Ainda não


Esperava-a. Abriu-lhe a porta para não o voltar a fazer. Não se deu conta que a recebia em despedida. Não o pressentiu. No entanto era a ultima vez que estariam assim.
Nas conversas que cresciam fáceis e próximas falou-lhe do filme "Les choristes". Nesse momento, ela, decidiu guardá-lo. Ali. Na memória das memórias que nele viviam.
Sabia, numa certeza que construíra ali naquele momento, que esta seria a última noite. E esta, era a forma que teria para o viver, quando as memórias o chamassem.
Tinha-lhe dado tudo. Desvendara-se já. Demasiado nua, porque se mostrara inteira, sabia que nada mais poderia dar. E que nada mais deveria receber.
Guardou-lhe a memória como se dela fosse. Apressou-se a aprisioná-la. Porque, a ele, não o prenderia nunca.
Nas lágrimas que lhe subiam á garganta buscou a força para um sorriso. Era tudo o que ainda lhe restava para partilhar. A certeza duma paz que ele nunca a quiz fazer perder.
Queria-lhe muito. De tanto lhe querer, tinha de o deixar. Não seria nunca seu. Sabia-o.

Não o deixou olhar para dentro de si naquele tempo. Seria só dela a decisão. Só dela o que houvesse para chorar. Isto não seria a dois. Era o único segredo que em si deixava. O unico pedaço de si que ele nunca visitaria e de que nunca se daria conta. Um espaço e um tempo só seu.

Não queria nunca ser assim de alguém. Ainda não.

1 comentário:

  1. Foi no dia da maré estranha que a minha Deusa partiu.
    Durante toda o dia, debaixo de um céu opaco e turvo, as águas foram aumentando, chegando a alturas jamais vistas. As ondas rebentavam serpenteando-se pela areia queimada que anos a fio somemte pouca chuva humedecera e morriam nas bases das dunas. O casco amortalhado do "Principe das Marés", jazia encalhado no fundo do mar há já tanto tempo que ninguem de nós se lembrava quando terá pensado que ia ser de novo lançado ao mar. Após esse dia, não mais voltei a nadar.
    As gaivotas e outras aves marinhas grasnavam , subiam e desciam como doidas, como que excitadas pelo espectáculo daquele enorme amontoado de água de uma cor estranha e de brilho funebro..
    Nesse dia, essas aves pareciam estranhamente brancas como se tivessem barriga de peixe.
    As vagas ao rebentarem, deixavam uma fina espuma suja e amaraleda ao longo da linha da costa. Ninguem via uma vela de barco no distante horizonte.
    Não mais, não mais voltei a nadar.
    Mas o passado, pulsa dentro de mim como um segundo coração.
    A minha Deusa partiu ao amanhecer.
    Para dizer a verdade, eu não estava lá quando aconteceu.
    Tinha ido até ao mar para respirar o ar lustroso da manhã. E naquele momento tão calmo e melancólico, recordei um outro momento, há já algum tempo atrás, neste mar. Tinha ido ao mar, não me lembro porquê. O céu estava enovoado e nem uma brisa agitava a sua superficie, as ondas pequenas desfaziam-se languidamente na orla da água, continuamente, como uma bainha interminavelmente pespontada por uma costureira ensonada. Eu estava de pé com a água até à cintura. A água era perfeitamente transparente pelo que podia ver nitidamente a areia ondulada no seu leito pequeninas conchas e pedacinhos de tenazes partidas de caranguejos, e os meus pés lividos e estranhos, como espécimes exibidos em redomas de vidro. Enquanto estava ali parado, de repente, não, não foi de repente, mas antes numa espécie de encapelamento progressivo, o mar engrossou, não era bem uma vaga, mas um ondular lento e suave que parecia vir das profundezas como se qualquer coisa imensa se tivesse agitado lá no fundo e senti-me levantado por breves instantes e arrastado para o areal e em seguida voltei a pousar tal como antes, como se nada tivesse acontecido. E, de facto, nada tinha acontecido, uma ninharia sem importância, apenas mais um encolher de ombros indiferente deste vasto mundo.
    Depois, alguem me veio chamar.
    Virei-me e segui a minha Deusa como se estivesse a caminhar pelo mar dentro.

    Bem Haja
    Até sempre

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