A partida

Parte agora decidida. Para trás fica a vida empacotada, arrumada. Tudo fica num lugar que demorara a encontrar mas encontrara pouso por fim. Na casa tudo ficou coberto por lençóis brancos para se resguardar do pó do tempo. As coisas pareciam-lhe mortas. Estavam apenas adormecidas á espera de novos acordares. Apaga as luzes depois de fechar cuidadosamente todas as janelas.
Olha a lista que fizera de tudo quanto queria levar: enorme.
Maior é a lista do que fica para trás e sabe que vai sentir a falta.
Mas apetece despojar-se das coisas, até das memórias. Iniciar uma história nova num sítio novo como se nascesse do nada mas transportando consigo já a sabedoria dos tempos… Porque a dor já a tinha amansado, já a tinha feito ser quem era e mesmo sem os adornos não se despia de si e caminhava carregada apesar de querer e desejar-se leve nesta partida.
Parte decidida porque quer chegar e começar tudo como se nada houvesse para trás.
Carrega a roupa, leve para o verão que sabe muito quente. Alguns casacos para as noites frias em que se imagina a escrever os sonhos que lhe crescem nas pontas dos dedos, numa varanda qualquer…
Não, ninguém lhe confirmara ainda o pouso, seria agora um quarto duma pensão qualquer, e uma janela para um beco vadio com ou sem estrelas por testemunhas, não importa como será.
Não carrega livros de leitura, só três ou quatro fotos, as dos filhos e netos, acabarão amarrotadas e talvez debotadas, não importa. No portátil carrega todas as memórias que lhe são vitais: as cores, as formas, os rostos que gosta de captar.
Para o trabalho vai munida. Não sabe o que vai encontrar ou não por lá. E não quer perder tempo a procurar. É a maior parte da bagagem. Material de trabalho. E contactos. Todos os que pode arranjar.
Quer tempo para si. Só assim o pode ter. Não perdendo tempo com coisas inúteis, com coisas que arrecadou já com o tempo.
Olhou mais uma e outra vez para trás. Não com saudades já. Para ter a certeza de que tudo era como se lembrava. Para ter a certeza que não esqueceria e que sempre que quisesse se iria lembrar com precisão.
Olhou para o relógio. Entrou no táxi. Pediu que a levasse ao aeroporto.
Deixou que uma lágrima caísse, secou-a com a ponta do indicador direito, olhou em frente. Durante a viagem não disse palavra.
Ninguém foi com ela ao aeroporto. Foi ela que assim quis. Despediu-se do taxista pegou na sua bagagem e dirigiu-se ao balcão de embarque.
Daí a uma hora e trinta e cinco minutos partia.

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