Sono vadio

Os papos nos olhos que lhos faziam pequenos, denunciavam a inquietação das noites.
O ar cansado mas calmo dizia que tudo não passava dum capricho de sono.
Um sono vadio, como ele lhe chamava.
Cansado da rotina das noites que já não lhe traziam nada de novo, ausentava-se por paragens que ele não lhe conhecia.
A principio, procurava-o por entre as páginas dum livro entre os muitos que andavam pela casa.
Tentou pressenti-lo nas músicas doutros tempos. Talvez andasse a vasculhar memórias.
Deixava-se ficar debaixo do chuveiro, de olhos fechados, a sentir o calor da água aquecer-lhe cada pedaço de pele até ficar engelhada. E via o sono a brincar nas nuvens de vapor.
Colava-se ao espelho e pedia-lhe legendas nas adivinhas que lhe segredava.
Acabava com uma amálgama de palavras e imagens que não sabia de onde vinham. Apagava-as com a toalha. E de repente, mirava-se e pedia ao sono que deixasse de se esconder.
Derrotado pelo cansaço caia em cima da cama ainda fria. Secava as últimas gotas nos lençois que agora o cobriam e fechava os olhos. No escuro do quarto ficavam as estrelas dentro dos olhos a bailar.
E num sítio qualquer viajava o sono vagabundo. Longe, sem destino.
Á procura, não sabia ele, de quê. De nada e de tudo. Se calhar só de distância e liberdade.
Nas voltas que dava prendia-se nos lençois em que de manhã se vinha enrolar o sono.
Encostava-se devagarinho pousando os dedos nas pálpebras e um respirar quente e cadenciado no peito. Tomava conta do corpo levando-o, exausto, a desligar-se lentamente.
Apagavam-se as estrelas no firmamento dos olhos e adormecia finalmente.
Tarde demais, sempre.
A noite já se levantava para ir para outras paragens. O dia fazia a rendição de turno.
Ao fundo do sono que só agora viera, chega o som irritante do despertador.
Como se uma mola fosse accionada levanta-se dum pulo. Felizmente fizera a barba na espera do vadio. No corpo o cheiro e o sabor a banho recente dão-lhe tempo para esticar a preguiça que se encolhe e lhe pede cama.
Engole um café feito na véspera que aquece no microondas. Não há tempo para mais.
Em cima da mesa, uma maçã em que pega para comer no elevador, serve-lhe de pequeno almoço.
Nos olhos leva os papos que lhos fecham. Para que ninguém lhos suspeite, pôe os óculos escuros que só tira a meio da manhã.

Um dia vai ajustar contas com tanta vadiagem dum sono que começa a desconhecer e a sentir saudades.

Sem comentários:

Enviar um comentário