os homens negavam o que outros erguiam.

E, eu, bebia da vida, em goles pequenos

Tropeçava no riso, abraçava venenos.

De costas voltadas, não se vê o futuro

nem o rumo da bala, nem a falha no muro.

E alguem me gritava, com voz de profeta,

que o caminho se faz entre o alvo e a seta.

De que serve ter o mapa, se o fim está traçado?

De que serve a terra à vista, se o barco está parado?

De que serve ter a chave, se a porta está aberta?

De que servem as palavras, se a casa está deserta?

Quem me salva desta espada e me leva os meus fantasmas?

Quem me diz, onde é a estrada?

Pedro Abrunhosa

Rato de biblioteca

Rato de biblioteca, na avidez de novas palavras e combinações, Maria não perde o tempo que é livre de usar. Em casa no semiescuro, à luz insípida duma lamparina embala-se nas leituras disponíveis. Agradece à santa e á devoção de quem a alumia. Sem testemunhas, descobre respostas a mil perguntas que a invadem. E entrega-se saciando a fome que a atormenta. E que cresce a cada dia.


Lugares

Lugares que habito e me povoam.

Flor, cor

Pétala a mim, pétala a ti. Com as nuances que o sentir tem.
Estava-lhe reflectido nos olhos. Não porque o espelhassem. Estavam baços, sem vida. Longe do brilho que costumavam ter.
Estava-lhe presente nos gestos. Pendia-lhe o corpo como se a qualquer momento se desboroasse.
Afirmava-se na voz que não ria como costumava fazer.
Via-a pouco, agora. Isolava-se e de vez em quando obrigada a sair, aparecia. Mas com o incómodo que os espaços lhe causavam. Com a pressa de retornar ao aconchego que deixara.
Percebia-se o esforço, que era antes energia,em querer viajar. Falava nas coisas que tinha e precisava de fazer. Mas a voz comia-lhe o pensamento. Perdia-se no querer. Deixava-se ficar.
Perdera o viço, a alegria, a paixão. Respirava a vida com esforço.
Não havia sombra das lágrimas que chorava por dentro. Mas eu sabia-as. Porque a conhecia tão bem. Dolorosamente bem.

Vista

Vista discretamente, sem ruído e sem devassa. Deixa-se estar em serena tranquilidade, a paisagem que me é permitida.

Respiro

Aqui ainda respiro, tudo é ainda possível. A vida tem mais cor. Mais poder. Possa eu, para sempre, respirar assim.

Defendo-me

Transfiguro-me.
Armas em riste.
Espero o ataque mas pronta para atacar.
Sei que tenho a sobrevivência nas minhas poucas defesas.
Que armo.
Descansarei quando o perigo se for.

Perguntam-me sempre porque crio tal carapaça.
Respondo, porque quero paz.

De que guerras, foges?

E paro. Procuro em mim as guerras, se as houve.
Penso que não. Não as descubro.

A não ser a luta constante num qualquer devir.
Pela paz.
Pelos sorrisos, mesmo que máscaras.
Paz. Tranquilidade. Sossego.

Chega-me o que tenho.
Acomodar, o espaço que tenho, a outros, deixa-me exaurida.
Sufoca-me e confunde-me.
Desconheço-me sempre em tanto esforço.
Procuro-me e não me encontro. Nunca.

Defendo-me.
Descansarei quando o perigo se for.

Ilusão.
Aqui não me quedo só.
Só me quedo aqui, porque quero! tão só.
Respiro, inspiro, inspiro-me para outros voos.
Quedo-me no tempo que o tempo me dá.
Que o tempo me fez. Aqui, agora. Tão só.
Sou todos os tempos.
E todos estão em mim, na memória e no que sonho.
É tão só!

Escada para o céu

Dum azul para outro, para ver mais longe quem chega. Para ver de mais perto quem se vai.
Embora a distância não exista quando te penso.
Pertences de forma mágica ao mesmo espaço que ocupo. No mesmo tempo. Um tempo sem passados nem futuros. Só o presente que eternizamos.
Embora a distância não se interponha.
Quero-te muitas vezes de forma real. Ver-te o sorriso, ouvir-te a voz que sei tocada pelos anos que não conheço.
Porque te fiz presente e te recordo assim. Com as fantasias que o amor faz crescer em nós nas ausências, na segurança de que nunca deixaria de te amar. Porque me faltam razões. Porque me sobram memórias.

Gaivotas em terra...

... tempestade no mar.
E o mar estava tão calmo!
Acho que aproveitavam, antes, o espaço, ainda delas. Porque o tempo doutras aves que, sazonalmente, se instalam no areal está perto. E tanta areia e tanto mar, vai ser repartido e disputado.

Roxanne- Tango


Do filme: "Let's dance"

Em Roxanne vivem-se intensamente e no limiar, as emoções. Amor, paixão, ciúme, desejo de vingança e novamente amor. Num triangulo que os tangos tão bem fazem sentir.

Entrega, posse, prisão e liberdade. O querer demais, sempre demais. Amar até à exaustão. Fogo que arde e que se vê. Labareda sempre incontida, indomada. Tensão.

Muito para além da emoção, que nos atinge e devora delirante e veloz. Em fúria. E ternura.

Women in art