Todos os tempos

Foi uma voz forte e rouca mas incisiva, que o fez estacar. Absorto nos seus pensamentos, estremeceu de sobressalto. Transportas contigo todos os tempos, dizia-lhe como se viesse de dentro de si. Não te escondas, nem procures para além de ti os tempos que julgas perdidos.
O susto correu-lhe o corpo, quase tirando o folego.

Afogado nas memórias do passado, há tempo demais, não permitia ao tempo presente uma existência plena. Sentia perder-se num tempo que o não levava a lado nenhum. Vagueava na vida pelo hábito instalado de que já não se dava conta.
Vivia, se vivia, agarrado a um tempo em que fora, recusando-se a ser e renunciando a um qualquer tempo que estivesse para vir.
E no entanto, dizia-lhe a voz que nascera de dentro, carregava em si todos esses tempos, sem se dar conta. Cada passo, paragem ou recuo o conduzia inevitávelmente a um tempo que iria acontecer.
Fizesse, ele, o que fizesse. Nunca o evitaria.
Sentiu de novo a voz, como que ao longe e arrastada. Deixava-lhe em eco as palavras, todos os tempos... Todos os tempos...

Apercebeu-se de repente, como num flash, da verdade daquelas palavras. Numa vida agarrada ao passado, vivia o presente a construir um futuro que o levava a um retorno ciclico.
Porque se demitira de viver e esquecera que a vida prosseguiria num continuum imparável. Independentemente de si.
E quando se olhasse ao espelho, veria o que a vida fizera de si, nas marcas reveladoras da carne.
Perguntar-se-ia o que fizera da vida. E saberia a resposta imediatamente.
O que escolhera fazer.
A cada momento em que abraçado aos tempos que foram, vivia nos que já eram.
E mesmo se morresse... (E como essa ideia se aninhava dentro de si... ) Mesmo que se fosse deste mundo...
O que fora permaneceria em quem ficava. E mesmo que não quisesse, perpetuar-se-ia nas memórias das coisas que deixara, no que fora. Mesmo ausente, geraria sentimentos, dor, saudade...
Pertenceria ao futuro, que não queria viver, duma forma que não podia ou poderia controlar. Da pior forma.

Sentiu pingos fortes na sua nuca. Separados mas fortes.
E cada vez mais e mais juntos. Arrepiou-se. Um arrepio que lhe correu o corpo como se tivesse sido atingido por um raio. Sacudiu os ombros de olhos fechados e quando os abriu, viu que chovia. Uma chuva que o acordava e trazia de volta. Cedeu á tentação de ficar ali, de se deixar estar.
Correu até um sitio abrigado. Parou debaixo dum toldo, sem cor, que abrigava uma montra. Ali uma frase chamou-lhe a atenção. Vá para fora cá dentro.
A chuva que o despertara também o percebia. E dava-lhe sinais que agora começava a saber ler.
Acabava de ter feito uma viagem assim. Dentro de si para fora. Unira-se agora ao seu percurso.
Não hesitou, entrou dentro da loja.
Pediu sugestões para outras viagens, no momento em que, dentro de si, começava a entender os caminhos que trilhava.
Queria partir á descoberta de quem era. Indo para fora, dentro de si.

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