O Miguel

O Miguel tinha o dom de saber receber as pessoas e a mim encantavam-me as surpresas que ele preparava.

Vivia num prédio antigo numa das ruas estreitas que caminhavam para o castelo. Era preciso subir e perder o fôlego nas escadas de madeira já carcomida para lhe bater á porta. Ali uma imagem esbatida dum santo desconhecido, resgatado ao abandono dava as boas vindas. Abaixo uma prateleira de madeira numa cor inusitada com uma jarra de vidro com velas gastas e flores secas compunha o conjunto.
Em vez da campainha, tocava-se o sino, pequeno enegrecido pelo tempo.
Desta vez, na porta, o Miguel deixara um aviso. Pedia que fosse cuidada e como não pudera convidar os vizinhos que não os perturbasse. Por isso deixava a chave pendurada para poder abrir a porta com cuidado.
Lá dentro já se respirava a azáfama. O Miguel andava perdido no meio dos amigos. E de repente estava ao pé de mim. Era importante que todos se conhecessem.
Cada um devia trazer ao peito uma etiqueta com o nome. E mais importante ainda. Era preciso saber-se se estava sozinho ou acompanhado. Melhor, se era solteiro ou não.
Numa festa em que o Miguel ia apresentar a namorada era importante juntar as pessoas.
Porque ao Miguel não falhavam esses pormenores. Gostava de distribuir quando tinha para dar. Gostava de dar mesmo que não tivesse. Fazia das pequenas coisas, pequenos gestos, mundos impensáveis.
Via-se no seu espaço. Um espaço em que cada canto tinha histórias para contar e segredos guardados. Na poltrona que encontrou despida numa esquina e vestiu de laranja. No louceiro que comprou na feira da ladra e agora é azul-turquesa e se encheu de vasos com salsa, hortelã e outras ervas.
Ou naquela estátua sem cor á espera das suas mãos hábeis, ou não.
Espalhados por toda a casa entre conversa e risos toda a gente se vai conhecendo. Quem vem sozinho já não está. Aqui e ali trocam-se alguns olhares que passam a palavras.
E há etiquetas acasaladas no mesmo peito, nomes de mãos dadas a cruzar a porta ao fim da noite.

Pões-me na gola do casaco o alfinete com a pedra pintada que o Miguel deu a cada uma das mulheres. Sorrio-te. Dás-me a cara. Devo-te um beijo. Era o presente que o Miguel não distribuíra aos homens.

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