Não era a primeira vez

Não era a primeira vez que lhe acontecia.
Nem sequer era de forma diferente. Soava-lhe a “dejá vu”. Devia por isso estar preparada e já nem reagir. Seguir em frente como se nada tivesse acontecido.
Como se passado e presente se confundissem e tudo girasse em eterno rodopio.
Num vaivém incessante.
E sentir-se tonta fosse consequência desta dança quase violenta de tão rápida e inesperada.

Chorava, sim. Sofria também.

Escondia-o sempre que podia. Embora ás vezes a tristeza trespassasse para fora de si no olhar perdido no vazio e na falta do sorriso que pairava perdido nas culpas que sentia morarem em si.

Procurava forças, encontrando razões para ficar bem como estava agora. Sozinha.
No seu mundo. Sem mais ninguém.

Não seria a última vez e era bom que fosse. Faria para que fosse.
Era a promessa que faria a si própria.
Estava cansada de reviver.

Deixa-me pecar!


Fico sem saber o que fazer e como fazer.
Não entendo porque as coisas não são claras, porque se escondem e não se dizem.

Fizeste-me reflectir no que temos. Nesta relação a que chamas namoro. E perdi-me nas rotinas e rituais que não encontro e fazem o que são as relações: Um bom dia, uma mensagem, um toque, um olá, uma carícia, um mimo, um esperar por ti a determinada hora, um saber bem, por te saber lá... Como acontecia ao princípio, lembraste? Quando esperavas por mim para conversarmos de coisa nenhuma. Nessa altura dava-te "luta". E tu a mim.

Agora que te sinto ir, percebo que me fazes falta. E fazem-me falta também esses pequenos nadas.
Sei também que te empurrei um pouco para fora de mim com medo de te magoar. No entanto se eu valesse a pena ficarias.
Talvez não valha assim tanto... Nesse caso farás o que for melhor para ti.
Tudo ficará bem com o tempo.

Agora tenho uma dor no peito que cresce sem razão por não saber o que se passa. Quando nada sabemos deixamos crescer fantasmas dentro de nós. Que são só isso mas metem medo, mesmo que tenhamos a consciência do que são.
Veio-me á cabeça Pedro Abrunhosa " Quem me leva os meus fantasmas?" porque te peço a ti para mos levares.
Não te escondas no silêncio. Fala comigo.
Sei ouvir. Sei entender.
Gosto de ti. É o meu maior pecado.
Deixa-me pecar.

Apaga a luz!

Apaga a luz e dorme!
Ainda não acabara de dizer as ultima palavras da sua oração nocturna, anjo da guarda minha companhia guarda minha alma de noite e de dia. Vinham-lhe á cabeça a imagem do anjo com grandes asas a proteger uma criança com caracóis soltos como os seus e sentia-se já protegida.
Todos os anjos de que tinha lembrança eram bonitos. Nunca poderia ser um anjo noutra vida se ela existisse. Mas uma criança rabina e inquieta seria. Tinha a certeza. Nada a satisfazia. Tudo a fazia ir mais além, descobrir mais e mais sem nunca parar.

Então, ainda acordada?
Aconchegava-se melhor e antes de apagar a luz puxava para junto de si a imagem da santa que era iluminada noite e dia por uma lamparina alimentada por azeite. A velinha cor-de-rosa boiava á sua superfície e espalhava nuances de luz no corpo esbelto da santa. Sim, também as santas eram bonitas e perfeitas como os anjos. Restava-lhe velar-lhe para que não lhes faltasse a luz.
Em troca desfrutava da possibilidade de viajar para outros lugares nas folhas dos livros que abria e devorava quando apagava a luz que tinha de poupar.
Ás vezes quando as histórias acabavam deixava-se ir ao encontro das sombras disformes que criavam personagens nas paredes do quarto até vir o sono devagarinho.
Ali era tudo o que a imaginação a deixava ser. Num tempo só dela.

Calava...

Calava tanta coisa, tanta vez!
E quando tudo acabava sentia que tudo ficava por dizer.
Como se tivesse medo de dizer de mais. De sentir demais. De se comprometer demais…

E depois, nada havia a fazer. Na altura tudo parece normal. Como se tudo lhe fosse devido, a tudo tivesse direito. Nada tivesse de agradecer.
E obrigada, fosse só mais uma palavra inútil.
E gosto de ti, outra.

Agora, fazes-me falta, é a mais inútil das frases.
Porque só na ausência as palavras se fazem presente e urge fazê-las crescer num passado que já nada altera.
E as palavras que não foram ditas, doem ausentes.
Como quem se foi. Como o que se perdeu.


As palavras vestem-nos e despem-nos. Umas vezes demais outras de menos.
Por isso precisamos dos gestos.

Queria!


Queria falar-te de coisas que não se perdessem no bulício dos dias.
Que fossem sempre da mesma cor e a poeira delas não fizesse leito ou demorasse em pousio.
Soprar-lhes-ia a aragem da vida que para longe lhes levaria o cansaço e alisaria as nervuras e assim, sem nenhum atropelo ecoaria o meu sentir de ti.

Até o silêncio acordar


Chegava-lhe ao nariz um cheiro nauseabundo. Não sabia de onde vinha nem o que era. Tornava-se insuportável. Nem o aconchego dos lençóis e o calor que o corpo já tinha a distanciava da náusea que crescia dentro dela.
Fechava os olhos com força e tentava chamar o sono para se afastar daquele lugar.

A pouco e pouco eles chegavam e aninhavam-se no volume do seu corpo. Eram viscosos e alguns estavam já em putrefacção. Talvez fosse daí que o cheiro viesse. Alguns abriam a boca com os dentes fininhos e afilados e aproximavam-se da sua cara.
Nada fazia para os afastar.
Sabia que vinham de dentro da sua cabeça dalgum lugar onde se criam os medos. E sabia o que fazer. Ficava-lhes indiferente. Acabariam por se cansar e desapareceriam.

Como quando era pequenina e os medos se escondiam em lugares insuspeitos que a principio controlava minuciosamente. Escudava-se debaixo da roupa que a cobria na cama e enovelava-se. Apercebeu-se a pouco e pouco que nada acontecia.
Fingia que não os sentia. Enfrentava-os munido duma força desconhecida. Ignorava-os.
Como agora.

Restava-lhe esperar pela hora do silêncio acordar e os ruídos habituais do elevador que trazia quem tardava e levava quem amanhecia. O carro do lixo, o trânsito a fazer-se grande e a luz que ofusca todos os medos.

Então dormirá.

Tardam sempre as palavras


Tardam sempre as palavras quando delas precisamos.
Secam num lugar qualquer, perdidas em labirintos indesvendáveis.

Na cabeça latejam mudas e no peito debatem-se em fúrias desordenadas. Calam-se na garganta onde não vibram as ondas que lhes dão voz.

Amontoam-se desordenadas, enredadas em si. Caem em catadupa num turbilhão insustentável num poço sem fundo onde nos precipitamos também em tontura desenfreada.

Tanta coisa para dizer e um deserto árido de legendas pela frente… Ou a vista turva, talvez, porque a encandeiam as palavras duma tempestade qualquer.

Só mais tarde, muito mais tarde…
As palavras transbordam de entendimento e já não são necessárias.
Perderam-se no tempo.