Vidas...

Lembro-me bem da primeira vez que a vi. Ia á procura dum nome que ainda não tinha rosto.
Estava de costas para mim, inclinada sobre um tanque, onde lavava toalhas dum restaurante. A primeira coisa em que reparei, foi na forma como as pernas de tão inchadas pareciam defeituosas. Corridas por varizes que saltavam e se mostravam azuis e vivas á flor da pele. Só quando ela se voltou lhe vi a barriga enorme. Uma gravidez no fim.
A cara cansada, os olhos baços não me deixavam ver quem era. Porque afinal já a conhecia.
Foi ela que se deu conta. E um sorriso bailou-lhe entre as lágrimas que não podia evitar, ao trazer-me as memórias de quando eramos pequenas.
Incrédula, esqueci-me que era o trabalho que me levava ali. Por momentos fomos de novo colegas de escola e de traquinices.
Tinha já um filho, que lhe dava problemas, não sabia o que tinha. Esperava outro.
O pai? Pela cidade grande, esquecido da família que visitava de vez em quando. Era polícia, pessoa de bem. Mas o dinheiro nunca chegava...

Tudo se tinha desmoronado depois que o pai morrera. O negócio de família foi a pouco e pouco caíndo. A mãe doente não tinha forças para garantir o sustento dos filhos ja crescidos.
Ficara a casa e a memória de tempos de trabalho mas de alegria e conforto.
Ela casara com um bom homem, de boa formação. Pensara toda a familia.
Tudo se resolveria. Ajudaria a mãe e continuariam a viver para melhores dias.
Foi com o nascimento do primeiro filho e o destacamento do pai para longe que tudo voltou de novo á tristeza que julgavam passada.

Eu estava ali para lhe falar do filho. Para a tentar ajudar e saber como o fazer. O filho que lhe dava problemas. Que ela fechava no quarto para não fugir. E que a pouco e pouco lhe arrancava os tacos do chão. De fora ouviam-se os sons estranhos e o barulho que ele fazia a bater com eles na parede. Passava assim dias, sem parar.
Estava perdida, não sabia o que fazer. O marido dizia que a culpa era dela. Não o sabia educar. Não obedecia, não falava, não olhava direito para ninguém. Nem um sorriso sabia dar. Só aqueles "urros" ou "grunhidos" que ninguém lhe entendia.
Culpa dela que o deixava fechado em casa para ir procurar o sustento que lhe faltava. Isso ele pretendia não saber.
Por isso o tinha posto numa "escolinha". E agora tambem de lá vinham os problemas.
Falta de dinheiro para os pagamentos. E as suspeitas de que alguma coisa estava errada com o filho a crescerem.

Estava para falar. Fiquei-me a ouvir.

Tinhamos a mesma idade, andámos na mesma escola. Corremos nas mesmas ruas e conhecemos as mesmas pessoas. As nossas familias e as nossas vidas tinham-se cruzado.
Poderia ser a minha história.

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