Passos

Ligou-me um dia, já tarde. Precisava muito de falar comigo. Num sítio calmo e sem que a filha soubesse. Por favor! E tratava-me carinhosamente pelo diminutivo que nunca usei.
Vasculhei um espaço com tempo livre e marquei um sítio.
Sentia que já sabia o que me ia dizer. Coisas que eu já conhecia. Todos já sabiam e ninguém se atrevia a dizer-lhe. Vesti-lhe a dor que suspeitava. E dentro dela tentei respirar devagar. Para a conhecer inteira, sentindo-lhe cada canto. Talvez assim vestida a pudesse confortar melhor.

Pediu-me que falássemos noutro lugar, mesmo dentro do carro. Senti-lhe um desconforto que nunca lhe tinha visto. Tive a certeza de que já sabia.
Falou de coisas triviais e do orgulho que tinha de eu ter conseguido ser o que era.
Falou da pena enorme da filha não o ter sido. Calou-se por algum tempo.
Vi pelo canto do olho que limpava uma lágrima teimosa. Parei o carro.

Sabe? E de novo o carinho no diminutivo. Não sei que fazer... E deixou-se esvaziar ficando sem ar dentro dela que a sustentasse inteira.
Penso que a minha filha desistiu de tudo. Nem vergonha já tem.
Lembra-se como a encontrou. Sabe como ela era. E o que ela foi. O marido deixou-a. Levou-lhe a filha em troca dum filho que só nos dá problemas, com que não sabemos lidar...
Fica um pouco em silêncio, á procura de alento para continuar.
Fez de tudo como sabe. Trabalhou tanto! E a vida nunca lhe sorriu. Correu-lhe tudo mal.

Tentei acalmá-la agarrando-lhe as mãos que não sabiam que fazer. Fiz-lhe entender que sabia o que ia dentro dela. Porque o sabia. E mesmo que não quisesse, também a mim me doía.
Por nada poder alterar. Pela incapacidade de ir para além da realidade. De fazer mais, doutra forma.
Olhar a dor daquela mãe, da idade da minha, a pedir-me ajuda e conforto. E ser mais pequenina tentando ser maior. Á medida do que esperava de mim. E poder ser só o ouvido e o ombro ali.

Sabia já o que ela me ia contar. A filha já mo tinha dito.
Ganhava agora o dinheiro que trazia para casa á custa do próprio corpo. Perdera tudo o que podia perder. Agora, tinha de cuidar dos seus da única forma que a vida lhe tinha deixado. Mais baixo não desceria. Porque chegara ao fundo. E tentara tudo.
E todos testemunharam. Eu também.
Nada nem ninguém fez o que poderia ou deveria ter sido feito. Portas fechadas sem prazos. Numa vida que não tem tempo para adiamentos.

A minha filha, agora, vende-se para nos sustentar...
Um choro compulsivo subiu-lhe no peito que agarrei contra o meu. No abraço em que ficámos deixámos as lágrimas rolarem.
Porque ás escondidas, não me contive, chorei!

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