No sótão

Mansardas
(Viana do Castelo)
Arrumam-se, esquecem-se, guardam-se sem datas nem prazos... põem-se de lado à espera de ninguém e de coisa nenhuma as coisas duma vida. São pedaços sem nomes, são restos sem valor, sem uso, que ocuparam espaços úteis.
Livros que um dia alguém leu. Discos girados vezes sem conta. Recortes de actores/ídolos da moda.
Desenhos...cartas de amor. Quem sabe?
A primeira fotografia. O vestido de baptizado. O de casamento.
Um convite. Um alfinete de pechisbeque.
Vestígios dum ramo. Dum namorado?
E pó. E teias de aranha. E pó e caixotes e fitas.
E fragmentos de vidas.
No sótão.
No sótão das nossas memórias. Para um dia nos perdermos, encontrando-nos. De novo. Resgatados.
Com um brilho nos olhos, um rubor na face, o coração a palpitar, a ânsia nos gestos das mãos, o corpo em espera... e uma lágrima que não se contém. Completos ou quase. E tanto por descobrir...
As horas que passam numa dimensão incalculável...
E a nossa História a construir-se. A entender-se e a estender-se por nós.
Rodeados de coisas nunca vistas e tão familiares. Tão nossas.
Como as pedras que povoam a Terra onde nascemos. Como o ventre da nossa Mãe.
Maria foge para o sótão sempre que pode. Já ninguém lhe estranha as ausências. Sabem-na perdida num mundo que a embala e conforta. Perdida nas pilhas de coisas que aí se amontoam, põe o velho gramofone a tocar. Os discos usados de porcelana giram na velocidade doutras eras e as vozes de cantores que já ninguém lembra, animam o sótão da Maria.
Agora, Maria, parte em viagem. Pelo velho Oeste Americano de que falam as bandas desenhadas doutros ocupantes do sótão, ou pelas novelas gastas pelos olhos febris de quem sonhava outros amores.
Já tem nos pés os sapatos de salto alto, fininho, preto com lantejoulas. Bicudos. Corajosos. Vividos nalguma festa. Ou sofridos, sabe-se lá!
À Maria, os sapatos novos mordem sempre. Os pés não apreciam novidades. Pele nova é dura e, quase sempre arranca pele. São bem melhores, estes que calça. E sabem mais. Coisas, que se pudessem contar, levavam a Maria , o resto do tempo que lhe resta.
E a Maria tem tanto que aprender, que se arrepia. De quantas vidas vou precisar para saber quanto quero!?
Apressa-se a compor o velho vestido acetinado. Está sempre a mexer, a deslizar. Como as coisas que passam por Maria que mal tem tempo de olhar. E depois haverá tempo para parar o tempo? Saberá o tempo contar o que deixou escapar?
O velho broche, talvez da avó, ajusta o vestido. Prende-o. Obriga-o a ficar mais manso. Em sossego. Calma!
Ajeita o cabelo. Á falta de comprimento sobram-lhe as mangas duma camisola fina, com borboto, que prendeu na cabeça. Desde que Maria cortou o cabelo com a tesoura grande de cortar feltro, não voltou a haver cabelo comprido naquela cabecinha. E agora bem falta faz! Pode-se lá viajar disfarçada de Maria-rapaz! Uma donzela merece sempre mais respeito. E os vilões das histórias não chegam aos heróis que ganham sempre. A donzela.
Agora sim. Agora, Maria, está mesmo a viajar. E como ela gosta de o fazer!

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