O quarto escuro

Era ali, no quarto escuro das memórias que ficavam os pedaços que ainda se soltavam de tudo quanto lhe fazia mal.
Depositados na ânsia de serem só breu onde nenhuma luz os visitasse. Assim não os veria jamais. Por lhes perder os contornos.

Fechava a porta e esperava que ninguém a empurrasse. Não lhe forçassem a entrada, nunca.

E mesmo assim entre o ranger de coisa sem uso, por descuido, ás vezes entravam fios de luz. E a dor tomava corpo.

Precisava de estar mais atenta. Não o deixar acontecer.
Deixar as coisas no lugar onde as tinha posto. Para sempre.

Agora e não será cedo. Para que não seja tarde.

Talvez te deva falar agora do que sinto por ti.

É o momento certo, pressinto-o. Sei também que em ti já tarda o que te vou dizer.
Procuro as palavras e sinto-as esconderem-se. Tímidas, envergonhadas. Hesitam em fazer-se voz. Como se ao fazê-lo se extinguissem e perdessem a alma que as fez nascer.

Olho-te então. E é no olhar que te deixo que elas se entregam.
Não te enganas, não. É mesmo isso que te quero dizer. Aquilo que sentes.
Não poderia dizê-lo nunca tão bem como o faço agora.
Sei que me lês. No olhar que me devolves.

Deixa o silêncio deitar-se. Sem palavras que possam perturbá-lo.
Embalá-lo-emos ao ritmo dos nossos corações. Só.
E tudo será dito claramente. Sem atropelos.

É neste encontro de olhares reflectidos que nos entendemos.
E é quanto basta.

E quando duvidares… regressa aqui, onde te veja.

Desejo

Sentiu a urgência na vontade. Uma pressa que crescia no desejo que de repente sentiu. Dela.
Ligou-lhe. Ouviu o telefone tocar repetidamente.
A paciência corria com a velocidade do desejo Uma fugia outro instalava-se.
Desligou. Iria vê-la. Não lhe bastava a voz. E era esta que sempre lhe acendia a chama que o consumia agora. Desta vez bastou-lhe a lembrança. Daquele gesto que o fez olhá-la pela primeira vez. Quase um espreguiçar. Um deitar de cabeça apoiado nas costas da mão a correr-lhe para o cabelo, rodopiando suavemente até pousar de novo no cabelo que trazia para cima do ombro. A voz viria depois. Para o prender.
Ficou no carro. De repente achou que nada fazia sentido.
Lembrou-se que talvez ela não estivesse em casa. Que estivesse afinal com ele. Noutro lugar. Num lugar que nunca seria o seu.
Decidiu arrancar. Viu-a a cruzar a esquina. Sozinha, carregava alguns sacos.
Hesitou em abrir a porta. Afinal viera vê-la. Saiu.

Não sabe como fez o caminho até casa. Na cabeça rodopiava a imagem do sorriso aberto que lhe vira quando lhe abriram a porta de casa. Soube que teria de se ir embora.
Embrulhou o desejo no peito agora amarrotado.

Falou

Falou dele sem mágoas. Assim como se tivesse ainda agora estado com ele. Como se ele nunca lhe tivesse faltado ou falhado.
Olhei-a a confirmar o olhar que se fazia nas palavras que lhe ouvia.
Queria senti-la tal como o diziam as palavras.

Lembrei-me das vezes que a ouvira chorar e desesperar.
Na verdade devia ficar tranquila. Preferia-a assim. E a vontade de acreditar em tudo o que dizia era maior que qualquer medo.

Deixei que falasse tudo com a calma enfiada á pressa nos gestos. Luva mal posta porque me disse logo o que precisava de ouvir.
Estou bem, finalmente. Acredita.

Não acreditei.

Continuou a falar dele da mesma forma. Ensaiada.

Quero

Não ter as respostas para tanta pergunta que me fazes desvenda em mim a inutilidade que carrego.
Procuro em tanto que já vivi as palavras que precisas de beber. Nada cala a tua sede.
Sinto-me deserto enquanto procuras em mim a miragem.

E quero ser o que precisas.
Terreno fértil onde pudesses florescer.

Um mar

Afogar-se. Deixar de respirar ou estrebuchar até vir á tona de novo.
Mas pelo menos por uns momentos, esquecer. Ser outra coisa qualquer, noutro sítio, doutra maneira.
Talvez assim se fosse o que a punha assim.

Saiu de casa. A princípio sem destino. Qualquer mar lhe servia.
O toque do telemóvel despertou-a, quase a assustou. Procurou-o para o calar, sem resultado. Parou o carro e esvaziou a carteira sempre cheia de inutilidades. Viu-lhe a luz impaciente. Atendeu.
Vem cá jantar. Preciso de estar com alguém.
Há muito tempo que não o ouvia e nem sabia dele. Que sim. Iria. Também lhe faria bem.
Adiou a viagem. O mar esperá-la-ia. Sempre lá esteve e nunca a abandonou. Hoje não iria aninhar-se no seu colo.

Deu meia volta e pouco tempo depois batia-lhe á porta. Achou-o cansado, triste. Mas a tristeza já lha tinha ouvido na voz. O cansaço sentiu-o no abandono e no olhar que conhecera sempre vivo.
Foi na cozinha entre os temperos e os odores que falaram. De tudo o que lhes vinha á cabeça. Sem nada dizer. Ajudou-o nos afazeres deixando os olhos entregues ao que fazia. Tinha medo de lhe cruzar o olhar. Tinham.
Entregavam-se ás ninharias. Apagavam assim escrevendo por cima. Como se nada mais houvesse e nada os pudesse afectar.

Jantaram. A garrafa de vinho tinto ficou vazia.
Levantaram-se e foi quando ele sem aviso a abraçou. Sentiu-lhe o rosto molhado. Soltava enfim o mar que em tempestade o habitava.

Desta vez foi ela que embalou aquele mar. Deixou-se afogar.

Neste silêncio

É aqui, neste silêncio que desdobro os pensamentos ao desenhá-los em letras no contorno das memórias que guardo de ti.

Costumavas fazê-lo com a ponta dos dedos a tocarem ao de leve no meu corpo. Pedias-me que te dissesse então o que decifrava.
Rias-te sempre do que eu dizia. Inventavas novas palavras e mantinhas a desculpa para continuar o jogo.
Lembro-me de sentir arrepios e de me contorcer quando tocavas em pontos mais sensíveis. Troçavas de mim.
Rias-te e fazias-me rir.

Agora, na viagem que faço, volto a fazer as mesmas brincadeiras. Desta vez sou eu que te faço adivinhar. E vejo-te em movimentos desconexos e a esconder a cabeça debaixo da almofada para que eu não te ouça e não troce de ti.
É quando te procuro lá que me apanhas desprevenida e soletras todas as palavras que nascem em ti ao meu ouvido.
Dizemo-las depois em conjunto lábios nos lábios. Em harmonia.
Uma a uma, até que não sobrem mais.

Deitados lado a lado de mãos dadas rimo-nos os dois de tanta palavra para inventar.

Sei que não as dissemos todas. Descubro-as agora na ausência que planta o silêncio que teimo em ouvir.
É no ouvido do vento que as sussurro. Serão tuas quando sentires a aragem a tocar-te o corpo. Onde estiveres.

Até lá peço ao silêncio que se faça riso. No teu.